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Receita para detonar o Banco Central do passado, do presente e do futuro

Projeto ameaça independência do Banco Central. Governantes resistem, mas autonomia é crucial para democracias reais.

quinta-feira, 28 de março de 2024

Atualizado às 07:48

1. Generalidades

Está em curso um projeto para detonar o BCB do futuro, próximo ou distante. Este projeto é apenas o mais recente, porque muitas iniciativas têm sido tomadas nesse sentido e as razões são de fácil explicação. Um banco central independente e autônomo, capaz de gerir a sua atividade de forma livre e dotado de sustento próprio, incomoda todo governante messiânico, porque aquele e outros órgãos dotados de tal qualidade, em sua opinião da pretensa majestade absoluta, impedem que tomem medidas afim realizar de forma adequada a tarefa de reformar a nação, segundo a sua concepção e levá-la para o patamar da inefável felicidade que costuma ser prometida.

Nas verdadeiras democracias, ao lado dos bancos centrais livres de amarras coloca-se o Orçamento Nacional, como limitador da gastança desbragada, porque, todo mundo sabe, gasto é vida, e para que ela se estabeleça plenamente não há qualquer limite para endividamento e para emissões infinitas de moeda. No Brasil, infelizmente, o orçamento tornou-se partitura de uma ópera na qual se encena uma tragifarsa (tragédia misturada com farsa) porque parte dos recursos que o compõem são distribuídos secretamente, ainda que as suposições feitas a respeito levam a conclusões nada alvissareiras para os congressistas favorecidos e para o seu entorno.

Segundo a concepção de tais messias, as leis econômicas são uma invenção do mercado, um ser do mal, que não pensa no bem público, mas somente nos seus próprios interesses, tendo sido difícil prendê-lo a bem do interesse público porque não tem CPF nem CEP.

O cenário do voo financeiro sem limites, desejado por esse tipo de governante tem esbarrado no Brasil - entre outros obstáculos - na muralha ainda imperfeita do BCB, pois a plena e desejável liberdade desse Órgão ainda depende do preenchimento de certos fatores, e um dos mais relevante deles no momento é a sua plena autonomia financeira. Sem ela, apesar das outras facetas de sua auto liberdade, dá-se ensejo para que um governante autocrático estrangule o funcionamento dos bancos centrais, da mesma forma como tem acontecido com a CVM. Outra proteção encontra-se nos mandatos fixos e "imexíveis" de que gozam os diretores dos bancos centrais - inclusive o BCB sendo uma garantia contra a sua demissão porque desagradou o mandatário de plantão, para que se possa colocar nos seus lugares alguém que coma o prato feito pelo seu Chefe.

E uma das forma engendradas para se colocar o BCB a nocaute é cuidar para que os proventos dos seus servidores deixem de ser um atrativo para os melhores profissionais do mercado, que nele ingressam por meio de um concurso público extremamente difícil. A par disso, deve se empobrecer essa casta de privilegiados que são favorecidos por um plano de saúde próprio, de boa qualidade. Na verdade, a perda real do poder aquisitivo da remuneração dos servidores do BCB ao longo dos últimos anos é sabidamente muito profunda.

No sentido acima, com a ajuda do Congresso se pretende desmontar as garantias dos servidores aposentados, tanto no tocante ao desaparecimento da paridade de vencimentos com os da ativa, como da permanência no seu plano de saúde, transferindo-os para um limbo pegajoso e insondável quanto ao rumo dos direitos que se pretende retirar. Esse é o papel da Proposta de Emenda à Constituição 65, de 2023 (PEC 65/23). O segredo do sucesso desse plano está em mostrar que os interessados em ingressar nos quadros do BCB no futuro correrão o mesmo perigo de perda de direitos que se pretende impor aos servidores do passado - já aposentados - e aos do presente que também chegarão lá um dia. 

