MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. O avesso da justiça: A má-fé como instrumento de repressão à advocacia

O avesso da justiça: A má-fé como instrumento de repressão à advocacia

O artigo analisa o uso indevido da má-fé processual como mecanismo de repressão à advocacia combativa, defendendo a preservação da liberdade técnica no Estado de Direito.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Atualizado às 11:42

1. Introdução

O exercício da advocacia, como expressão institucional do direito de ação e função indispensável à administração da justiça, ocupa posição de destaque na estrutura do Estado Democrático de Direito, sendo-lhe constitucionalmente assegurada autonomia técnica e proteção funcional contra interferências indevidas. O art. 133 da CF/88 não consagra apenas uma garantia corporativa, mas estabelece uma cláusula fundamental de equilíbrio entre o poder jurisdicional e os direitos fundamentais dos jurisdicionados. Essa compreensão é partilhada pela doutrina contemporânea, para a qual o advogado é partícipe da função jurisdicional, não podendo ser reduzido à condição de intermediário das partes nem alvo de estigmatizações institucionais que comprometam sua liberdade técnica (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2021).

Entretanto, tem-se verificado o surgimento de uma racionalidade institucional que ameaça subverter esse arranjo normativo: a criminalização simbólica da advocacia combativa, operada mediante a imputação indiscriminada de litigância de má-fé a profissionais que atuam em demandas repetitivas, padronizadas ou concentradas tematicamente. A retórica judicial que associa a repetição de teses à prática fraudulenta vem sendo utilizada como fundamento para o encaminhamento de representações à OAB, à instauração de processos administrativos e até ao acionamento do Ministério Público, mesmo sem qualquer demonstração de dolo, fraude ou prejuízo efetivo. Trata-se de uma distorção funcional do instituto da má-fé, cujo emprego deveria estar limitado a hipóteses de violação intencional da boa-fé objetiva, e não como mecanismo difuso de controle simbólico da advocacia (WAMBIER; TALAMINI, 2021).

A má-fé processual, como categoria jurídica sancionatória, exige a demonstração inequívoca de deslealdade, dolo específico e instrumentalização indevida do processo, sob pena de violação ao princípio da legalidade e ao devido processo legal. O que se observa, no entanto, é a adoção de critérios extrajurídicos, como o número de ações ajuizadas, a semelhança de peças ou a atuação reiterada em determinado nicho, como elementos indutivos de suspeição. Tal prática ignora o fato de que, diante da litigância massiva e da judicialização estrutural de direitos, a especialização da advocacia e a replicação estratégica de teses jurídicas constituem resposta técnica legítima à complexidade do sistema, conforme amplamente reconhecido na doutrina processual civil contemporânea (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2019).

A investigação proposta neste artigo parte da hipótese de que há, no cenário forense atual, uma tendência de deturpação do conceito de má-fé, utilizada como retórica de contenção da advocacia propositiva, especialmente quando esta atua contra interesses hegemônicos. Essa hipótese encontra eco em autores que identificam a expansão de mecanismos informais de repressão institucional travestidos de zelo processual, gerando impactos diretos sobre a paridade de armas e sobre a integridade da função jurisdicional (FUX, 2022). O objetivo geral é analisar criticamente a utilização desviada do instituto da má-fé processual contra a advocacia, denunciando seus fundamentos falaciosos e propondo sua recompreensão à luz do modelo constitucional de processo. Como objetivos específicos, pretende-se: (i) reafirmar a legitimidade da especialização da advocacia em contextos de demandas seriadas; (ii) demonstrar a insuficiência dos critérios atualmente invocados para imputação de má-fé; (iii) problematizar a atuação do Poder Judiciário enquanto ente acusador e disciplinador da advocacia; e (iv) sugerir limites objetivos à responsabilização institucional do advogado.

Metodologicamente, o artigo adota abordagem dedutiva, com análise teórica e crítica da legislação processual vigente, apoiada em bibliografia especializada e consolidada no campo do Direito Processual Civil, da teoria do processo e da ética profissional. A relevância científica do tema decorre da escassez de estudos que enfrentem, sob ótica sistemática, a subversão do instituto da má-fé contra a advocacia, exigindo reconstrução teórica à luz das garantias fundamentais. A relevância prática, por sua vez, repousa na necessidade de conter a escalada persecutória institucional, protegendo o exercício profissional legítimo e assegurando que o processo civil continue a ser um espaço de manifestação plena da cidadania (CAPEZ, 2021).

O desenvolvimento do artigo organiza-se em três eixos centrais. No primeiro, analisa-se a especialização da advocacia e a padronização de peças como decorrência legítima da judicialização estrutural de direitos. Em seguida, investiga-se a mutação do conceito de má-fé processual e sua instrumentalização como retórica de deslegitimação da advocacia técnica. Por fim, examina-se a escalada de comunicações institucionais como forma de intimidação simbólica, propondo-se a reafirmação da presunção de boa-fé e o resgate do papel da advocacia no processo democrático.

