Whistleblowing: Boa-fé e programas de recompensas
A boa-fé do denunciante e a criação de recompensas financeiras são pontos polêmicos no whistleblowing, com regulamentações variando conforme a jurisdição.
quarta-feira, 18 de dezembro de 2024
Atualizado às 09:53
Neste terceiro artigo da série sobre whistleblowing1, discutiremos dois dos pontos mais polêmicos no debate internacional sobre a regulamentação do whistleblowing, e que por isso recebem tratamentos distintos, a depender da jurisdição analisada: (1) a exigência de boa-fé por parte do denunciante e (2) a criação de programas que concedam recompensas financeiras para aqueles que formularem denúncias efetivas.
Sobre a (1) boa-fé como requisito para a realização de uma denúncia, segundo a OCDE - Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, diversos tratados multilaterais e legislações locais da seara do combate à corrupção costumam conceder proteção ao denunciante quando demonstrando que a denúncia foi feita de boa-fé e pautada em fundamentos plausíveis2. Nesses casos, costuma haver uma presunção de boa-fé por parte do denunciante, que pode ser relativizada se restar provado que a denúncia é falsa e foi realizada de má-fé.
Medidas para coibir denúncias realizadas de má-fé podem incluir (i) a responsabilização civil do denunciante, que pode se ver obrigado a pagar indenizações ao denunciado e multas; (ii) responsabilização na seara criminal pelo cometimento de difamação; e (iii) retirada de certas proteções, como da confidencialidade da identidade do denunciante3. É importante deixar claro que a realização de uma denúncia que posteriormente se prova equivocada, por si só, não costuma afastar a proteção concedida ao denunciante. O cerne da questão é aferir se o denunciante já sabia que o fato reportado era falso no momento em que efetivou a denúncia4. Nesse sentido, para que o temor do erro não coíba denúncias, a transparência internacional sinaliza que os denunciantes que fazem uma denúncia movidos pela crença razoável ("reasonable belief") de que determinada conduta pode configurar uma irregularidade costumam gozar de proteção, ainda que ao final da apuração a informação se comprove equivocada5.
A implementação de políticas para coibição dos denunciantes de má-fé não são unanimidade porque, inevitavelmente, a motivação dos denunciantes acaba se tornando objeto de questionamento dos denunciados. Por tal razão, a IBA - International Bar Association defende que as motivações do denunciante "não sejam um fator relevante" no recebimento da denúncia, contanto que o denunciante acredite genuinamente que a informação reportada é verdadeira6. A transparência internacional adota uma posição mais firme sobre o tema, defendendo que as legislações sobre whistleblowing não contenham qualquer menção à boa-fé, sugerindo que elas exijam apenas que o denunciante tenha a convicção razoável de que a informação reportada é verdadeira, no momento em que a denúncia é feita7.
Analisemos um exemplo concreto. A EU Directive - European Union Whistleblower Directive (19/37), emitida pela União Europeia em 2019, determina que os Estados-membros adotem legislações que concedam proteção aos denunciantes que possuírem "fundamentos plausíveis" para crer que os fatos reportados por eles são verdadeiros, à luz das circunstâncias e da informação disponível no momento da efetivação da denúncia8. A EU Directive deixa claro que a proteção não deve ser perdida caso sejam reportados fatos incorretos, fruto de um erro honesto do denunciante. No entanto, a EU Directive também apregoa que esses requisitos são uma garantia essencial contra denúncias maliciosas, infundadas e abusivas, que não devem gerar proteção ao denunciante.
Quanto ao (2) pagamento de recompensas aos denunciantes, tem-se que, de modo a contrabalancear os riscos de represália financeira suportados pelos denunciantes, alguns países concedem incentivos para a realização de denúncias, que variam desde gestos de reconhecimento até o pagamento de recompensas financeiras9. Os estímulos em dinheiro são fruto de uma abordagem pragmática, decorrente da percepção de que denunciantes geralmente são mais prejudicados do que beneficiados por suas denúncias. Consequentemente, a existência de mecanismos de proteção a retaliações não seria suficiente para incentivá-los a realizar denúncias, comprometendo seu bem-estar individual em prol do interesse público10.
Nesse quesito, a legislação dos Estados Unidos é o modelo regulatório tipicamente utilizado como referência. Conforme mencionado no primeiro artigo desta série11, o False Claims Act prevê há décadas que os denunciantes podem ser recompensados por reportar fraudes que gerem danos ao erário Federal americano. Caso a denúncia resulte em um processo bem-sucedido, a recompensa pode oscilar entre 15% e 30% do que vier a ser recuperado pelo erário12. Apenas no ano de 2023, as recompensas pagas sob o False Claims Act totalizaram US$349 milhões13.
