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Os contratos built to suit e a ausência de renúncia ao direito de revisão

Doutrina debate se contratos BTS permitem revisão. Ausência de renúncia pode implicar direito. Artigo explora equívocos nesse entendimento.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Atualizado às 14:01

1. Introdução

Em relação aos contratos regidos pelo art. 54-A, da lei 8.245, de 18/10/91 ("lei de locações")1, os chamados contratos de locação built to suit ("contratos BTS"), especificamente no tocante à faculdade trazida pelo seu parágrafo primeiro2, parte da doutrina3 afirma que a ausência de expressa renúncia ao direito à revisão, segundo os termos do art. 19 da lei de locações, implica a presença de tal direito nos contratos BTS.

Esse entendimento pode eventualmente ter tido influência em algumas decisões judiciais nesse sentido4.

Neste artigo, vamos explorar as razões pelas quais, a nosso ver, essa linha de raciocínio pode estar equivocada, na medida em que ignora aspectos conceituais importantes dos contratos BTS, e assim agrega a essa modalidade contratual atípica um risco que não lhe deveria ser "típico" (i.e., próprio, natural, ordinário)5.

2. O direito à revisional nos Contratos BTS

Os contratos BTS são aqueles por meio dos quais é avençada a "locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado", e em relação aos quais, "prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo" (art. 54-A, caput, da lei das locações6).

Essas características dos contratos BTS, delineadas no art. 54-A da lei de locações7, são de vital importância para diferenciar esses contratos dos contratos de locação típicos, traçando uma linha divisória bastante evidente no plano material, porém preservando a intersecção de seus respectivos conjuntos de regras no que diz respeito às "disposições procedimentais" da lei de locações, uma vez que ambos estão sob a égide dessas regras.

Dentre essas disposições procedimentais, interessa-nos, para os propósitos deste artigo, tratar especificamente da ação revisional prevista no art. 19 da lei de locações, a qual, portanto, integra aquelas disposições acima referidas. Esse artigo assim dispõe:

"Art. 19. Não havendo acordo, o locador ou locatário, após três anos de vigência do contrato ou do acordo anteriormente realizado, poderão pedir revisão judicial do aluguel, a fim de ajustá-lo ao preço de mercado."

Pelo disposto no §1º, do art. 54-A, contratos BTS que estipulem a renúncia ao direito de revisional a que se refere o art. 19 acima reproduzido, não estariam de qualquer forma sujeitos ao exercício desse direito, seja pelo empreendedor-locador ou pelo locatário, durante o prazo de vigência desses contratos.

Cabe-nos agora explorar a razão pela qual a lei de locações autoriza que as partes afastem esse direito do contrato BTS, para, no passo seguinte, procurar entender os impactos que a ausência de tal renúncia expressa pode vir a (deveria) ter nesses contratos.

Diferentemente dos contratos de locação típicos, que disciplinam tão somente a cessão onerosa do uso e gozo de imóveis, os contratos BTS contemplam estrutura econômica, funcional e de distribuição de riscos bastante mais complexa e sofisticada, incumbindo-lhes a função de revestir juridicamente (e mantê-los em pé, à maneira de alicerces) negócios empresariais que compreendem elementos múltiplos, conforme se verá adiante.

Por meio do ajuste celebrado entre o empreendedor-locador e o pretendente a ocupante - na modelagem mais comum dos contratos BTS -, fica o empreendedor-locador (ou terceiro) encarregado de comprar, construir e/ou reformar substancialmente determinado imóvel, promovendo as necessárias adequações com vistas a conferir a tal imóvel características sob medida, encomendadas pelo locatário. Este, por sua vez, por razões diversas, tem interesse na ocupação de um imóvel com um grau maior de personalização - tal imóvel deverá contemplar características que, no todo, melhor atendam às necessidades do pretendente a ocupante.

Trata-se, enfim, da chamada "customização", anglicismo que nos auxilia a bem compreender parte dos fundamentos estruturais distintivos dessa modalidade contratual.

Para assegurar o retorno do investimento do empreendedor-locador na aquisição, construção ou substancial reforma do imóvel, o locatário obriga-se a pagar aqueles aluguéis8 derivados do contrato BTS por um prazo determinado, o qual será certamente, no mínimo, o necessário para que o empreendedor-locador possa obter o retorno de seus investimentos (i.e., investimento propriamente dito e lucratividade)9.

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1 Introduzido pela Lei nº 12.744, de 19 de dezembro de 2012

2 "Art. 54-A (...)

§ 1º Poderá ser convencionada a renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis durante o prazo de vigência do contrato de locação." (grifamos)

3 São eles: Alexandre Junqueira Gomide, Sílvio de Salvo Venosa e Luiz Antônio Scavone Júnior, respectivamente, nas seguintes obras:

(a) GOMIDE, Alexandre Junqueira. Contratos de built to suit: aspectos controvertidos decorrentes de uma nova modalidade contratual. 2017.

(b) VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do Inquilinato comentada: doutrina e prática. 2021; e

(c) SCAVONE JÚNIOR, Luiz Antônio. A Lei 12.744/2012 e o Contrato "built to suit" - "locação por encomenda"

4  A título meramente ilustrativo, podemos colacionar esses dois exemplos do Tribunal de Justiça do Paraná: Agravo de Instrumento 0031907-74.2020.8.16.0000 e Agravo de Instrumento 0058770-67.2020.8.16.0000.

5 Segundo BALESTREIRO FILHO, Marcos Alberto. O Contrato built to suit e as ações locatícias: "Em uma visão geral sobre esse conjunto de decisões, pode-se observar que, na pandemia do Covid-19, a cláusula de renúncia ao direito de revisão foi fundamental para a preservação da alocação de riscos e dos termos originais dos contratos built to suit. Nas demandas propostas com fulcro no artigo 19 da Lei do Inquilinato, a presença da mencionada disposição contratual foi suficiente para afastar pleito autoral de fixação de aluguel provisório, enquanto, nas demandas ajuizadas com espeque nos artigos 317 e 478 a 480 do Código Civil, ainda que admitida a revisão do contrato, a presença da cláusula fez com que o órgão julgador adotasse uma posição mais cautelosa na concessão de tutela provisória e, em um dos casos, no próprio julgamento do mérito."

6 "Art. 54-A. Na locação não residencial de imóvel urbano na qual o locador procede à prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si mesmo ou por terceiros, do imóvel então especificado pelo pretendente à locação, a fim de que seja a este locado por prazo determinado, prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas nesta Lei."

7 Dispositivo que tem importante função principiológica no tocante aos Contratos BTS.

8 Nos Contratos BTS, a utilização do termo "aluguel" para se referir à contraprestação paga pelo ocupante ao empreendedor-locador guarda alguma impropriedade, pois pode passar a impressão que estamos a falar simplesmente de um aluguel nos moldes de um contrato de locação típico, o que não é fidedigno, pois, diferentemente deste último, que diz respeito apenas à contraprestação paga pela cessão de uso e gozo do imóvel, no caso dos Contratos BTS, além da remuneração pelo uso e gozo do imóvel, o "aluguel" remunera também o investimento do empreendedor-locador, devendo ser suficiente para que tal investimento tenha seu retorno (payback) no curso do contrato. Assim, uma nomenclatura mais aderente à realidade poderia, a título sugestivo, ser: "aluguel-prestação", "aluguel-parcela", dentre outras.

9 Nos termos do §2º, do art. 54-A, "[e]m caso de denúncia antecipada do vínculo locatício pelo locatário, compromete-se este a cumprir a multa convencionada, que não excederá, porém, a soma dos valores dos aluguéis a receber até o termo final da locação.". Este dispositivo representa mais um reforço na segurança de retorno, pelo empreendedor-locador, de seu investimento em aquisição, construção ou substancial reforma de determinado imóvel, para fazer frente às demandas de customização do pretendente a ocupante.

Farley Menezes

VIP Farley Menezes

Advogado pela Universidade de São Paulo. Atuação nos segmentos do Mercado Financeiro, de Capitais, Fusões e Aquisições (M&A), Private Equity, Societário e Imobiliário.

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