Ora, a visão de um risco dessa natureza - risco não, praticamente uma certeza - é a de que o mesmo futuro ingrato espera os novos ingressantes na carreira, em um momento no tempo futuro, mas não incerto. Certamente esse será um fator decisivo para afastar da busca pelo BCB muita gente boa, que continuaria a missão de dele fazer mais uma vez um dos bancos centrais modelo para o resto do mundo, que foi, por exemplo, capaz de antecipar medidas de restrição ao abuso de crédito, responsável pela crise internacional de 2008, que chegou às nossas plagas sem poder fazer um grande estrago. Aliás, certo mandatário brasileiro naquela época disse que aquela crise ao chegar aqui se revelaria tão somente como uma marolinha, fruto, na verdade, de uma visão preventiva profética do BCB, de cujos frutos se aproveitou sem qualquer mérito próprio e de um profundo saneamento do Sistema Financeiro Nacional por meio dos programas PROER e PROES.

Abro parênteses para observar a extrema complexidade da atuação dos bancos centrais, qualquer que seja a sua nacionalidade, que exige dos novos funcionários anos de esforço para que alcancem a qualidade necessária em vista do exercício das suas funções com nível de elevada eficiência, que é imprescindível. Os bancos centrais não podem errar, porque na maioria das vezes em que isso acontece, o conserto de uma decisão imprópria não pode ser alcançado. Um pequeno mundo sobre o que são os bancos centrais está retratado na obra que escrevi recentemente, juntamente com o também professor Alexandre Sansone Pacheco, que cuidou de apontamentos sobre a Teoria Geral dos Bancos Centrais, claramente não dela toda1.

Assim sendo, se o BCB do futuro for um fracasso, essa será a vitória de Pirro de um Congresso inconsequente e de um governante absolutamente irresponsável e então poderemos ver de novo o retorno de uma inflação piorada, aos moldes da Venezuela e da Argentina a penalizar de forma violenta os mais pobres, especialmente os não bancarizados, que não terão qualquer meio idôneo para dela se defender.  São esses, precisamente as vítimas da sanha da deseconomia dos governantes autoritários, precisamente aqueles para cuja proteção eles alegam trabalhar.

2. Um depoimento pessoal

Permitam-me os leitores fazer um depoimento sobre a minha vida de trinta anos no BCB, a mesma que percorri junto com os que nele ingressaram depois de mim. Nele ingressei em 1967, aos vinte e dois anos, por meio de concurso público realizado em 1966. Éramos cerca de seiscentos servidores que foram designados para atuarem na sede que era então no Rio de Janeiro e nas Delegacias Regionais que já existentes e cujo número foi ampliado aos poucos por diversos estados brasileiros. O segundo concurso aconteceu em 1974, se não me engano, seguido de diversos outros.

Em 1967 nem todos os departamentos que iriam formar o todo da estrutura do BCB já estavam em operação, os primeiros deles originados da transformação da SUMOC e outros que vieram do Banco do Brasil, como a Inspetoria Geral do Bancos. No meu início de carreira vi chegar o crédito rural, o controle de capitais estrangeiros e o câmbio. Não havia ainda carreiras estruturadas, sendo os cargos providos no regime das comissões, alocando-se os funcionários nas áreas de interesse mútuo, seu e da administração. Surgiram depois as carreiras especializadas, como as de procurador e de auditor, as quais evoluíram para a estrutura atual, objeto da busca pelos atuais servidores de melhor adequação quanto às tarefas do BCB.

Eu o os colegas dos primeiros concursos completamos já há bastante tempo trinta ou mais anos de serviço, tendo nos aposentado. São pessoas que, quanto aosobreviventes, encontram-se na faixa dos oitenta anos de idade, claramente na grande maioria retirados de qualquer atividade produtiva, dependentes exclusivamente dos recursos originados das respectivas aposentadorias. É uma fase crítica de suas vidas, pois, além de naturalmente improdutivos, são usuários de muitos medicamentos caros para o tratamento de moléstias próprias da idade avançada, vítimas de comorbidades diversas, causadoras de grande desgaste para si mesmos e para os membros de suas famílias.

