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A assinatura digital qualificada e os limites da competência normativa do CNJ: Uma análise da decisão do CNJ sobre autorização de viagem de crianças e adolescentes desacompanhados

CNJ veta assinatura digital para autorizar viagem de menores, exigindo firma reconhecida. Decisão contraria lei e impõe burocracia em tempos digitais.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Atualizado às 09:15

É perceptível que, nos últimos anos, a digitalização de serviços públicos e privados tem provido avanços significativos na eficiência e na acessibilidade. Entretanto, quando se trata de documentos que envolvem direitos fundamentais de crianças e adolescentes, como a autorização para viagens, a modernização encontra resistências e desafios legais. 

Recentemente, o CNJ decidiu, de forma unânime, que a assinatura eletrônica realizada por certificado digital, inclusive por meio da plataforma "Gov.br", não substitui o reconhecimento de firma em cartório para autorizações de viagem de crianças e adolescentes de 16 anos desacompanhados. Essa posição, embora legítima sob a ótica da proteção dos direitos das crianças, suscita questionamentos sobre a competência normativa do CNJ e a sua relação com a legislação vigente, especialmente a lei 14.063/20, que regula o uso de assinaturas eletrônicas no Brasil.

O objetivo deste artigo é analisar a decisão do CNJ sob o prisma da razoabilidade, da hierarquia normativa e dos limites da competência administrativa do CNJ, sugerindo a revisão da medida à luz da modernização da legislação e da digitalização dos processos. Para isso, será importante também avaliar os impactos jurídicos e práticos da exigência de reconhecimento de firma em cartório, que, embora tenha uma função protetiva, também acarreta em custos e em burocracia desnecessária.

A consulta que originou a decisão do CNJ foi realizada por uma agência de viagens, que buscava esclarecer a validade das autorizações de viagem de crianças e adolescentes desacompanhados realizadas por meio de assinaturas eletrônicas. O relator, o conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, decidiu que a assinatura eletrônica, mesmo no nível "prata" ou "ouro" da plataforma Gov.br, não é suficiente para substituir o reconhecimento de firma por autenticidade, conforme exigido pelas normas internas do CNJ (resolução 295/19 e provimento 103/20). O fundamento da decisão foi a necessidade de assegurar a autenticidade do consentimento, dado o risco de desaparecimento e tráfico de menores.

A resolução 295/19 e o provimento 103/20 regulamentam, respectivamente, a autorização de viagem e a forma de realização do reconhecimento de firma. O CNJ, ao determinar a necessidade de firma reconhecida para autorizações de viagem, se baseou na premissa de que a digitalização, por mais segura que seja, ainda não garante, em seu entendimento, a suficiente segurança jurídica, principalmente no que se refere à proteção dos direitos das crianças e adolescentes.

Entretanto, a lei 14.063/20 classifica as assinaturas eletrônicas em simples, avançada e qualificada. A assinatura qualificada, feita com certificado digital emitido pela ICP-Brasil, é considerada a mais segura e deve ser aceita em interações com a Administração Pública Federal, conforme art. 4º.

A polícia Federal, responsável pela fiscalização de fronteiras e autorizações de viagem, integra a Administração Pública Federal direta e, portanto, deveria, em tese, aceitar a assinatura qualificada conforme a legislação Federal. A imposição do reconhecimento de firma por resolução do CNJ, no entanto, parece entrar em conflito com a lei 14.063/20, especialmente no que diz respeito à hierarquia normativa e à competência do CNJ.

O CNJ, em sua função normativa e administrativa, possui a competência para regulamentar aspectos procedimentais dentro do Poder Judiciário, mas não tem autoridade para revogar ou restringir a aplicação de leis Federais, como a lei 14.063/20. Ao vedar o uso de assinaturas digitais qualificadas em autorizações de viagem, o CNJ pode estar ultrapassando seus limites de competências, conforme o art. 103-B da CF/88, o que fere o princípio da separação dos poderes e a segurança jurídica da certificação digital.

