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Computação quântica e IA: Regulação e potencialidades

A computação quântica revolucionará o Direito: Da segurança com criptografia pós-quântica à análise de contratos e vigilância avançada. Advogados devem liderar essa transformação.

domingo, 20 de abril de 2025

Atualizado em 17 de abril de 2025 14:14

Introdução

A emergência da computação quântica como paradigma disruptivo no processamento de informação desafia os limites da computação clássica, prometendo redefinir fronteiras científicas, econômicas e sociais. Ao explorar fenômenos quânticos como superposição, emaranhamento e interferência, essa tecnologia não apenas amplifica exponencialmente a capacidade de resolver problemas intratáveis para sistemas binários, mas também redefine a própria noção de IA - inteligência artificial. A convergência entre computação quântica e IA - encapsulada no aprendizado de máquina quântico (QML) - inaugura um horizonte de possibilidades que transcende a aceleração algorítmica, propondo reformulações radicais em representação de dados, otimização e modelagem de sistemas complexos. Contudo, esse potencial está entrelaçado com desafios técnicos monumentais, dilemas éticos nascentes e um cenário geopolítico marcado por competição estratégica e investimentos bilionários.

Desde os alicerces teóricos estabelecidos por Feynman e Deutsch até as recentes demonstrações de supremacia quântica, a jornada da computação quântica revela uma dualidade: enquanto algoritmos como o de Shor ameaçam desestabilizar sistemas criptográficos globais, avanços em simulação quântica e QML apontam para revoluções na descoberta de fármacos, otimização logística e processamento de linguagem natural. No cerne dessa revolução estão os qubits, unidades quânticas que, em sua superposição coerente e correlações não locais, permitem a exploração paralela de espaços de Hilbert de dimensão exponencial. Plataformas como circuitos supercondutores, íons aprisionados e fótons polarizados disputam primazia técnica, enquanto a era NISQ - Noisy Intermediate-Scale Quantum impõe uma realidade pragmática: sistemas ruidosos e limitados exigem abordagens híbridas que integrem clássico e quântico em sinergia.

A intersecção com a IA amplifica tanto promessas quanto paradoxos. Algoritmos quânticos variacionais, redes neurais quânticas e kernels de alta dimensionalidade sugerem vantagens em tarefas de classificação, regressão e geração de dados. No entanto, obstáculos como o gargalo de E/S, barren plateaus em otimização e a escassez de benchmarks práticos revelam uma lacuna entre teoria e aplicação. Paralelamente, a corrida por vantagem quântica prática alimenta investimentos globais, com iniciativas como o Quantum Flagship europeu, a National Quantum Initiative estadunidense e os megaprojetos chineses redefinindo a geopolítica tecnológica. Governos e corporações não apenas buscam liderança científica, mas também enfrentam dilemas regulatórios urgentes - da criptografia pós-quântica à governança ética de sistemas quânticos de IA.

Este artigo examina criticamente essa paisagem multifacetada, estruturando-se em quatro eixos: (1) os fundamentos da computação quântica e sua sinergia com a IA; (2) as potencialidades transformadoras em setores estratégicos; (3) os desafios técnicos, teóricos e socioeconômicos que limitam a maturidade da tecnologia; e (4) o panorama global de pesquisa, investimentos e regulação emergente. Ao sintetizar avanços recentes e debates contemporâneos, busca-se não apenas mapear o estado da arte, mas também estimular reflexões críticas sobre os caminhos para uma adoção responsável e equitativa dessas tecnologias, cujo impacto promete reconfigurar - para bem ou para mal - o século XXI.

1. O que é computação quântica?

Antes de mergulharmos na computação quântica, é útil entender dois conceitos fundamentais. Primeiro, o que significa "quântico"? A palavra deriva do latim "quantus", que significa "quanto" ou "que quantidade". Na física, um "quantum" (plural: "quanta") é a menor unidade indivisível de algo, como energia ou matéria (Close, 2007). A mecânica quântica é o ramo da física que descreve como a natureza se comporta nessas escalas incrivelmente pequenas, as dos átomos e partículas subatômicas. As regras nesse reino são muitas vezes bizarras e contraintuitivas em comparação com o mundo que experimentamos diretamente, envolvendo probabilidades, superposições e conexões estranhas (Gilder, 2008). A computação quântica busca justamente aproveitar essas regras peculiares do mundo microscópico para processar informações de uma maneira nova e potencialmente muito mais poderosa.

