Os efeitos dos atos ilícitos civis nas fraudes contra os planos de saúde
As fraudes, perpetradas contra as operadoras de saúde, são consideradas atos ilícitos passiveis de efeitos previstos no ordenamento jurídico, os quais não se restringem ao espectro do dever de indenizar, decorrente da responsabilidade civil.
terça-feira, 6 de maio de 2025
Atualizado em 5 de maio de 2025 13:55
O ordenamento jurídico, por meio da eficácia de suas normas, tem por função precípua manter, além da ordem na sociedade, a proteção aos direitos fundamentais1. No entanto, se houver comportamentos considerados desleais, por meio dos atos considerados ilícitos, haverá, por consequência, violação aos direitos previstos no referido ordenamento, conforme previsão do art. 186 do CC2.
Acerca do ato ilícito civil, Jose Carlos Van Cleef de Almeida Santos e Luís de Carvalho Cascaldi adotam o seguinte conceito:
"O ato ilícito é espécie de fato jurídico humano e pode ser conceituado como a conduta em desacordo ou contrário ao ordenamento jurídico, que acarreta dano ao direito de outrem."3
O dano, decorrente da ilicitude praticada pelo ato, pode gerar efeitos. Diante disso, necessário que haja uma recomposição por meio de preceitos preestabelecidos pela própria legislação para reparação do dano, pois a eficácia tem um papel relevante, uma vez que por meio dela, investe-se contra o ato considerado ilícito.
No panorama da análise das leis, entendemos que, atualmente, há uma interdisciplinaridade entre o Direito Civil e o Direito Constitucional, ou seja, tais ramos do Direito mantêm um diálogo entre si, visando proteger as relações jurídicas, sobretudo a dignidade da pessoa humana, erigida a princípio fundamental, conforme o art. 1º, inciso III da CF/884. Fato é que diante de tal influência, do Direto Constitucional sobre o Direito Civil, necessário que nas relações de Direito Privado, sobretudo as contratuais, além dos preceitos como a boa-fé, necessário um olhar para os direitos fundamentais, previstos título II da nossa lei fundamental, com base na eficácia horizontal dos direitos fundamentais, sem olvidar a razoabilidade.
Logo, diante de tal evolução e progressão apresentada, ao operador do Direito, cabe no momento da interpretação das normas da legislação civil ao caso concreto, o dever de adaptá-las a realidade atual, para que as normas não se tornem obsoletas e não fique preso a dogmas incontroversos, uma vez que nas relações privadas, disciplinadas pelo Direito Civil, podemos definir como um sistema aberto e exemplificativo, pois não se restringe a um rol taxativo.
Sendo assim, há uma flexibilidade do Direito Civil, no qual suas normas não ficam restritas às regras, além da influência constitucional, podem ainda se basear em princípios, o que as tornam mais adaptáveis a realidade, para que assim, fiquem suscetíveis para regular e proteger direitos frente à concretude das complexidades que permeiam as relações privadas e garantir a segurança jurídica. Para tanto necessário verificar a eficácia das normas, já que revela a sua potencialidade para ser aplicada aos casos concretos, e, assim, atinja os seus objetivos.
No que tange ao princípio da boa fé na relação contratual de saúde suplementar, a operadora, além de empregar as diligências necessárias para com os prestadores de serviços de saúde, por desiderato oferece atendimento satisfatório, visando atender, assim, as legitimas expectativas dos beneficiários. No entanto, esse vínculo pode ser rompido, diante da fraude empregada, seja pelo beneficiário, seja pelo prestador de saúde, por meio de conduta contraria aquela que se espera na celebração do contrato e, por consequência, ao ordenamento jurídico.
Visando por fim as fraudes, a lei 9.656/98, que disciplina os planos de saúde, autoriza a rescisão do contrato por parte das operadoras dos planos de saúde, no art. 13, parágrafo único, inciso II, que aduz para os planos individuais:
Art. 13: ...
