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Usucapião familiar: A dignidade nas relações familiares

Entenda como a usucapião familiar protege o direito à moradia diante de situações de abandono e fortalece a justiça nas relações familiares.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Atualizado às 14:15

A lei 12.424, de 16/6/11, trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro uma significativa inovação: A usucapião especial urbana por abandono do lar. Regulamentada pelo art. 1.240-A do CC/02, essa modalidade busca assegurar o direito à usucapião para aquele que, em decorrência do abandono por parte de seu cônjuge ou companheiro, manteve posse exclusiva do imóvel por um período mínimo de dois anos.

O texto do artigo é claro: "Aquele que exercer, por 2 anos ininterruptos e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250 m²  cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural." Ademais, "O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez" (parágrafo 1º).

A singularidade da usucapião familiar

Entre as diversas modalidades de usucapião previstas no ordenamento jurídico brasileiro, a usucapião familiar destaca-se por possuir o menor prazo exigido: Dois anos. Essa característica particular é justificada pelo caráter protetivo da norma, que busca amparar aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade em razão do abandono do lar conjugal.

No entanto, para que a usucapião seja reconhecida, é imprescindível o cumprimento de requisitos específicos, como: A inexistência de outro imóvel em nome do possuidor; a utilização do bem como moradia por pelo menos dois anos consecutivos e sem oposição; a comprovação do abandono voluntário da entidade familiar e do imóvel pelo outro cônjuge ou companheiro; e a demonstração de que o possuidor é coproprietário do imóvel ou possui direito à metade dele, seja em virtude do regime de bens que regulamenta o casamento ou a união estável. Além disso, o imóvel deve estar situado em área urbana e ter dimensão máxima de 250 metros quadrados.

Proteção a todas as formas de família

A norma é inclusiva e abrange todas as formas de entidades familiares, incluindo uniões homoafetivas. O enunciado 500 da V Jornada de Direito Civil reflete essa abrangência ao afirmar que "A modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive as homoafetivas". Assim, o instituto da usucapião familiar está alinhado com o princípio da igualdade e com o reconhecimento das diversas configurações familiares existentes na sociedade contemporânea.

Exemplo de aplicabilidade

Um exemplo prático da aplicação da usucapião familiar seria o caso de um casal em união estável que adquiriu um imóvel em regime de condomínio. Após a separação de fato, um dos companheiros abandona o lar, deixando de contribuir com as despesas do imóvel e de exercer qualquer ato relacionado à posse. Além disso, afasta-se da entidade familiar, deixando de visitar os filhos, pagar pensão alimentícia ou cumprir outros deveres parentais. O companheiro que permanece no imóvel, utilizando-o como residência para si e seus filhos, pode pleitear a usucapião familiar, desde que sejam atendidos os demais requisitos legais.

Limitações e cuidados na interpretação

Apesar de sua importância social, a aplicação da usucapião familiar exige cautela. O abandono do lar não pode ser confundido com situações em que o cônjuge ou companheiro continua a cumprir deveres relacionados ao bem ou à família, como o pagamento de pensão alimentícia ou a participação nas despesas do imóvel. O enunciado 664 da IX Jornada de Direito Civil esclarece que "O prazo da usucapião contemplada no art. 1.240-A só iniciará seu curso caso a composse tenha cessado de forma efetiva, não sendo suficiente, para tanto, apenas o fim do contato físico do imóvel".

A inaplicabilidade em casos de violência

Outro ponto sensível é a impossibilidade de aplicar a usucapião familiar em casos em que o abandono do lar resulta de situações de violência doméstica. O enunciado 595 da VII Jornada de Direito Civil destaca que "O requisito do 'abandono do lar' deve ser interpretado na ótica do instituto da usucapião familiar como abandono voluntário da posse do imóvel somando à ausência da tutela da família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável. Revogado o enunciado 499". Nesse contexto, situações em que um cônjuge é forçado a sair de casa devido a atos de violência não se enquadram no conceito de abandono.

Conclusão

A usucapião familiar constitui um importante instrumento jurídico voltado à proteção da moradia e à promoção da dignidade humana. Embora apresente requisitos específicos e limite sua aplicação a casos bem delimitados, seu objetivo é claro: Resguardar aqueles que, diante de uma situação de abandono, assumem integralmente a responsabilidade pela manutenção do lar. Contudo, é essencial que sua utilização seja feita de forma criteriosa, respeitando os princípios constitucionais e evitando interpretações que possam desvirtuar o instituto.

Charys Baldissera

VIP Charys Baldissera

Formada em Administração e Direito, pós-graduada em Direito Civil. Especialista em Direito Imobiliário, Sucessório e de Família, com foco em soluções patrimoniais e familiares.

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