A jurisprudência do STF reforça a necessidade de respeito aos limites constitucionais da competência normativa do CNJ. No Mandado de Segurança 31.631, o STF deixou claro que o CNJ não pode editar normas que extrapolem sua função regulamentar, nem interferir em prerrogativas constitucionais dos magistrados e órgãos do judiciário. O relator, ministro Marco Aurélio, ressaltou que, embora o CNJ tenha o poder de zelar pela eficiência da justiça, suas decisões devem respeitar a independência funcional e a ordem jurídica estabelecida. 

De forma semelhante, na ADIn - Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.415, o STF declarou inconstitucional dispositivo da lei 13.188/15 que condicionava a concessão de efeito suspensivo a decisão de primeiro grau à deliberação colegiada. O ministro Dias Toffoli, relator do caso, destacou que tal exigência subvertia a estrutura hierárquica do Judiciário, afrontando o poder geral da cautela dos juízes e a organicidade prevista no art. 92 da CF. O precedente evidencia que atos normativos que comprometam a funcionalidade e a coerência do sistema de justiça, mesmo quando emanados por órgãos como o CNJ, são inconstitucionais. 

Embora o uso da assinatura digital qualificada tenha sido considerado seguro e eficaz em vários contextos, a decisão do CNJ impõe um obstáculo prático: o reconhecimento de firma cartorial, que exige que o responsável se desloque até um cartório, impondo custos adicionais e aumentando o tempo necessário para a formalização da autorização de viagem. Além disso, o custo de serviços cartoriais pode ser uma barreira para algumas famílias, comprometendo a acessibilidade ao processo.

O provimento 103/20 do CNJ permite que a autorização de viagem de menores desacompanhados seja realizada de forma digital, mas com a exigência do reconhecimento de firma por autenticidade, realizado por tabelião de notas utilizando a plataforma e-Notariado. Assim, a questão central da decisão não é a impossibilidade de digitalização, mas a burocratização e os custos envolvidos com o ato.

A modernização legislativa, por meio do PL 2541/24, visa justamente eliminar essa barreira, permitindo que a assinatura digital qualificada substitua o reconhecimento de firma. A aprovação desse projeto seria um passo importante para a conciliação entre a proteção dos direitos das crianças e adolescentes e a utilização de tecnologias mais eficientes e acessíveis. 

A decisão do CNJ, embora pautada na proteção integral da criança e do adolescente, revela-se equivocada sob a perspectiva legal e constitucional. Ao contrariar a lei 14.063/20, ao desconsiderar a validade legal da assinatura digital qualificada e impor exigência cartorial, o CNJ não só extrapola suas competências normativas, mas também criando insegurança jurídica e obstáculos à digitalização de serviços. Precedentes como o MS 31.631 e a ADIn 5.415 do STF demonstram que atos normativos que afrontem a hierarquia das leis ou restrinjam competências constitucionais do Judiciário devem ser repelidos.  

É necessário, contudo, o restabelecimento da legalidade. A solução para esse impasse passa pela revisão dessa decisão e adaptação das normas administrativas aos avanços legislativos e tecnológicos, respeitando a hierarquia normativa e a competência de cada poder.

Em última instância, o que se busca é garantir tanto a proteção integral dos direitos das crianças e adolescentes quanto a modernização dos processos, tornando-os mais eficientes, acessíveis e seguros e compatíveis com a realidade digital. O debate não deve se pautar apenas na proteção das crianças, mas também naquilo que são as garantias de processo seguro, eficiente e compatível com a realidade digital.

___________

1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

2 BRASIL. Lei nº 14.063, de 23 de setembro de 2020. Dispõe sobre o uso de assinaturas eletrônicas.

3 BRASIL. Lei nº 13.812, de 16 de março de 2019. Institui a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas.

4 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.

5 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 2541/2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: 2 maio 2025.

6 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Consulta 0003850-52.2024.2.00.0000. Disponível em: https://www.cnj.jus.br. Acesso em: 2 maio 2025.

7 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução n. 295/2019.

8 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n. 103/2020.

9 STF. Mandado de Segurança 31.631, rel. Min. Marco Aurélio, j. 15-8-2017, 1ª T, DJE de 28-8-2017.

10 STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.415, rel. Min. Dias Toffoli, j. 11-3-2021, P, DJE de 25-5-2021.

José Guilherme Garcia

José Guilherme Garcia

Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Estagiário da área de Contencioso Cível do Escritório Medina Guimarães Advogados.

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