Parágrafo único. Os produtos de que trata o caput, contratados individualmente, terão vigência mínima de um ano, sendo vedadas:
II - a suspensão ou a rescisão unilateral do contrato, salvo por fraude..."
Cumpre informar que a referida lei, para a sua perfeita aplicação, é complementada, com base na discricionariedade do poder normativo do Direito Administrativo e a interpretação extensiva, por meio da RN ANS 557/22, que aduz para os planos empresariais e por adesão:
Art. 24. Caberá à pessoa jurídica contratante solicitar a suspensão ou exclusão de beneficiários dos planos privados de assistência à saúde coletivos.
Parágrafo único. As operadoras só poderão excluir ou suspender a assistência à saúde dos beneficiários, sem a anuência da pessoa jurídica contratante, nas seguintes hipóteses:
I - fraude;
Por conseguinte, procuramos dimensionar os atos ilícitos contra as normas civis de acordo com a eficácia, uma vez que os efeitos da ilicitude não se restringem tão somente ao espectro do dever de indenizar, que decorre da responsabilidade civil, pois na órbita do Direito Civil, as normas têm mais versatilidade.
Nesse sentido, de acordo com a proposta de Felipe Peixoto Braga Netto, os atos ilícitos podem produzir efeitos, os quais podem ser indenizante, caducificante, invalidante e autorizante5.
O primeiro deles, considerado o mais importante sob enfoque sociológico, o efeito ilícito indenizante é aquele que produz o dever de indenizar decorrente da conduta do agente6, podendo ainda produzir como efeito o dever de ressarcir, em detrimento da fraude7.
Tal efeito possibilita a operadora de saúde retornar o seu patrimônio ao status a quo, ou seja, restabelecer, na devida forma, os valores que foram violados antes da fraude. Como envolve valores financeiros, o ilícito pode ocorrer, por exemplo, na adulteração nas informações do paciente como o tempo de internação ser além do período real ou procedimentos que sequer foram realizados como terapias ou fisioterapias de modo corriqueiros, o que despende valores do plano de saúde (dano material).
Já o efeito do ilícito caducificante está relacionado com a perda do direito ou sua eficácia nas relações jurídicas, decorrentes de um ato ilícito praticado. Tal efeito se reveste de sanção para aquele que praticado o ato.
Como exemplo, seria a utilização do plano por pessoa diversa que não o beneficiário, por meio da carteirinha do convênio médico, o que configura o ilícito, autorizando assim à operadora de saúde, de forma direta e imediata, resolver o contrato e cancelar o plano.
O efeito decorrente do ilícito invalidante, por sua vez, pode ser considerado aquele que ausente um dos requisitos essenciais ou algum defeito presente pode comprometer a sua eficácia, por consequência, a validade do negócio jurídico. Podemos citar como exemplo, o prestador de serviço de saúde, por meio de termo de autorização ou outro documento similar, no qual, exerce coação8 ao beneficiário (se houver negativa no preenchimento, o atendimento não poderá ser realizado), forçando-o para que informe o login e senha do aplicativo do plano de saúde e assim possa realizar o reembolso assistido, o que pode desencadear inúmeras fraudes, tais como informar a operadora de saúde procedimentos que sequer foram realizados, ou quando realizados, o valor excede ao custo médio do mercado. A coação, exercida sobre o paciente, para fornecimento dos seus dados, pode viabilizar a fraude.
E o efeito do ilícito autorizante está intrinsecamente relacionado à conduta ilícita, sem a qual o ato ilícito em si não existiria, ou seja, o ordenamento jurídico disponibiliza desforço necessário para aquele que sofre um ilícito possa repelir. Como exemplo, podemos citar a criação de empresas de fachada, com a razão social semelhante à operadora de saúde, fazendo cobranças indevidas dos planos aos beneficiários. Ou ainda, empresas com o modus operandi de praticar fraudes, realizam atendimentos fictícios, solicitam os reembolsos das despesas para o plano de saúde, por meio de notas fiscais com informações falsas. Essas condutas fraudulentas configuram o ilícito, o que autoriza à operadora de saúde empregar as diligências necessárias para combatê-las. Sem a conduta ilícita, obviamente, o direito não possibilitaria tal defesa.