São esses os fregueses diretos da malfadada reforma que se pretende implantar por meio dessa PEC 65/23.

Ora, o BCB, sempre tem sido uma das ilhas de qualidade do serviço público, devido à qualidade técnica de seu corpo funcional ao longo dos últimos sessenta anos. Os aposentados, ostentam merecido orgulho de fazer parte dessa história vitoriosa, tendo  contribuído para muitas vitórias significativas, como o Plano Real, o sistema de metas de inflação, o Sistema de Pagamentos Brasileiro, a ampliação das reservas internacionais, uma forte regulação prudencial e repressiva no campo da fiscalização bancária, e a vitoriosa implantação recente do Sistema de Pagamentos Instantâneos, que popularizou o pix, que está se tornando o meio de pagamento mais importante da nossa economia.

Orientados pela visão acima, verificamos que a PEC 65/23, sob o pretexto de conceder autonomia orçamentária ao Banco Central, pretende implodir a sua natureza, jurídica, de autarquia de natureza especial para a de empresa pública, o que traria, primordialmente, dois efeitos muito danosos para aposentados e pensionistas, precisamente na antecipação do futuros dos que ora se encontram na ativa. São eles, como já dito acima, a perda da paridade de proventos com os servidores da ativa e a perda do direito ao PASBC - Plano de Assistência à Saúde do Banco Central. 

Em relação ao primeiro dos prejuízos, o texto da PEC 65/23 não cuida do destino dos servidores aposentados, notando-se que se prevê que eles ficarão vinculados a uma carreira em extinção e que os seus proventos mantenham paridade com uma carreira congênere, a ser definida, ou seja no mundo de uma perigosíssima incerteza. Segundo o parecer jurídico contratado pelo Sindsep, "não há possibilidade de que, após a aposentação do servidor estatutário, migre-se para o regime geral de previdência, que pertence aos celetistas". 

Como se verifica a mudança de que se trata retira dos aposentados o vínculo com o BCB, ferindo de forma absolutamente ilegal os seus direitos adquiridos ao longo de décadas, no tocante à paridade com a carreira na qual serviram ao longo de décadas, sendo mais do que certa a perda do seu poder aquisitivo, que já vem de algum tempo e que se agravará sobremaneira.

No que diz respeito à segunda medida, o plano de saúde será de descontinuado com a certa revogação da lei 9.650/88, que dispõe sobre o plano de carreira dos servidores do BCB, como efeito da aprovação da PEC de que ora se cuida. 

Assim sendo, um novo plano de saúde será elaborado para os empregados da empresa pública em que se converterá o BCB, ausente qualquer previsão legal que inclua os aposentados e os servidores da ativa que optarem pela carreira congênere, verificando-se quão perniciosa é essa proposta de alteração legislativa. E vejam o enorme danos potencial: se os aposentados e pensionistas perderem o direito ao acesso aos médicos, clinicas de saúde, laboratórios e hospitais aos quais têm acesso, os seus prontuários, construídos ao longo de décadas, de nada mais lhes servirão, não sendo possível reconstituí-los,

O que se verifica depois de todas essas considerações é que os servidores aposentados e os pensionistas estarão pura e simplesmente sendo jogados na lata de lixo, rumo a um lixão do qual somente se livrarão pela morte, que poderá ser abreviada.

E por se falar em empresa pública controlada pelo Estado, que garantia terá o BCB de ser independente e autônomo? Nenhuma, bastando ver a ingerência vergonhosa que tem sofrido, por exemplo, a Caixa Econômica Federal.

Se essas mudanças vierem a acontecer, a par do tremendo estrago na vida dos aposentados e pensionistas, podemos dizer adeus ao BCB que conhecemos e a vinda de algum ente que se preste aos desígnios de mandantes externos, sempre na busca dos seus próprios interesses.

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1 "Aspectos da Teoria Geral do Direito Bancário. A moeda e o sistema financeiro nacional e internacional", Ed. Dialética, São Paulo, 2022.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

VIP Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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