Segundo, precisamos entender o "bit", a base dos computadores que usamos todos os dias. Pense em um interruptor de luz: ele pode estar ligado ou desligado. Um bit clássico é exatamente isso: uma unidade de informação que só pode ter um de dois valores possíveis, tipicamente representados como 0 ou 1 (Petzold, 1999). Toda a informação em seu computador, celular ou tablet - textos, imagens, vídeos - é codificada como longas sequências desses 0s e 1s. A grande limitação é que um bit só pode ser 0 ou 1 em um determinado momento, nunca ambos ao mesmo tempo (Petzold, 1999). É aqui que a computação quântica introduz uma mudança radical com o "qubit".

A computação quântica representa uma abordagem fundamentalmente nova ao processamento de informações, explorando fenômenos da mecânica quântica para realizar certos tipos de cálculos de forma mais eficiente que os computadores clássicos (Nielsen; Chuang, 2010). A natureza quântica dos qubits permite que eles existam em uma superposição linear dos estados 0 e 1, significando que um único qubit pode representar uma combinação de ambos os valores simultaneamente até que uma medição seja realizada (Preskill, 2018). Esta capacidade de superposição é uma das fontes primárias do poder computacional quântico, permitindo a exploração paralela de um vasto espaço de possibilidades (Google Quantum AI, 2023). Imagine, em vez de um simples interruptor ligado/desligado, um dimmer que pode estar em qualquer ponto intermediário, mas com a peculiaridade quântica de estar, de certa forma, em todos esses pontos ao mesmo tempo até você decidir "olhar" para ele.

Além da superposição, o emaranhamento é outro pilar essencial da computação quântica, descrevendo correlações não locais entre dois ou mais qubits (Nielsen; Chuang, 2010; Horodecki et al., 2009). Quando qubits estão emaranhados, seus destinos estão interligados de tal forma que a medição do estado de um qubit instantaneamente influencia o estado dos outros, independentemente da distância que os separa (Horodecki et al., 2009; Google Quantum AI, 2023). Este fenômeno contraintuitivo, chamado por Einstein de "ação fantasmagórica à distância", é um recurso crucial explorado por muitos algoritmos quânticos para alcançar coordenação e processamento de informações de maneiras inacessíveis aos sistemas clássicos (Horodecki et al., 2009). É como ter duas moedas mágicas: se você jogar uma e der cara, sabe instantaneamente que a outra, mesmo a quilômetros de distância, dará coroa, sem que nenhuma informação clássica precise viajar entre elas (Aczel, 2002).

A realização física de qubits é um campo ativo de pesquisa e engenharia, com diversas plataformas sendo exploradas, cada uma com suas próprias vantagens e desvantagens (Ladd et al., 2010; Wendin, 2017). Entre as abordagens mais promissoras estão os circuitos supercondutores (transmons, fluxoniums), que são pequenos circuitos elétricos resfriados a temperaturas extremamente baixas; íons aprisionados em campos eletromagnéticos, onde átomos carregados são mantidos e manipulados por lasers; átomos neutros também controlados por lasers; fótons (partículas de luz) que viajam através de circuitos ópticos; defeitos em cristais como centros de NV - nitrogênio-vacância em diamante; e os ainda mais exóticos qubits topológicos, que prometem maior robustez contra erros (Ladd et al., 2010; Wendin, 2017; Gambetta; Chow; Steffen, 2017; Nayak et al., 2008). A escolha da plataforma impacta diretamente fatores como tempo de coerência (quanto tempo o estado quântico persiste antes de ser destruído pelo ruído), fidelidade das portas quânticas (quão precisamente as operações podem ser realizadas), conectividade entre qubits (quais qubits podem interagir diretamente) e escalabilidade do sistema (a capacidade de construir sistemas com muitos qubits) (Preskill, 2018; Gambetta; Chow; Steffen, 2017). Nenhuma plataforma emergiu ainda como a vencedora definitiva, e a pesquisa continua explorando os méritos relativos de cada uma, com intensa competição entre os laboratórios e empresas (The Economist, 2023; MIT Technology Review, 2022).

As propriedades únicas de superposição e emaranhamento, manipuladas por portas quânticas (operações lógicas análogas às clássicas AND, OR, NOT, mas que operam sobre estados quânticos), permitem que computadores quânticos executem algoritmos específicos com eficiências drasticamente superiores às clássicas (Nielsen; Chuang, 2010). Algoritmos como o de Shor para fatoração de inteiros grandes (a base da segurança de muita criptografia atual) e o de Grover para busca em bancos de dados não estruturados são exemplos canônicos que demonstram o potencial de vantagem quântica para problemas específicos (Shor, 1997; Grover, 1996). Consequentemente, a computação quântica é particularmente promissora para resolver problemas complexos em simulação de sistemas quânticos (como moléculas e materiais), otimização combinatória e certas tarefas de aprendizado de máquina (IBM Research, 2021; Bauer; Bravyi; Motta, 2020), sendo esta última uma área de intensa investigação e expectativa.