Por conseguinte, considerando os atos ilícitos, as fraudes perpetradas contra as operadoras de saúde, além de causar inúmeros prejuízos de ordem econômica e desestabilização nas provisões orçamentárias, desencadeia, além de consequências jurídicas, prejuízos financeiros, que se traduz no dano material, consistente no dano emergente (diminuição significativa do patrimônio) ou lucro cessante (redução de receitas econômicas).
Estima-se ainda que as operadoras percam quantias vultosas decorrentes das fraudes. Segundo um estudo realizado pelo Instituto de Estudos de Saúde Suplementar apurou que no ano de 2022 as operadoras tiveram prejuízos estimados entre 30/34 bilhões de reais, decorrentes das fraudes, o que compromete 12,7 % das receitas do setor das operadoras de saúde9.
Por derradeiro, entendemos que a boa-fé10, que sustenta as relações contratuais de planos de saúdes, devem constar cláusulas de compliance, instituto este que nos últimos anos vem ganhando força, a fim de conscientizar os beneficiários, administradoras dos planos e os prestadores de saúde, como forma de combater eventuais fraudes, seja não praticando, seja denunciando tais práticas. Sem prejuízo de cláusula de rescisão contratual, ou seja, condição pré-determinada pelo descumprimento pela conduta fraudulenta, o que viabiliza os efeitos caducificante e autorizante, ou seja, o agente tem ciência prévia da sanção aplicada, que será a perda do direito de usufruir ou prestar serviços ao plano de saúde decorrente do ato ilícito, já que autoriza a rescisão do vínculo contratual.
Com base no exposto, nada obsta, que a operadora de saúde, diante das condutas fraudulentas, que fogem da legalidade, boa-fé, entre outros princípios previstos no ordenamento jurídico, bem como nas normas constitucionais, tenha garantido o acesso ao Poder Judiciário11, sob o crivo do contraditório12, para que seja reparado o seu patrimônio, com base no efeito indenizante e os demais, subsequentes, sejam aplicados contra as relações fraudulentas, como forma de garantir e solidificar as relações jurídicas.
Diante da versatilidade do Direito Civil, os modernos desígnios da responsabilização do agente, decorrentes da violação das normas, se buscam, com base na eficácia, além da reparação, a aplicação, na devida forma, os efeitos previstos no ordenamento jurídico, visando assim, uma convivência harmoniosa em sociedade, prevalecendo os valores que são considerados justos e perfeitos.
___________
1 Constituição Federal, artigo 5º, caput: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade..."
2 Artigo 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
3 Manual de direito civil/ Jose Carlos Van Cleef de Almeida Santos, Luís de Carvalho Cascaldi. - 2. ed. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 205.
4 Constituição Federal, artigo 1º: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
...
III - a dignidade da pessoa humana;"
5 Teoria dos ilícitos civis / Felipe Peixoto Braga Netto. - Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 100 e 101.
6 Código Civil, artigo 927: "Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo."
7 Código Civil, artigo 884: "Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários."
8 Código Civil, artigo 151: "A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens"
9 Download do estudo solicitado pelo IESS esta disponível no https://www.iess.org.br/publicacao/blog/estudo-do-iess-aponta-nova-pratica-de-fraudes-contra-planos-de-saude acessado em 30.04.2025.
10 Enunciado 170 do Conselho da Justiça Federal: "A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato."
11 Constituição Federal, artigo 5º XXXV: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
12 Constituição Federal, artigo 5º LV: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;"
Luiz Cezar Yara
Advogado Coordenador do escritório Almeida Santos Advogados.



