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O fim da saída temporária: Outra resposta simbólica a um problema real

Gabriel Coimbra Rodrigues Abboud e Clovis Volpe

PL 2253/22 propõe alterações na execução penal, incluindo o fim da saída temporária, gerando debates sobre sua implementação.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Atualizado às 08:09

No dia 20 de fevereiro foi encaminhado à sanção presidencial o PL 2253/22 que realiza uma importante transformação na sistemática da execução penal brasileira, propondo, entre outros retrocessos, "extinguir o benefício da saída temporária". O texto, ao se prestar à "extinção" do que concebe como uma espécie de benesse a quem está enclausurado no sistema prisional brasileiro, é problemático em vários sentidos e aspectos, e parece estar sendo levado adiante sem um debate sério e organizado a seu respeito.

A questão criminal tem se tornado cada vez mais central na organização social brasileira, o que se potencializou ainda mais após a gigante projeção que processos, operações e atores que conectaram os Poderes político e econômico conseguiram nos holofotes do sistema de justiça, de forma que quaisquer projetos que afetem a nossa política criminal não podem, de forma alguma, serem pensados de maneira isoladas em suas próprias circunstâncias.

Desde os primeiros capítulos históricos do giro punitivo que promoveu o grande encarceramento no Brasil com a lei de drogas até as ilegalidades perpetradas pela então chamada Operação Lava-Jato, tem ficado claro que processos penais e questões que se prestem a mover as peças da política criminal brasileira, não podem ser analisados tão somente a partir de seus atos e deliberações, mas como parte de um complexo processo histórico, com todas as suas rupturas e descontinuidades.

Dito isso, o que se observou, desde então, foi um embrutescimento cada vez maior dos debates acerca de questões envolvendo o direito penal e o processo penal. O aprofundamento do discurso punitivo encampou, no campo político, uma série de nomes e propostas que realizaram e ainda buscam realizar formas concretas de acirramento dos processos de criminalização, como manifestamente é o caso do PL 2253/22.

Por isso, para além da dimensão ideológica que a compreensão de tais pontos impõem, pensar projetos de lei como o mencionado acima, da mesma forma como os fatos que o precedem, deve ser feito a partir de uma óptica contextualizada ao cenário que lhe diz respeito.

Sob um plano abstrato, por mais que existam um sem número de concepções dogmáticas ou críticas acerca das funções da pena criminal, fato é que o art. 1º da lei 7.210/84 ainda estabelce, como objetivo da execução penal, "proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado".

Se tomarmos como premissa que a função do direito penal é essencialmente a limitação do poder punitivo do Estado e a execução penal se manifesta como exercício concreto deste mesmo poder, a saída temporária, tal qual a progressão de regime, o livramento condicional, a detração e remição da pena estão muito longe de constituirem benefícios do indivíduo encarcerado.

Mesmo que se ignore completamente as condições precárias e desumanas do sistema penitenciário brasileiro - o que, por si só, já tornaria qualquer análise absolutamente descolada da realidade -, ainda assim, os argumentos que tentam dar legitimdade do projeto de lei não resistem a qualquer critério mínimo racional e científico.

Com efeito, a pregunta a ser feita é: a chamada "saidinha" tem alguma responsabilidade no incremento da violência? Para responder essa questão, sequer é necessário recordar os requisitos da saída temporária, haja vista que não é demais lembrar que não existem quaisquer dados ou pesquisas com metodologia séria que consigam promover um nexo entre o incremento das taxas de criminalidade e a realização de quaisquer direitos da execução penal.

O emprego muito oportunista de casos pontuais ou grosseiros, verdadeiras "obras toscas1" da criminalidade para dar cabo a projetos de uma gigantesta e irresponsável extensão como esse, ao fim, serve pura e tão somente à reprodução de uma violência estrutural, que muita potência tem para a penalização do baixo estrato social e nada consegue produzir senão um acirramento das constradições de nossa organização social, cujo resultado já tem produzido quase 1 milhão presos e níveis estarrecedores de reincidência.

Se a retórica da restrição de direitos dos que estão encarcerados encontra algum acolhimento em uma fantasiosa luta contra a impunidade ou contra a violência dessas mesmas pessoas, o aviso é de que essa cruzada quixotesca vai encontrar, em seus moinhos de vento, os seus dragões.

Fato é que o incremento da violência se dá muito mais pelo aprofundamento dos processos de criminalização do que pelas conquistas civilizatórias que visam a chamada reintegração social. Tornar o cárcere ainda mais distante de uma sociedade já fragilizada pode significar um marco na crescente violência brasileira, no qual fica cada vez mais difícil encontrar um ponto de retorno.

A solução dada pelo Poder Legislativo ao problema da saída temporária é mais uma resposta meramente ilusória a um problema real, que, futuramente, haverá de encontrar outras saídas simbólicas a uma catástrofe concreta cada vez maior. A presidência tem, em suas mãos, uma oportunidade histórica e muito importante de não permitir que se conceba o senso comum como política penal pública.

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1 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro I. Rio de Janeiro: Reavan, 2003. p. 48.

Gabriel Coimbra Rodrigues Abboud

Gabriel Coimbra Rodrigues Abboud

Advogado Criminalista no MVB Advogados, Doutorando em Direito pela UNESP.

Clovis Volpe

Clovis Volpe

Sócio-diretor do Moisés Volpe e Del Bianco Advogados. Professor universitário. Mestre e doutor em Direito Constitucional. Especialista em Ciências Criminais. MBA em Direito Empresarial.

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