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O custo da anistia no Brasil

A anistia em 1979 visava a "redemocratização" e custou o esquecimento. A anistia em 2025 é inoportuna, enfraquece a democracia e será uma vergonha.

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Atualizado às 13:15

A anistia em 1979

A partir de 1974 teve início, de forma lenta, gradual e segura a redemocratização brasileira. Foi um período de transição, pois havia a necessidade de controlar militares linha dura que se opunham a redemocratização, e também porque havia um temor de que radicais de esquerda chegassem ao poder.

Nesse período da transição brasileira foi muito utilizada a expressão "reconciliação", que representava um esforço para reduzir confrontos entre civis e militares, e instalar uma nova capacidade de diálogo na sociedade brasileira.

Na verdade esse período de reconciliação não foi pacífico, pois setores radicais resistiam a distensão política no país e promoviam eventos para causar insegurança e desestabilização no país. Um desses eventos, ocorrido em 1981, ficou conhecido como "Atentado do Riocentro", onde uma bomba que seria instalada em local de um show no Riocentro, acabou explodindo dentro de um carro com dois militares que a transportavam.

Evidentemente, havia uma questão a ser tratada nesta transição que dizia respeito a responsabilização por todos os atos de violência até então praticados. A redemocratização teria um preço: o silêncio.

Sabe-se, na atualidade, com absoluta segurança, através de profunda e exaustiva investigação realizada pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, instituída pela lei 9.140/1995, que o país contabiliza a morte de 202 pessoas, e o desaparecimento de 232 pessoas, todas com participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, totalizando 434 mortes e desaparecimentos1. Contudo, de todos os trabalhos de comissões que se formaram país à fora, a conclusão é uníssona, no sentido de que estes números são muito maiores. Na luta dos camponeses, existem relatos informando, seguramente, mais de 1780 mortes, entre 1964 e 1986. E, também, há o caso das pessoas que morreram no exílio, que somam, aproximadamente, 30 pessoas.

Além dessas mortes e desaparecimentos, havia ainda a questão das pessoas que foram obrigadas a abandonar seus lares, suas profissões e suas famílias para buscar refúgio em outros países. Os números não são precisos porque a fuga não é documentada, mas organismos de renome estimam que entre 5 mil e 10 mil pessoas encontravam-se exiladas em outros países.

A lei da anistia (lei 6.683/1979) "resolveu" esses dois pontos da pauta da transição brasileira.

Em 1978 foi criado o Comitê Brasileiro pela Anistia através do envolvimento de diversos setores da sociedade civil. Talvez um jogo a ser jogado, pois a anistia propugnada tinha por objeto anistiar/perdoar presos e perseguidos políticos que estavam nessa condição em razão da vigência de atos institucionais de um governo não eleito.

O movimento pela anistia no Brasil, se estendeu a outros países, e foi protagonizado por estudantes, jornalistas, políticos de oposição, e sobretudo por filhos, mães, esposas e amigos de presos políticos para defender uma anistia ampla, geral e irrestrita a todos os brasileiros presos, perseguidos e exilados no período da repressão política.

Assim, em junho de 1979 o general João Batista Figueiredo, na época presidente da República, encaminhou ao Congresso Nacional um projeto de anistia perdoando todos os que cometeram crimes políticos entre 2/9/1961 e 15/8/1979, ou seja, perdoando quem injustamente estava preso ou perseguido com fundamento nos abjetos atos institucionais. Mais do que isso, a lei também perdoava os perseguidores e torturadores2.

Assim, a lei da anistia, fruto dos movimentos civis antes mencionados, que num primeiro momento poderia representar uma vitória da democracia, pois permitia o retorno de exilados políticos e restituía os direitos políticos, os empregos públicos aos agentes contrários ao regime, na verdade continha um outro viés.

Com efeito, a lei da anistia foi cuidadosamente engendrada por um dos intelectuais da ditadura, o general Golbery do Couto e Silva. A lei da anistia acabou se transformando num instrumento para afastar a responsabilização de todos os agentes da ditadura que descumpriram e feriram todos os princípios e preceitos que regem a humanidade. Com pretextos e argumentos de pacificação e de reconciliação, a aprovação da lei da anistia acabou propiciando que nenhum dos crimes políticos, inclusive os "conexos" viessem a ser investigados e punidos. Portanto, a lei da anistia perdoou também os opressores, torturadores e homicidas, o que fere preceitos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que não aceita normativos que estabeleçam a "auto-anistia".

Há que se reconhecer que a lei 6.683/1979 (lei da anistia), a pretexto de favorecer uma reconciliação e pacificação nacional, na verdade acabou por promover o esquecimento - é uma espécie de "deixa pra lá". Contudo a lei 9.140/1995, que instalou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, veio minimizar os danosos efeitos da lei da anistia, na medida em que propôs o resgate e a preservação da memória.

A anistia em 2025

Passados mais de 45 anos da promulgação da lei 6.683/79, novas iniciativas de lei de anistia são propostas, sendo que quatro iniciativas tramitam no Senado Federal, e sete na Câmara dos Deputados. Todas as iniciativas estão relacionadas com os atos e crimes antidemocráticos praticados a partir de 2022 e que culminaram com a tentativa de golpe de Estado em 8/1/23. Algumas iniciativas são abrangentes e concedem ampla e irrestrita anistia, e outras são mais comedidas de modo que a anistia tenha por objeto o perdão apenas a alguns tipos penais - Vide didático e esclarecedor artigo no Migalhas 6.0713.

No Senado, para cada projeto há uma consulta pública possibilitando que casa cidadão manifeste sua opinião, o que é de fácil acesso em https://www12.senado.leg.br/ecidadania/principalmateria. A Câmara dos Deputados também possui tecnologia para consultar a opinião pública, acessível em https://www.camara.leg.br/enquetes/. Você, brasileiro, pode participar em ambos os sistemas manifestando sua opinião utilizando login e senha do GOV.BR.

Tais projetos são uma investida para perdoar quem já foi condenado pelos recentes crimes e contravenções contra o Estado Democrático de Direito. É uma espécie de trancamento de ação penal para beneficiar quem ainda não foi julgado. É claramente o reconhecimento de um "excesso"4 e a busca de um perdão gratuito, reintegrando direitos civis e mandatos e impedindo novas cassações. A anistia é uma espécie de TAC5 sem contrapartida. Diferentemente de 1979 em que o perdão foi uma condicionante para um bem maior, a redemocratização, a anistia agora acabará por justificar a violência praticada em 8/1/23.

É um perdão gratuito porque não há um reconhecimento dos crimes praticados por parte dos agraciados. Não há um pedido de perdão, ou um pedido de desculpas à Nação. Antes pelo contrário, a anistia terá o efeito de justificar a violência em nome da liberdade de expressão, e servirá para fortalecimento das pautas que tanta instabilidade promoveram no país, tais como a descrença na segurança das urnas e do sistema eleitoral brasileiro6, e a apologia a propostas antidemocráticas como o fechamento do Congresso e do STF. A anistia promoverá encorajamento à prática do excesso. Se aprovado, será a instituição do "não dá nada".

Conclusão

Se a anistia em 1979 custou o esquecimento em troca da redemocratização, em 2025 será gratuita e proporcionará uma enorme vergonha no palco internacional, pois diante dos fatos irrefutáveis de 8/1/23, a anistia seria um péssimo exemplo a outros países, e a outras democracias.

Recepciono o debate sobre suspeição de juiz ou ministro, de cerceamento da prova e sobre dosimetria das penas, mas negar a violência que ocorreu, isso não dá, porque é um fato. Não há como dizer que o crime de dano ao patrimônio foi uma manifestação ordeira e pacífica. Não dá pra dizer que atos antidemocráticos têm guarida na liberdade de expressão.

É necessário reconhecer que os direitos fundamentais não são direitos absolutos. O direito de propriedade encontra exceções; a liberdade de expressão encontra limites, o direito de locomoção, o acesso à informação, o exercício profissional, e assim por diante, todos encontram limites na própria ordem constitucional.

Portanto, a proposta de anistia implicitamente reconhece a violência praticada, como se absoluto fosse o direito de expressão, o que sabidamente não é. E por tal razão a sugestão da anistia é investida alheia as melhores técnicas jurídicas de solução de conflitos jurídicos.

Ao contrário da anistia de 1979, que visava a "redemocratização", a lei na anistia agora, tem o efeito justamente de enfraquecer a democracia, perdoando os atos de quem não respeitou o resultado do processo eleitoral de 2022. A anistia agora é inoportuna e implicará na concessão de um perdão obsequioso a quem manterá a mesma pauta antidemocrática de outrora. Portanto é gratuita e vergonhosa.

_________

1 Conforme https://apublica.org/2024/10/passa-de-10-mil-procuradora-propoe-recontar-mortos-na- ditadura/

2 Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. (Grifei).

3 Em   https://www.migalhas.com.br/quentes/426908/anistias-no-brasil-demoraram-em-media-2-anos-para-serem-concedidas  de modo muito didático está disponível um gráfico com autorias, nº do PL e respectivos objetos, e sobretudo um levantamento histórico dos processos de anistia no Brasil.  

4 A iniciativa do Senador Marcio Bittar (PL1.068/2024) reconhece expressamente, na justificativa, que houve violência ao reconhecer que nos atos de 8 de janeiro de 2023 "uma pequena parcela dos manifestantes se envolveu em atos violentos".

5 Termo de ajustamento de conduta - um ajuste disciplinar.

6 O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assinou decreto que modifica o sistema eleitoral dos EUA com foco na prevenção de fraudes eleitorais. O texto menciona o Brasil como exemplo positivo na aplicação de sistemas de segurança nas eleições, especificamente o uso da biometria. Informação disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2025-03/trump-muda-regras-e- elogia-seguranca-do-sistema-eleitoral-do-brasil

7 BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. Porto Alegre: Medianiz, 2012.

8 CANOTILHO, J. J. Gomes. SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; MENDES, Gilmar Ferreira. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

9 COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS. Consultado em https://www.gov.br/participamaisbrasil/cemdp

10 FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. 2ª edição. São Paulo, Editora Universidade de São Paulo, 2012.

11 GASPARI, Élio. A ditadura escancarada. 2ª ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

12 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição,   Traduzido pelo Ministro Gilmar Mendes do STF, Porto Alegre: Sérgio Antonio FabrisEditores, 2009

13 OEA. Pacto de San José da Costa Rica. 1969. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/anexo/and678- 92.pdf

14 ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos.1948. Disponível em https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos- humanos

15 ONU. Estatuto Internacional dos Refugiados. 1951.Disponível em https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convenca o_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf

16 Relatório Azul. Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. 1999/2000.

17 Relatório Azul. Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. 2011.

18 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais.

19 Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora,2012.

20 SODRÉ, Nelson Werneck. Ditadura - vinte anos de autoritarismo no Brasil. 2ª edição. Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 1984.

Jefferson Oliveira Soares

VIP Jefferson Oliveira Soares

Mestrando em Direito Constitucional na UNISINOS, Especialista em Direito do Trabalho pela UNISINOS. Advogado sócio da SOARES & BAZANA Advogados Associados.

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