Entre direitos, regras e princípios... a LLCA não deve ser interpretada como um checklist
A LLCA reforça a inclusão social via licitações, exigindo reserva de vagas e promovendo a igualdade no mercado de trabalho com base em ações afirmativas.
quarta-feira, 23 de abril de 2025
Atualizado em 22 de abril de 2025 15:19
A inclusão de pessoas com deficiência, reabilitados da previdência social e jovens aprendizes no mercado de trabalho é um tema de crescente relevância social, econômica e jurídica. O ordenamento brasileiro já tratava da reserva de cargos tanto na CLT - Consolidação das Leis do Trabalho quanto na lei 8.213/1991 (lei de planos de benefícios da previdência social). Contudo, com a lei 14.133/21 (LLCA - Lei de Licitações e Contratos Administrativos), o tema ganhou outro status na relação entre o público e o privado.
No art. 63, IV, da LLCA, ficou estabelecido que, já na fase de habilitação das licitações, o licitante deve declarar o cumprimento das exigências relativas à reserva de cargos para pessoa com deficiência e para o reabilitado da previdência social. Já o art. 92, XVII, determina que, em todos os contratos administrativos, devem constar cláusulas que estabeleçam: a obrigação de o contratado cumprir as exigências de reserva de cargos previstas em lei, bem como em outras normas específicas, para pessoa com deficiência, para reabilitado da previdência social e para aprendiz.
É sabido que existem discriminações estruturais que atingem esses e outros grupos sociais, e que uma das maneiras mais eficazes de mitigá-las ou corrigi-las são políticas públicas que se manifestam por ações afirmativas, como a reserva de vagas e cargos. Também já se tem clareza de que, na ausência de regulamentação, as chances de mudar tais realidades são mínimas.
No caso das pessoas com deficiência, as barreiras de acesso ao mercado de trabalho são uma realidade constrangedora. Além da exclusão e da marginalização históricas, mesmo quando são capazes de realizar tarefas, enfrentam discriminação e preconceito desde os processos seletivos. Empresas relutam em implementar as mínimas adaptações, em diversos níveis, que garantam acessibilidade e inclusão, geralmente utilizando-se de argumentos vinculados aos custos financeiros envolvidos em sua operacionalização.
Portanto, o legislador afirmou enfaticamente, por intermédio da LLCA, o compromisso inequívoco do Estado brasileiro com a efetiva inclusão de determinados grupos sociais e transformou a licitação em um instrumento de política pública para a promoção da diversidade e da igualdade no mercado de trabalho.
Sem dúvida, a denominada habilitação social é uma das grandes inovações introduzidas pela lei 14.133/21, merecendo proteção e máxima atenção, seja da Administração Pública, dos licitantes ou dos órgãos de controle externo.
Assim, pareceu uma decisão simples para o TCU - Tribunal de Contas da União resolver a representação em processo licitatório, no qual se apontava irregularidade na habilitação de empresa que, ao juntar certidão expedida pelo MTE - Ministério do Trabalho e Emprego, não comprovou o atendimento ao percentual de reserva de cargos exigido pela LLCA.
Entretanto, constatou-se que, mesmo em temáticas muito bem regulamentadas na legislação e na jurisprudência, a melhor resposta está na capacidade de analisar e julgar os fatos levando em conta suas peculiaridades, e não se aferindo com excessiva objetividade, como se faz com um checklist.
Uma legislação complexa como a LLCA não pode ser interpretada sem técnica, sem levar em conta sua totalidade, suas regras e seus princípios!
É famosa a frase do ministro aposentado do STF Eros Grau: "Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços." Também ensina Jacoby Fernandes, em seu Tratado de Licitações e Contratos Administrativos, da Editora Fórum (p. 124): Infelizmente, observa-se que a Lei de Licitações tem sido, com muita frequência, examinada, decidida e aplicada por profissionais que não tiveram formação jurídica para aplicar os princípios na interpretação. Desconsideram o processo de interpretação sistêmica e acabam isolando um dispositivo ou um princípio.
Foi o que se observou no caso objeto do acórdão 523/25 - TCU-plenário. O brilhante voto do relator, ministro Jorge Oliveira, demonstrou que, com base na lei 14.133/21, o procedimento licitatório não deve ser entendido como mero procedimento burocrático, mas como um instrumento para a promoção e a concretização de valores constitucionais.
Por isso, todas as exigências contidas no texto normativo, inclusive as relativas à reserva de cargos, devem respeitar seus princípios explícitos (art. 5º), no caso específico: o interesse público, a economicidade e a competitividade. Logo, na fase de habilitação, basta a declaração formal da empresa quanto ao cumprimento da cota legal, tendo presunção de veracidade com fundamento na boa-fé e na lealdade processual, mesmo que sem caráter absoluto.
Questionamentos quanto à veracidade da autodeclaração são admissíveis, sendo dever dos agentes licitatórios considerá-los, contudo, garantindo o devido contraditório. Assim, mesmo reconhecendo a relevância da certidão do MTE, não é cabível que seja tomada como único meio hábil de comprovação quanto ao requisito da reserva de cargos, pois retrata apenas um momento da situação, o que não automatiza a inabilitação do licitante.
Por fim, o voto acolhido e acordado entre os ministros do TCU reforça a necessidade de se buscar a "verdade material", respaldando a apresentação de provas que reafirmem a declaração da empresa, sem esquecer, todavia, que são reconhecidos os "esforços efetivos" para o preenchimento das vagas protegidas, mesmo que não atinjam o resultado exigido.
Conclui-se que a aplicação da LLCA não pode se reduzir a um simples checklist de procedimentos, pois impõe a todos os atores do processo uma análise criteriosa e sensível, dedicada ao contexto de cada licitação, valorizando não só o cumprimento formal de determinadas exigências, mas a efetivação de suas finalidades, objetivos e princípios.
E, mesmo que o objetivo seja simplificar procedimentos e abreviar tramitações, o compromisso com a verdade material requer dedicação, responsabilidade e trabalho. Cabe a lembrança do que escreveu Clarice Lispector: "Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho."
Giussepp Mendes
Advogado especialista em direito administrativo público.


