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Marco legal das garantias: Modernização e facilitação do acesso ao crédito

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem sido favorável à desjudicialização da execução. A tendência, uma vez seguindo-se esse entendimento, é que os principais argumentos expostos em referidas ações sejam refutados.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Atualizado às 16:16

No final de outubro de 2023, foi sancionada a lei 14.711/231, que estabelece o "Marco Legal das Garantias". Esta lei visa a simplificação do acesso ao crédito, ao passo em que promove avanços nos procedimentos de execução extrajudicial. Além disso, uma das razões que contribuíram para a popularização de seu nome foi a simplificação do processo de criação de garantias para os negócios jurídicos.

Significativas inovações foram implementadas em várias leis, incluindo o Código Civil, que passou a prever a regulamentação do "agente de garantia" em seu art. 853-A, que foi adicionado pela lei 14.711/23. Embora utilizada no mercado antes da promulgação da lei, a função dos administradores de garantias era regulada por meio de cláusulas contratuais específicas, as quais não delimitavam precisamente suas funções. Atualmente, a figura do agente de garantia é expressamente estipulada em lei2, fomentando a estabilidade na interpretação e na aplicação das disposições normativas.

Agindo em nome próprio e em benefício dos credores, sob um contrato de administração fiduciária de garantias, o agente de garantia assume a responsabilidade pela gestão e coordenação da resolução do contrato, bem como pelo registro de ônus e garantias, além da administração e execução de bens, dentre outras atribuições pertinentes.3

O agente pode ser substituído a qualquer momento, seja pelo credor único ou pelos titulares que representem a maioria simples do crédito garantido4. Acrescenta-se que, pelo prazo de 180 dias contados a partir do recebimento, o montante recebido não estará sujeito a quaisquer obrigações do agente de garantia, o que proporciona maior segurança às partes contratantes e reduz a probabilidade de que um eventual risco de crédito atribuível ao agente de garantia afete a operação5.

Outra alteração promovida pela lei, com repercussões no mercado imobiliário, consiste na permissão para que um bem imóvel possa ser utilizado como garantia para múltiplas operações de crédito junto ao mesmo credor da alienação fiduciária inicial, desde que observado o limite da sobra de garantia da operação inicial.

A exemplo, se o montante garantido pelo imóvel no primeiro contrato atingir até R$ 200 mil, e a quantia original da dívida corresponder a R$ 50 mil, o devedor tem a prerrogativa de celebrar novo contrato com o mesmo credor, até o limite de R$ 150 mil, valendo-se do referido imóvel como garantia fiduciária. A nova lei muito se assemelha com o instituto da hipoteca. Entretanto, para além das diferenças conceituais6, apresenta vantagens específicas à cessão fiduciária, como a simplificação da consolidação da propriedade fiduciária pelo credor, em casos de inadimplemento do devedor, propiciando, por conseguinte, a execução extrajudicial da obrigação.

Abrangendo não somente o âmbito privado, o Marco também promoveu modificações na lei 6.766/19797, elucidando aspectos pertinentes à utilização de imóveis como garantia às instituições públicas. Estabeleceu-se que o mesmo imóvel pode servir como garantia durante a execução de obras de infraestrutura, bem como para créditos constituídos em favor dos credores em operações de financiamento destinadas à produção de lote urbanizado.

Contudo, em virtude das significativas mudanças que afetam a condução das execuções judiciais e extrajudiciais, duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIn) foram ajuizadas face às inovações da lei. Uma pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)8, contestando a constitucionalidade dos arts. 8-B, 8-C, 8-D e 8-E do decreto-lei 911/699 e dos arts. 6º, 9º e 10º da lei 14.711/23. Outra pela Associação Nacional dos Oficiais de Justiça Avaliadores Federais (FENASSOJAF) em conjunto com a Associação Federal dos Oficiais de Justiça do Brasil (AFOJEBRA)10, em face dos arts. 8°-B, § 7°, 8°-C, §§1° a 9°, parte do 8°-D e partes do caput e parágrafo único do artigo 8°-E do decreto-lei 911/69, bem como o art. 6° e o inc. II do §9°, § 12 e § 15 do art. 9° da lei 14.711/23.

Em suma, a Associação dos Magistrados contesta a constitucionalidade do decreto-lei ao criar a consolidação da propriedade, a busca e apreensão extrajudicial da coisa móvel objeto de alienação fiduciária, precedida inclusive de monitoramento privado do devedor. Destaca que a perda da posse de bem móvel, segundo a Constituição, exige a prévia autorização judicial, e que o procedimento introduzido pela lei viola o princípio da reserva de jurisdição e ofende a garantia da inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Além disso, destaca que a implementação da execução extrajudicial dos créditos garantidos por hipoteca e da garantia imobiliária em concorrência de credores é inconstitucional por representar a desapropriação de patrimônio sem a observância do devido  processo legal e sem respeito ao princípio da reserva da jurisdição.

Quanto a ação movida pelas Associações dos Oficiais de Justiça, defendem a inconstitucionalidade dos dispositivos mencionados supra, uma vez que estes permitem a execução extrajudicial das garantias fiduciárias e hipotecárias, inclusive com o uso da força, monitoramento e diligências sobre devedores, busca e apreensão de bens e desocupação de imóveis, em uma espécie de "justiça privada que afasta o Poder Judiciário das situações mais sensíveis ao cumprimento das decisões judiciais", conforme próprias palavras.

A jurisprudência do STF tem sido favorável à desjudicialização da execução.11 A tendência, uma vez seguindo-se esse entendimento, é que os principais argumentos expostos em referidas ações sejam refutados.

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1 BRASIL. Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14711.htm >. Acesso em: 9 abril 2024.

2 Art. 853-A, caput: Qualquer garantia poderá ser constituída, levada a registro, gerida e ter a sua execução pleiteada por agente de garantia, que será designado pelos credores da obrigação garantida para esse fim e atuará em nome próprio e em benefício dos credores, inclusive em ações judiciais que envolvam discussões sobre a existência, a validade ou a eficácia do ato jurídico do crédito garantido, vedada qualquer cláusula que afaste essa regra em desfavor do devedor ou, se for o caso, do terceiro prestador da garantia.

3 Art. 853-A, § 7º: Paralelamente ao contrato de que trata este artigo, o agente de garantia poderá manter contratos com o devedor para: I - pesquisa de ofertas de crédito mais vantajosas entre os diversos fornecedores;  II - auxílio nos procedimentos necessários à formalização de contratos de operações de crédito e de garantias reais; III - intermediação na resolução de questões relativas aos contratos de operações de crédito ou às garantias reais; e IV - outros serviços não vedados em lei.

4 Art. 853-A, § 3º:  O agente de garantia poderá ser substituído, a qualquer tempo, por decisão do credor único ou dos titulares que representarem a maioria simples dos créditos garantidos, reunidos em assembleia, mas a substituição do agente de garantia somente será eficaz após ter sido tornada pública pela mesma forma por meio da qual tenha sido dada publicidade à garantia.

5 Art 853-A, § 5º: O produto da realização da garantia, enquanto não transferido para os credores garantidos, constitui patrimônio separado daquele do agente de garantia e não poderá responder por suas obrigações pelo período de até 180 (cento e oitenta) dias, contado da data de recebimento do produto da garantia.

6 A hipoteca é um direito real de garantia que recai sobre bem alheio, ao passo que a alienação fiduciária é um direito intrínseco ao credor, um direito real sobre bem próprio, desempenhando função garantidora.

7 BRASIL. Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6766.htm >. Acesso em: 10 abril 2024.

8 STF, ADI 7601, Rel. Min. Dias Toffoli.

9 BRASIL. Decreto-Lei nº 911, de 01 de outubro de 1969. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/del0911.htm >. Acesso em: 02 maio 2024.

10 STF, ADI 7608, Rel. Min. Dias Toffoli.

11 "RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL. TEMA 982. DIREITO CONSTITUCIONAL, CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. LEI 9.514/1997. CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA NOS CONTRATOS DO SISTEMA DE FINANCIAMENTO IMOBILIÁRIO. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE CONFIRMA A VALIDADE DA EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ART. 5º, INCISOS XXIII, XXV, LIII, LIV E LV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INEXISTÊNCIA DE ÓBICE AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE AÇÃO. PROCEDIMENTO COMPATÍVEL COM OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E DESPROVIDO, COM FIXAÇÃO DE TESE. 1. A Lei 9.514/1997 dispõe de medidas indutivas ao cumprimento das obrigações contratuais, sob a orientação de redução da complexidade procedimental e sua desjudicialização, cuja aplicação pressupõe o consentimento válido expresso das partes contratantes e a ausência de exclusão total de apreciação da situação pelo Poder Judiciário. 2. A jurisprudência desta Corte, em questão análoga, firmou-se no sentido da recepção do Decreto-Lei 70/1966, inclusive quanto à validade da execução extrajudicial da garantia hipotecária, fixando-se como tese do Tema 249 da Repercussão Geral: "É constitucional, pois foi devidamente recepcionado pela Constituição Federal de 1988, o procedimento de execução extrajudicial previsto no Decreto-lei nº 70/66" (RE 627.106, Rel. Min. Dias Toffoli). 3. A execução extrajudicial nos contratos de mútuo com alienação fiduciária de imóvel, prevista na Lei 9.514/1997, é compatível com as garantias constitucionais, destacando-se inexistir afronta ao princípio da inafastabilidade da jurisdição e do acesso à justiça (art. 5º, inciso XXXV, da CF/88) e do juiz natural (art. 5º, LIII, CF/88), posto que se assegura às partes, a qualquer momento, a possibilidade de controle de legalidade do procedimento executório na via judicial. 4. Inexiste, igualmente, violação aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, da CF/88), tendo em vista que o procedimento extrajudicial que confere executoriedade ao contrato de financiamento imobiliário é devidamente regulamentado pela legislação de regência, não se tratando de procedimento aleatório ou autoconduzido pelo próprio credor. 5. A questão revela tema de complexa regulação econômica legislativa, com efeitos múltiplos na organização socioeconômica, que promove tratamento constitucionalmente adequado à questão, no equilíbrio entre a proteção pelos riscos assumidos pela instituição credora e a preservação dos direitos fundamentais do devedor, adequando-se aos influxos decorrentes do referencial teórico da Análise Econômica do Direito (Law and Economics), além de alinhar-se à tendência do direito moderno de desjudicialização. 6. Recurso extraordinário CONHECIDO e DESPROVIDO. 7. Proposta de Tese de Repercussão Geral: 'É constitucional o procedimento da Lei nº 9.514/1997 para a execução extrajudicial da cláusula de alienação fiduciária em garantia, haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na Constituição Federal'." (STF, RE 860631, relator Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2023)

José Miguel Garcia Medina

José Miguel Garcia Medina

Doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para a elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015.

Leonardo Quintino

Leonardo Quintino

Graduando em Direito pela UEM - Universidade Estadual de Maringá. Colaborador no escritório Medina Guimarães Advogados

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