Um terceiro princípio quântico fundamental explorado em algoritmos é a interferência quântica (Nielsen; Chuang, 2010). Assim como ondas de água podem se somar (interferência construtiva) para criar uma onda maior ou se cancelar (interferência destrutiva), as "ondas de probabilidade" associadas aos estados quânticos podem fazer o mesmo. Algoritmos quânticos são projetados de forma inteligente para orquestrar essa interferência de modo que os caminhos computacionais que levam às respostas incorretas se cancelem mutuamente, enquanto os caminhos que levam à resposta correta se reforcem, aumentando significativamente a probabilidade de medir o resultado desejado ao final do cálculo (Nielsen; Chuang, 2010; Aaronson, 2013). O algoritmo de Grover, por exemplo, utiliza habilmente a interferência para amplificar a amplitude (probabilidade) do item de busca correto em um banco de dados (Grover, 1996). A capacidade de controlar a interferência é crucial para muitos algoritmos quânticos, incluindo aqueles propostos para aplicações em IA.

É importante distinguir entre diferentes modelos de computação quântica. O modelo mais geral é o de computação quântica baseada em portas (gate-based), que visa construir um computador quântico universal capaz de executar qualquer algoritmo quântico, análogo a um computador clássico universal (Nielsen; Chuang, 2010). Empresas como IBM, Google, IonQ e Quantinuum estão focadas principalmente neste modelo, buscando construir máquinas flexíveis para uma ampla gama de aplicações, incluindo QML. Outra abordagem é a computação quântica adiabática, ou quantum annealing, implementada por empresas como a D-Wave Systems, que é projetada especificamente para resolver problemas de otimização, encontrando o estado de menor energia (a solução ótima ou próxima da ótima) de um sistema quântico cuidadosamente projetado que representa o problema (Das; Chakrabarti, 2008; Johnson et al., 2011). Embora menos geral que o modelo de portas, o annealing pode oferecer vantagens para certas classes de problemas de otimização no curto prazo, incluindo algumas tarefas de otimização que surgem no treinamento de modelos de IA (Hauke et al., 2020; D-Wave Systems, 2024; BBC News, 2022; Adachi; Henderson, 2015).

As raízes conceituais da computação quântica remontam às décadas de 1980 e 1990. O físico Richard Feynman, ganhador do Prêmio Nobel, propôs em 1981, durante uma palestra no MIT, a ideia visionária de usar sistemas quânticos para simular outros sistemas quânticos, argumentando que a natureza não é clássica e, para simulá-la, precisaríamos de um computador que operasse segundo os mesmos princípios quânticos (Feynman, 1982; MIT News, 2011). Pouco depois, David Deutsch, na Universidade de Oxford, formalizou a noção de um computador quântico universal (uma "Máquina de Turing Quântica") e mostrou que ele poderia realizar tarefas computacionais de forma diferente e, em alguns casos, mais eficientemente que as máquinas de Turing clássicas (Deutsch, 1985). Esses trabalhos seminais, juntamente com o desenvolvimento de algoritmos chave como os de Shor (que chocou a comunidade de criptografia) e Grover nos anos 90, lançaram as bases teóricas para o campo florescente que vemos hoje (Shor, 1997; Grover, 1996; Physics Today, 2000). A ideia de aplicar esses princípios a tarefas de IA começou a surgir mais tarde, ganhando tração significativa nas últimas duas décadas (Biamonte et al., 2017).

Um aspecto crucial e muitas vezes desconcertante da mecânica quântica é o ato da medição. Enquanto um qubit pode estar em superposição de 0 e 1 durante o cálculo, assim que tentamos "ler" seu valor, o estado quântico "colapsa" para um dos estados clássicos (0 ou 1) com uma certa probabilidade determinada pelas amplitudes quânticas (Nielsen; Chuang, 2010; Jaeger, 2007). Esse processo é irreversível e destrói a superposição original. Isso significa que não podemos simplesmente "ver" todo o paralelismo quântico diretamente; os algoritmos precisam ser projetados para que a resposta desejada tenha alta probabilidade de ser obtida quando a medição final é realizada (Jaeger, 2007). O "problema da medição" - o que exatamente causa o colapso e a transição do quântico para o clássico - ainda é um tópico de debate filosófico e de pesquisa fundamental na física quântica (Schlosshauer, 2005). Em QML, isso implica que frequentemente precisamos executar um circuito quântico muitas vezes (realizar muitas "shots") para estimar estatisticamente o resultado desejado, como o valor de uma função de perda ou a classificação de um ponto de dados (Schuld; Petruccione, 2018).

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Victor Habib Lantyer de Mello

Victor Habib Lantyer de Mello

Advogado e Professor. Mestre em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Autor de dezenas de livros jurídicos. Pesquisador multipremiado.

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