Em 2024, o DoJ - Department of Justice lançou um programa piloto voltado especificamente aos denunciantes que contribuírem com a investigação e punição de crimes corporativos. Sob o novo programa, as informações reportadas devem guardar relação com os seguintes temas: (i) certos crimes envolvendo instituições financeiras, de bancos tradicionais até negócios relacionados a criptomoedas; (ii) corrupção estrangeira relacionada a ilícitos praticados por empresas; (iii) corrupção doméstica relacionada a ilícitos praticados por empresas; e (iv) esquemas de fraude na área da saúde envolvendo planos de saúde privados14.
Curiosamente, o DoJ detém discricionariedade para definir se a recompensa deve ser paga e a sua extensão. As orientações emitidas pelo DoJ estabelecem que o pagamento está condicionado ao preenchimento dos seguintes requisitos: (a) a denúncia precisa estar relacionadas aos temas (i) a (iv) descritos no parágrafo anterior; (b) a denúncia enseje a recuperação de montante superior a US$1 milhão; (c) o denunciante não tenha participado "significativamente" do ilícito reportado, comandando, planejando, dando início, ou conscientemente se beneficiando com o ilícito; (d) o denunciante não tenha conscientemente e dolosamente feito declarações falsas, fictícias ou fraudulentas, ou ocultou informações relevantes das autoridades; (e) as informações reportadas pelo denunciante sejam originais, e.g., não fossem públicas ou de conhecimento das autoridades, e contribuam para as investigações em curso; dentre diversos outros critérios não mencionados aqui15.
Embora os requisitos sejam bastante minuciosos, indicando que haverá um intenso escrutínio por parte do DoJ, as recompensas ao final do processo podem ser bastante significativas. Para os primeiros US$100 milhões recuperados, o denunciante faz jus a uma recompensa de até 30% do valor recuperado. Para os valores entre US$100 milhões e US$500 milhões, a recompensa é de até 5%. Acima de US$ 500 milhões recuperados, não há pagamento de recompensa adicional16.
Embora embrionário, o programa já vem recebendo algumas críticas e elogios. Advogados atuantes na área sugerem que as recompensas deveriam ser mandatórias, não dependendo da discricionariedade das autoridades. Alguns afirmam que o programa cria ainda mais incentivos para que o denunciante procure diretamente as autoridades, consequentemente esvaziando a efetividade dos canais internos de denúncias17. Todavia, há também os que já observam aspectos positivos. Por exemplo, alguns acreditam que o DoJ valorizou a importância - e não minou - dos canais internos de denúncias, pois deixou claro que funcionários dos departamentos de compliance não são elegíveis aos benefícios do programa, reduzindo incentivos para que eles desrespeitassem a hierarquia interna e fizessem denúncias solo. Além disso, o programa concede recompensas mais altas quando o denunciante opta primeiro por reportar os fatos internamente, cooperando com a investigação conduzida pela organização. Por fim, o programa estabelece um prazo de 120 dias, a contar do recebimento de uma denúncia interna, para que uma empresa reporte voluntariamente os fatos denunciados às autoridades, concedendo maiores benefícios para as empresas que cumprirem esse prazo18.
O sucesso do Corporate Whistleblower Awards Pilot Program do DoJ de 2024 ainda é incerto, mas esse é inequivocamente um experimento que merece ser acompanhado de perto, de modo identificar a busca por um arcabouço que equilibre bem os incentivos para a realização de denúncias e a mitigação dos riscos suportados pelos denunciantes.
A concessão de benefícios financeiros pode não ser suficiente, por si só, para criar uma cultura de incentivo à realização de denúncias, pois o denunciante ainda assim pode hesitar em agir por conta de estigmas morais e culturais. É importante, portanto, que as recompensas sejam acompanhadas de outras medidas, como por exemplo a realização de campanhas de conscientização, a adoção de discursos com reforços positivos por parte das instituições que atuam na prevenção e repressão dos atos denunciados, a cobertura midiática positiva em relação às denúncias que se mostrarem comprovadas, dentre outras19.
Nota-se, portanto, que as tensões em torno dos dois temas - (1) a exigência de boa-fé por parte do denunciante e (2) a criação de programas que concedam recompensas financeiras para aqueles que formularem denúncias efetivas -possuem razão de ser. Isso porque, embora pressuponha-se que a maioria dos denunciantes costuma agir com boas intenções, existe também a possibilidade que uma minoria faça uso da proteção conferida ao denunciante para perseguir outros objetivos, como por exemplo formulando uma denúncia sabidamente falsa para prejudicar um superior ou colega com quem não tenha uma boa relação. Ademais, a depender do regramento adotado sobre a exigência de boa-fé e a instituição de programas de recompensas, o produto final pode ser um arcabouço regulatório que proporcione segurança e incentivos financeiros para a realização de denúncias ou, contrariamente, um sistema que aumente os riscos gerados por uma denúncia malsucedida, aumentando a pressão sobre o denunciante.
No próximo e último artigos dessa série, analisaremos o caso brasileiro.
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1 O primeiro e segundo artigos da série, tratando respectivamente sobre a evolução histórica do instituto e as melhores práticas internacionais nas esferas pública e privada, podem ser encontrados em: a) https://www.migalhas.com.br/depeso/420918/whistleblowing-breves-notas-sobre-a-evolucao-historica-do-instituto; e b) https://www.migalhas.com.br/depeso/421316/whistleblowing-melhor-pratica-internacional-na-esfera-publica-privada.
2 OCDE, "Committing to Effective Whistleblower Protection", OECD Publishing, Paris, 2016. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1787/9789264252639-en. Acesso em 17.11.2024. P. 50.
3 OCDE. P. 51.
4 OCDE. P. 50.
5 Transparência Internacional. "A Best Practice Guide for Whistleblowing Legislation". P. 16.
6 International Bar Association - IBA. "Are whistleblowing laws working? - A global study of whistleblower protection litigation". IBA Legal Policy and Research Unit (LPRU), Londres, 2021. Disponível em: www.ibanet.org/MediaHandler?id=49c9b08d-4328-4797-a2f7-1e0a71d0da55. Acesso em 17.11.2024. P. 13.
7 Transparência Internacional. "A Best Practice Guide for Whistleblowing Legislation". 2018. Disponível em: https://www.transparency.org/en/publications/best-practice-guide-for-whistleblowing-legislation. P. 15.
8 União Europeia - Parlamento e Conselho Europeu. Diretiva nº 1.937/2019, aprovada em 23 de outubro de 2019. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=celex%3A32019L1937. Acesso em 17.11.2024. Item 32.
9 OCDE. P. 66.
10 OLIVEIRA, Juliana Magalhães Fernandes. A urgência de uma legislação whistleblowing no Brasil. Brasília: Senado Federal, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa, 2015. 17 p. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/ tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td175. P. 15. Acesso em 17.11.2024.
11 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/420918/whistleblowing-breves-notas-sobre-a-evolucao-historica-do-instituto, acesso em 17.12.2024.
12 Informação obtida em: https://www.justice.gov/civil/false-claims-act, acesso em 17.11.2024.
13 Informação obtida em: https://www.justice.gov/opa/pr/false-claims-act-settlements-and-judgments-exceed-268-billion-fiscal-year-2023, acesso em 17.11.2024.
14 Informação obtida em: https://www.justice.gov/criminal/criminal-division-corporate-whistleblower-awards-pilot-program, acesso em 17.11.2024.
15 Informação obtida em: https://www.justice.gov/media/1362321/dl?inline, acesso em 17.11.2024.
16 Idem, ibidem.
17 PENN, Ben. "DOJ Starts Pilot to Pay Whistleblowers for White-Collar Tips (1)". Bloomberg Law. Disponível em: https://news.bloomberglaw.com/us-law-week/doj-launches-whistleblower-payment-program-for-white-collar-tips, acesso em 17.11.2024.
18 Informação obtida em: https://www.cov.com/en/news-and-insights/insights/2024/08/doj-launches-pilot-program-to-reward-corporate-whistleblowers#layout=card&numberOfResults=12, acesso em 17.11.2024.
19 CÔRTES, Pâmela de Rezende. A quem você é leal?: motivações para o whistleblowing = Who are you loyal to? motivations for whistleblowing. Revista da CGU, Brasília, v. 13, n. 23, p. 142-157, jan./jun. 2021. P. 154. Disponível em: https://revista.cgu.gov.br/Revista_da_CGU/ article/view/350/260. Acesso em: 17.11.2024.
Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.
Lucas Santos de Sousa
Advogado. Atua nas áreas de Contencioso Cível, Compliance e Anticorrupção. Associado em Pinheiro Neto Advogados. Master of Laws (LL.M) pela University of Pennsylvania (UPenn). Pós-Graduação em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). As opiniões dos autores são pessoais e não necessariamente representam a percepção das instituições às quais estejam vinculados.