2. A especialização da advocacia e a repetição das demandas como fenômeno legítimo da prática forense

O processo civil brasileiro, especialmente após a consolidação do CPC/15, passou a reconhecer de forma mais explícita a complexidade das relações jurídicas modernas e a necessidade de adaptação técnica das práticas advocatícias à litigiosidade de massa. O cenário atual, marcado pela judicialização estrutural de direitos e pelo comportamento reiterado de grandes agentes econômicos em condutas lesivas, tem exigido da advocacia um grau cada vez maior de especialização temática, padronização argumentativa e atuação estratégica em clusters específicos de demandas. Essa transformação da prática forense decorre, em parte, da própria estrutura desigual de acesso à justiça, na qual o domínio técnico, a previsibilidade de decisões e a replicabilidade argumentativa tornam-se instrumentos fundamentais para a efetivação de direitos (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2019).

Essa realidade impõe o reconhecimento de que a atuação advocatícia padronizada, longe de representar desvio ético ou abuso do direito de ação, constitui resposta legítima às assimetrias que permeiam o sistema judicial. A especialização por matéria, por tipo de lesão jurídica ou por perfil de clientela é compatível com os princípios do contraditório substancial, da boa-fé processual e da cooperação entre os sujeitos do processo, pois permite ao advogado desenvolver expertise, consolidar jurisprudência favorável e reduzir os custos transacionais do litígio. Como bem observa a doutrina processual contemporânea, o conteúdo democrático do processo exige que as técnicas de atuação jurídica se adaptem à realidade material das partes, e não que se imponham como obstáculo formal ao exercício do direito de ação (FUX, 2022).

O uso reiterado de modelos de petições, de teses jurídicas consolidadas e de fundamentos jurisprudenciais estáveis não configura, por si só, qualquer afronta à lealdade processual. Ao contrário, tal prática constitui instrumento de racionalização do sistema, especialmente em um país como o Brasil, em que o comportamento lesivo de empresas públicas e privadas assume caráter sistemático e reproduz padrões de violação em escala. A atuação técnica que adota métodos padronizados é, nesse contexto, não apenas admissível, mas desejável, na medida em que contribui para a uniformização de entendimentos e para a efetividade da jurisdição. Essa compreensão está alinhada ao papel do advogado como partícipe da justiça, função que, segundo consagra a doutrina, não admite ser confundida com mero executor de peças, mas o coloca como agente de legalidade e resistência institucional (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2021).

Contudo, observa-se uma preocupante tendência a desvirtuar esse modelo técnico de atuação, especialmente quando empregado por advogados que atuam contra estruturas hegemônicas ou em defesa de interesses vulnerabilizados. A utilização da padronização de peças como indicativo de litigância de má-fé parte de uma visão distorcida do processo, segundo a qual a originalidade estética da petição substituiria a análise substancial da lide. Tal postura ignora que o processo é técnica antes de ser retórica, e que a previsibilidade argumentativa é pressuposto de isonomia e segurança jurídica. A lógica que penaliza a repetição de teses por sua semelhança externa revela resquícios de uma visão inquisitorial da advocacia, na qual o profissional passa a ser julgado não por sua aderência ao direito, mas por sua frequência em litígios que incomodam interesses consolidados (WAMBIER; TALAMINI, 2021).

É preciso compreender, ainda, que a advocacia moderna, diante da alta litigiosidade e da complexidade das estruturas normativas, assume feições empresariais e organizacionais cada vez mais refinadas. O uso de bancos de dados internos, de sistemas de automação redacional e de tecnologias de gestão de demandas é não apenas permitido, mas inerente à lógica da eficiência institucional. Negar validade jurídica a essas práticas equivale a punir o desenvolvimento técnico da profissão e reforçar a desigualdade entre partes hipossuficientes e grandes estruturas econômicas. Como adverte a literatura especializada, a boa-fé objetiva exige não apenas lealdade individual, mas também reconhecimento institucional de que o processo deve operar em favor da realização dos direitos materiais, e não como um ritual estético ou censurador (CAPEZ, 2021).

Por fim, importa destacar que a multiplicação de demandas semelhantes, longe de configurar abuso, pode ser sintoma da própria falência de mecanismos regulatórios e da omissão do Estado em coibir condutas lesivas. Em muitos casos, a replicação de ações judiciais representa o único caminho efetivo de resistência civil contra práticas ilícitas reiteradas, especialmente em contextos nos quais os canais administrativos, legislativos e autorregulatórios são capturados por interesses econômicos. Nessa perspectiva, o advogado que atua com estratégia, técnica e padronização não está abusando do Judiciário, mas tensionando-o a cumprir sua função histórica de garantir direitos em contextos de desigualdade. A atuação reiterada, nesse caso, revela não deslealdade, mas fidelidade ao projeto constitucional de cidadania e acesso à justiça (BOBBIO, 2020; BARROSO, 2020).

Clique aqui para acessar a íntegra do artigo.

Luis Marcelo Lopes de Lacerda

VIP Luis Marcelo Lopes de Lacerda

Advogado, CEO do Marcelo Lacerda Advogados, Mestre em Direito Público, especialista em concessões, PPPs, SPEs, governança e compliance, com atuação estratégica em projetos de alta complexidade.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca