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A precocidade do "judicial review" americano

Uma abordagem comparativa em relação ao fenômeno europeu de recepção tardia do controle de constitucionalidade e sua repercussão no paradigma da América Latina.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Atualizado às 15:00

Para se analisar a expansão do controle de constitucionalidade entre as nações, faz-se necessário descortinar fatos históricos relevantes ocorridos nos diferentes contextos socioeconômicos. Isto é, nos EUA, a particularidade constitucional se traduziu, especificamente, no triunfo do Sul perante o Norte, na Guerra de Secessão de 1861-18651. Em decorrência desse fato, o sistema federalista superou a confederação, trazendo a necessidade de fortalecer a União em detrimento dos Estados. Explicando melhor, surgiram conflitos de competência entre as leis estaduais locais e as leis federais, trazendo à tona a necessidade de se positivar o "judicial review" ou revisão do judiciário dos atos originários de outros poderes. Destarte, a precocidade do controle de constitucionalidade americana serviu como um paradigma pontual para as autoridades da América Latina que também coadunavam com a forma de governo presidencialista e governança descentralizada.

Ademais, pode-se inferir que nos EUA observou-se uma certa preeminência do poder executivo em detrimento do legislativo, uma vez que havia uma relativa desconfiança em relação a imparcialidade e a opção política atribuída ao órgão legislador. Ou seja, a grande crítica dos dirigentes norte-americanos era sobre o modelo europeu parlamentarista, cuja marca opressiva ( the great opressor)  originava-se da supremacia entre o rei e o Governo. Nesse prisma, os EUA admitiam que o judiciário poderia ser o "role of libertador" ou a regra da liberdade para conter arbitrariedades do poder legislativo. Para complementar, sabe-se que o raciocínio norte-americano se baseava na percepção de que somente os cargos do executivo e legislativo eram eleitos por sufrágio pelo povo, cujas eleições deveriam, impreterivelmente, representar as minorias vulneráveis, trazendo um paradoxo de teleologias constitucionais.

Segundo o doutrinador James Madison, "O controle de constitucionalidade é essencial e indispensável, não apenas como instrumento de proteção dos direitos dos indivíduos e das minorias, em relação aos possíveis atos arbitrários dos legisladores e das maiorias políticas, mas também, para impedir que um dos poderes, o mais forte, que é sempre o legislativo, aspire a cobrir e representar todo o espaço da Constituição". Nessa perspectiva, para o sistema americano ser totalmente imparcial e justo, somente o poder judiciário deveria ter o discernimento de coibir discrepâncias entre atos normativos ordinários, tendo como modelo de supremacia a Constituição.

Em contrapartida, na Europa, a justiça constitucional foi estabelecida tardiamente, pois a co-soberania monárquica ditava as fontes de poder, arrefecendo a supremacia da lei Suprema. Ademais, não se fazia necessário o controle de constitucionalidade, posto que imperava a infalibilidade parlamentar e a generalidade do sufrágio censitário. Portanto a sistemática do parlamento dessa época negava o caráter normativo da própria Constituição, pautando-se na desconfiança para com o judiciário e suas condutas aristocráticas. Segundo o jurista Capeletti, "Os juízes da Europa continental são geralmente magistrados de carreira, não eleitos como os juízes americanos, sendo pouco adequados para a tarefa de controlar as leis, uma tarefa que é, inevitavelmente, criativa e vai muito além do papel tradicional de servidor das leis".

Outrossim, é importante destacar que o controle de constitucionalidade efetivo necessitava de uma certa unidade de jurisdição como o common law americano, com ausência de separação de litígios e discrepância de julgados. Assim, ao contrário do sistema americano, na Europa, havia a ausência de jurisdição ou pluralidade de pensamentos, dificultando a hermenêutica processual e a implantação de um controle de constitucionalidade pontual. Entretanto, em países como a Alemanha (Estado federal), Itália (sistema descentralizado) e Espanha (comunidade autônoma) o controle de constitucionalidade conseguiu ser implementado, diferenciando-se do modelo europeu preestabelecido, sendo um despertar para futuro do constitucionalismo.

Nesse contexto de anacronismo e antagonismo, aos poucos, houve a democratização do parlamento na Europa e a oligarquia da maioria legislativa deixa de ser infalível, surgindo poderes como o Tribunal Constitucional para auxiliar o executivo nas demandas da sociedade. Além disso, após a destruição dos Estados pela Segunda Guerra Mundial, observou-se que houve falha na missão protetiva da sociedade, devido a opressão do totalitarismo nazista e fascista. Por conseguinte, era necessário reafirmar a confiança por meio de um controle abstrato de atos normativos, para tentar reativar uma nova ordem constitucional de liberdades públicas e direitos fundamentais absolutos.

Diante de todo o exposto, percebe-se que a precocidade de utilização do controle de constitucionalidade americano foi possível devido a necessidade de controlar judicialmente a nova ordem federalista pautada pelo presidencialismo e pelo sistema de precedentes do common law. Todavia, a Europa foi retardatária em relação ao constitucionalismo controlador dos atos normativos, em decorrência da ascensão do poder legislativo parlamentar em conjunto com a oligarquia europeia que, posteriormente, teve de aceitar a democratização e abertura dos sistemas. Nesse sentido, depois de toda a tratativa histórica, pode-se concluir que a forma de Estado e de governo são fundamentais na positivação das leis e atos normativos, permitindo que se escolha o tipo de controle de constitucionalidade a ser utilizado para garantir a segurança jurídica e a positivação dos direitos fundamentais da nações .

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1 A Guerra Civil Americana conhecida como Guerra de secessão tinha como causa principal a longa controvérsia sobre escravização dos negros e iniciou poco depois do presidente Abraham Lincoln tomar posse. ( 1861-1865).

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Joseane de Menezes Condé

VIP Joseane de Menezes Condé

Mestranda em Direito FUNIBER, pós graduação em Direito Constitucional Damásio, pós graduanda em direito tributário Anhanguera, coautora do livro novos temas de direito e pós modernidade (2023).

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