MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. O controle do processo administrativo disciplinar pelo poder Judiciário e a importância do enunciado 665

O controle do processo administrativo disciplinar pelo poder Judiciário e a importância do enunciado 665

O texto pretende discutir as variáveis relacionadas ao controle judicial do processo administrativo disciplinar, especialmente após a edição do enunciado 665/STJ.

sexta-feira, 22 de março de 2024

Atualizado às 14:34

Um dos temas mais importantes, que ultrapassa os limites do próprio direito administrativo, atingindo também o constitucional e o processual civil, refere-se à análise dos limites e instrumentos jurisdicionais de controle do processo administrativo disciplinar (PAD).

Antes de analisar o recente enunciado de súmula da jurisprudência dominante editado pelo STJ, vale mencionar que o regramento geral em relação aos limites de controle jurisdicional dos atos administrativos é um só: apreciação da legalidade da atuação administrativa, inclusive salvaguardando a separação de poderes e outros princípios constitucionais aplicáveis a espécie.

Aliás, não se deve esquecer que, não obstante a presença de instrumentos de judicialização da atividade administrativa, o controle deve inicialmente ser feito pela próprio Poder que editou o ato, que detém o dever de rever seus atos eivados de vícios2, inclusive se valendo do poder-dever de autotutela3. A conduta do administrador deve ser pautada pela legalidade e ele, mais do que ninguém, controla a sua atividade, com a motivação necessária em caso de invalidação do ato/do processo (art. 20, parágrafo único, da LINDB), assegurando a garantia do contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV, da CF/88)4.

Contudo, não ocorrendo a verificação interna da legalidade, esta deve ser exercida pelo poder Judiciário, por meio dos vários instrumentos jurisdicionais de controle.

Outrossim, em relação ao controle da legalidade do processo administrativo em geral, não existem grandes polêmicas no ambiente jurisdicional. O Tema 485, de repercussão geral do STF (RE 632.853 - 23/4/15) consagra que5:

"Não compete ao poder Judiciário substituir a banca examinadora para reexaminar o conteúdo das questões e os critérios de correção utilizados, salvo ocorrência de ilegalidade ou de inconstitucionalidade" 

Da mesma sorte, no Tema 335 (RE 630.733 - 16/5/13) de repercussão geral, a Suprema Corte fixou a seguinte tese:

"Inexiste direito dos candidatos em concurso público à prova de segunda chamada nos testes de aptidão física, salvo contrária disposição editalícia, em razão de circunstâncias pessoais, ainda que de caráter fisiológico ou de força maior, mantida a validade das provas de segunda chamada realizadas até 15/5/2013, em nome da segurança jurídica".

O controle jurisdicional, portanto, é em regra de legalidade, sendo vedada a inserção no mérito administrativo. Como assentado em passagem de scórdão da 2ª Turma do STF (RE 1.269.736-ED-AgR, rel. min. Edson Fachin, J. 22/8/22, DJe 29/8/22): "A atuação do poder Judiciário no controle do ato administrativo só é permitida quanto tal ato for ilegal ou abusivo, sendo-lhe defeso promover incursão no mérito administrativo propriamente dito"6.

Com efeito, em que pese realmente ser discutível apreciação do mérito do ato administrativo (aspectos ligados a conveniência e oportunidade), sob o risco de invasão da competência de outro Poder, a motivação (motivos determinantes) torna-se instrumento de garantia contra os excessos e utilização dos conceitos indeterminados para prática de atos abusivos, ilegais e/ou com desvio de finalidade.

Vale citar passagens de outros julgados do STJ:

"O indeferimento da autorização quando devidamente motivado e, em se tratando de ato discricionário, impede a interferência do Poder Judiciário nessa seara, estando restrito o controle judicial à aferição da regularidade do processo administrativo de autorização de registro e porte de armas de fogo, à luz dos princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal". AgInt no REsp 2.008.271 / PE - 1a T/STJ - rel. min. Regina Helena Costa - J. em 17/10/22 - DJe 19/10/22.

"Sob o pretexto de controle do ato administrativo, houve clara lesão à ordem pública ao se substituir a decisão administrativa pela decisão judicial, desconsiderando o mérito administrativo, cuja construção de seu conteúdo é de competência do Executivo, e não do Judiciário. Não cabe a este Poder, dessa forma, atuar sob a premissa de que os atos administrativos são editados em desconformidade com a legislação, sendo presumivelmente ilegítimos. Tal conclusão configuraria subversão da lógica do direito administrativo, das competências concedidas ao poder Executivo e do papel do Judiciário". AgInt na SLS 2.654 / PR - rel. min. Humberto Martins - CE - J. em 16/11/20 - DJe 26/11/20.

Esta é a regra geral: não é cabível demanda judicial com o fim exclusivo de controlar o mérito do ato administrativo propriamente dito, tendo em vista que é de competência exclusiva do administrador público - exceto nos casos de ilegalidade, abusividade e desvio de finalidade. 

Em relação ao controle do PAD, as ressalvas devem ser as mesmas, mantido regramento de que o controle apenas pode ser de legalidade. É nesse sentido a interpretação do STJ:

"De acordo com a consolidada jurisprudência desta Corte, o controle judicial no processo administrativo disciplinar - PAD restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e da legalidade do ato, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, não sendo possível nenhuma incursão no mérito administrativo". Veja-se: AgInt no MS n. 26.990/DF, rel. min. Gurgel de Faria, 1ª Seção, julgado em 2/5/23, DJe de 9/5/23; AgInt no MS n. 25.589/DF, rel. min. Assusete Magalhães, 1ª Seção, julgado em 18/4/23, DJe de 24/4/23. AgInt no MS 29.215/DF - rel. min. Francisco Falcão - 1ª Seção - J. 28/11/23 - DJe 30/11/23.

O controle jurisdicional do PAD restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e à legalidade do ato, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, sendo-lhe defesa qualquer incursão no mérito administrativo, a impedir a análise e valoração das provas constantes no processo disciplinar. AgInt no REsp 2.048.922 / DF - rel. min. Regina Helena Costa - 1ª Turma - J. 4/9/23 - DJe 8/9/23.

"O controle do poder Judiciário em relação aos processos administrativos disciplinares, restringe-se ao exame do efetivo respeito aos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, sendo vedado adentrar o mérito administrativo". RMS 69.971/BA - rel. min. Herman Benjamin - J. 7/2/23 - DJe 28/3/23.

"O controle jurisdicional do PAD restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e à legalidade do ato, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, sendo-lhe defesa qualquer incursão no mérito administrativo, a impedir a análise e valoração das provas constantes no processo disciplinar". AgInt nos EDcl no MS 29.028/DF 1ª Seção / STJ - rel. min. Herman Benjamin - J. em 20/6/23 - DJe 27/6/23).

"Uma vez que verificada a regularidade do procedimento, o controle jurisdicional dos atos administrativos disciplinares não visa discutir a justiça da decisão, ou aferir o grau de conveniência e oportunidade, a fim de reexaminar todo o processo administrativo disciplinar, para adotar conclusão diversa daquela a que chegou a autoridade competente". AgInt no REsp 1.721.801 / CE - 2ª T/STJ - rel. min. Francisco Falcão - J. em 24/4/23 - DJe 26/4/23.

Aliás, visando uniformizar o entendimento de sua jurisprudência dominante, deixando claro os requisitos para excepcional exame do mérito do processo administrativo disciplinar, o STJ editou recente enunciado 665, da súmula de sua jurisprudência dominante, com a seguinte redação:

"Súmula 665 - O controle jurisdicional do processo administrativo disciplinar restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e da legalidade do ato, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, não sendo possível incursão no mérito administrativo, ressalvadas as hipóteses de flagrante ilegalidade, teratologia ou manifesta desproporcionalidade da sanção aplicada".

O enunciado em questão, de um lado deixa clara a noção de que o controle judicial é, em regra, de legalidade e, de outro, estabelece os requisitos que devem estar presentes para a incursão no mérito administrativo(do mérito da decisão oriunda do PAD): flagrante ilegalidade, teratologia ou manifesta desproporção da sanção aplicada.

A sua edição que, repita-se, acompanha o entendimento da jurisprudência dominante da Corte e salvaguarda o princípio da separação de Poderes, bem como estabelece critérios objetivos para a incursão do mérito da decisão administrativa oriunda do processo administrativo disciplinar. 

É possível concluir, portanto, que o controle judicial dos processos administrativos (em geral e disciplinares) é em regra pautado na sua legalidade, com excepcional inserção no mérito em situações específicas e que devem ser devidamente fundamentadas no caso concreto, salvaguardados os princípios da ampla defesa, contraditório e devido processo legal (art. 5º, LIV e LV, da CF/88). 

Encerro o texto com passagem de recente decisão da 1ª Seção do STJ, ratificando o que está sendo aqui discutido: "o controle judicial no PAD restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e da legalidade do ato, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, não sendo possível nenhuma incursão no mérito administrativo" (AgInt no MS 29.215 / DF - 1ª Seção/STJ - rel. min. Francisco Falcão - J. 28/11/23 - DJe 30/11/23). 

----------------------
1. Sobre o tema poder da administração de rever seus próprios atos, importante destacar os Enunciados 346 e 473, de súmula da jurisprudência dominante do STF, além, dentre outros, dos seguintes precedentes: STF - RE 247.399/SC, RMS 21.529/DF; STJ - RMS 12.815-TO, RMS 16.431-RJ, RMS 12.887-SC, RMS 10.373-PE e RMS 9.286-RO.

2. No STJ: AgInt no RMS 70703- rel. min. Francisco Falcão - 2ª T - J. em 12/6/2023 - DJe 16/6/23; AgInt no RMS 64.688 - rel. min. Francisco Falcão - 2ª T - J. em 15/12/22 - DJe 19/12/22.

3. "Embora a Administração Pública possua o poder-dever de autotutela, conforme o enunciado da súmula 473/STF, quando os atos administrativos invadirem interesses individuais faz-se imperiosa a abertura de procedimento administrativo para garantir a ampla defesa e o contraditório ao administrado".  AgInt no RMS 63.432 / BA - rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho - 1a T/STJ - J. em 15/12/20 - DJe 18/12/20.

4. No STJ, ver, dentre outros: STJ - RMS 28.204-MG, AgInt no RMS 49.513-BA, AgRg no RMS 37.683-MS, AgInt no RE nos EDcl no RMS 50.081-RS.

5. Ainda no tema: RE 1.392.060 AgR-segundo, 2ª T/STF, rel. min. Edson Fachin, J. 3/5/23, DJe 10/5/23.

José Henrique Mouta

VIP José Henrique Mouta

Mestre e Doutor (UFPA), com estágio em pós-doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor do IDP (DF) e Cesupa (PA). Procurador do Estado do Pará e advogado.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca