O papel dos magistrados na dinâmica processual e o indeferimento da desistência do recurso no âmbito do STJ
O STJ inova ao permitir o indeferimento da desistência de recursos, desafiando o princípio da inércia e a autonomia da parte no processo.
quarta-feira, 9 de abril de 2025
Atualizado às 13:07
A correta identidade de um sistema judicial envolve a definição do papel dos magistrados na dinâmica processual. Em alguns ordenamentos, os magistrados exercem maior protagonismo; noutros, a atuação do julgador se sobressai menos (BARBOSA MOREIRA, 2003). Um claro exemplo da dualidade entre o papel de protagonista ou espectador do julgador no exercício da atividade jurisdicional envolve a questão da possibilidade de a parte desistir do seu recurso.
Recentemente, o STJ voltou a apreciar o tema. Quando do julgamento do REsp. 2.172.296-RJ, a 3ª turma da Corte, em sessão realizada no dia 4 de fevereiro de 2025, seguindo o entendimento da relatora, a ministra Nancy Andrighi, inovou acerca da interpretação a ser dada ao art. 998, caput, do CPC, consignando que o relator pode indeferir a manifestação de desistência do recurso para prosseguir com a análise das razões recursais em qualquer hipótese, ainda que o dispositivo de lei federal interpretado consigne que "o recorrente poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso".
Em 2008, o STJ já tinha firmado o entendimento de que o indeferimento da desistência é possível no julgamento da Questão de Ordem no REsp. 1.063.343-RS, também de relatoria da ministra Nancy Andrighi. Contudo, à época, a Corte restringiu esta possibilidade aos casos em que o recurso especial esteja afetado à sistemática dos recursos repetitivos, conforme acórdão publicado em 4 de junho de 2009.
A grande novidade está, portanto, no reconhecimento de que o indeferimento da desistência pode ocorrer mesmo sem ter havido afetação do recurso à sistemática dos repetitivos, contemplada no art. 998, parágrafo único, do CPC, ao dispor que "a desistência do recurso não impede a análise de questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e daquele objeto de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos". No caso analisado, o indeferimento ocorreu antes mesmo da inclusão do recurso em pauta para julgamento.
De acordo com a 3ª turma, o indeferimento é adequado quando (I) se tratar de tema nunca enfrentado na Corte (leading case), (II) houver indícios de estratagema a evitar jurisprudência em pedidos de desistência homologados anteriormente, (III) o sorteio de relatoria preceder a apresentação do pedido de desistência e (IV) houver forte interesse público no enfrentamento do objeto recursal.
A inovação vai na contramão da literalidade do art. 998 do CPC e foi decidida em questão de ordem, permitindo o julgamento de mérito do caso a despeito da vontade da parte recorrente, que desistiu do recurso em momento anterior à sua inclusão em pauta.
A solução aplicada acirra um embate histórico entre a doutrina e a jurisprudência do STJ, que perdura desde o CPC/73, que já previa a possibilidade de desistência do recurso "a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes" (art. 501).
Para o STJ, a interpretação do art. 998 do CPC deve estar alinhada à Constituição Federal e à missão institucional da Corte, qual seja, ocupar posição que transcende a última palavra em âmbito infraconstitucional, tendo o dever de fixar teses de direito que servirão de referência para as instâncias ordinárias de todo o país, conforme decidido no REsp. 1.721.705-SP, também de relatoria da ministra Nancy Andrighi, em acordão publicado no dia 6 de setembro de 2018.
Este papel institucional do STJ é, de fato, mais evidente quando se está diante de um julgamento afetado à sistemática dos recursos repetitivos. Para além do caso concreto, a técnica de julgamento dos repetitivos envolve a constituição de uma tese de direito formada no presente, direcionada a regrar e fundamentar a atuação do estado em sua função jurisdicional no futuro (FARIA, 2021). Justamente com este olhar, a Corte Especial do STJ já decidiu pela inviabilidade de acolhimento de desistência recursal manifestada quando iniciado o julgamento do Recurso Especial representativo da controvérsia, consoante acórdão da Questão de Ordem no REsp. 1.063.343-RS, também de relatoria da Min. Nancy Andrighi, publicado em 4 de junho de 2009.
Ocorre, porém, que o protagonismo do STJ deve se vincular aos limites do sistema de legalidade (DINAMARCO, 2023). Vigora no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da inércia, que é vital para a manutenção de um sistema judiciário justo e imparcial. Em sua essência, ele assegura que a atuação judicial esteja limitada às solicitações das partes, preservando, assim, a neutralidade do magistrado.
Assim, quando o STJ indefere a desistência manifestada em um processo cujo pronunciamento judicial vai regrar uma relação jurídica constituída tão somente entre as partes, como é o caso do REsp. 2.172.296-RJ, há, em verdade, uma violação legal (DINAMARCO, 2023).
Para a doutrina majoritária, a desistência é ato unilateral da parte que sequer está sujeito a homologação - isto tanto na vigência do art. 501 do CPC/1973, quanto com o advento do art. 998 no CPC.
Barbosa Moreira esclarece que a desistência do recurso é incondicionada e produz efeitos de imediato, sendo a decisão homologatória de natureza declaratória, e não constitutiva (BARBOSA MOREIRA, 2002). José Roberto dos Santos Bedaque sustenta que, mesmo na hipótese de direito material indisponível, o princípio da inércia da jurisdição deve persistir, não tendo o interesse do Estado naquela relação jurídica específica capacidade de influir em maior poder de iniciativa do magistrado (BEDAQUE, 2011). José Rogério Cruz e Tucci prescreve que, excetuando-se a hipótese do art. 988, parágrafo único, do CPC, sempre deve prevalecer a vontade do recorrente, mesmo que o objeto do recurso esteja vinculado a matéria de ordem pública (CRUZ E TUCCI, 2024).
As ressalvas propostas por Bedaque e Cruz e Tucci são fundamentais para a correta análise das quatro condicionantes estabelecidas pelo recente julgamento da Terceira Turma do STJ. Não há diferença se o caso é inédito, a desistência é estratégica, a motivação decorre do sorteio da relatoria ou, sobretudo, se está presente relevante interesse público. Faz-se necessária a prevalência da inércia da jurisdição e a vontade do recorrente de não ver o seu recurso julgado.
A inércia da jurisdição impõe que o julgador atue apenas mediante provocação (WAMBIER, 2016) e todo pronunciamento que exceda os limites objetivos da demanda configura violação ao princípio, porque implica atuação jurisdicional sem provocação (BEDAQUE, 2018). O processamento e o julgamento do recurso após a desistência da parte configuram pronunciamento judicial sem provocação e, portanto, violação à inércia. A própria Terceira Turma do STJ já decidiu pela natureza declaratória da decisão que recebe a desistência do recurso, de modo que a insurgência passa a não mais existir a partir do momento, conforme julgamento do REsp. 2.119.389-SP, com acórdão publicado em 26 de abril de 2024.
Parte da doutrina estende a possibilidade de desistência do recurso até mesmo para a hipótese do art. 988, parágrafo único, do CPC, afirmando que, apesar do prosseguimento da análise da questão jurídica afetada à sistemática dos recursos repetitivos, haveria uma modulação imediata para o resultado do julgamento não se aplicar ao caso concreto, no qual se manifestou a desistência (DIDIER, 2024). Essa conclusão foi consignada no enunciado 213 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, ao dispor que "no caso do art. 998, parágrafo único, o resultado do julgamento não se aplica ao recurso de que se desistiu".
Assim, o julgamento do REsp. 2.172.296-RJ pela 3ª turma do STJ revela um preocupante ponto de inflexão no debate acerca do papel do magistrado na condução processual. Ao permitir o indeferimento da desistência de qualquer recurso, mesmo com a autorização expressa do caput do art. 998 do CPC, o posicionamento do STJ vai na contramão do princípio da inércia da jurisdição e afronta a autonomia da vontade do recorrente no que tange ao processamento ou não do seu recurso.
Maricí Giannico
Sócia do Mattos Filho.
Fernando Dantas M. Neustein
Sócio do Mattos Filho.
Lucas Cordeiro de Sousa
Advogado do Mattos Filho.




