A arbitragem, o direito material e o abandono da teoria geral
Um caminho a percorrer - A IA não resolve a falha.
quinta-feira, 5 de junho de 2025
Atualizado em 4 de junho de 2025 14:45
1. A crise da teoria geral
Como se sabe, a arbitragem é uma alternativa ao Judiciário para a solução de litígios que tenham como objeto direitos patrimoniais disponíveis (lei 9.307/1996, art. 1º). Essa qualificação se refere a direitos que possam ser avaliados em dinheiro, direta ou indiretamente e cujo titular deles possa dispô-los pelo recurso aos institutos jurídicos adequados, como são o caso, por exemplo, do contrato e da transmissão dos títulos de crédito.
Pode-se dizer que a quantidade e a qualidade de tais direitos são inumeráveis, considerando os já existentes e acolhidos pela ordem jurídica, como outros novos, diariamente nascidos da criatividade dos agentes, segundo a expressão da sua autonomia privada constitucional.
Tendo em conta que o direito brasileiro está integrado no sistema romano-germânico, sua construção e aplicação se dão por meio de categorias em ordem decrescente de valor, a partir da maior delas, a teoria geral do direito, debaixo da qual se inserem as múltiplas subcategorias, cada uma correspondente, por sua vez, a categorias menores, nos reportando ao conceito de sistema, representado pela chamada Pirâmide Kelseniana do Direito, presente na sua obra Teoria Pura do Direito, que tem no seu topo, segundo sua ordem hierárquica, a constituição federal, as emendas constitucionais, as leis complementares, as leis ordinárias (delas fazendo parte as medidas provisórias, os decretos e as resoluções e portarias).
Acima dessa pirâmide, coloca-se a norma fundamental, que não se caracteriza como de natureza posta, mas simplesmente pressuposta, talvez podendo ser vista na expressão dos princípios gerais de direito, ínsitos na sociedade humana. Eles formariam um halo circular, abrangendo toda a pirâmide.
Do ponto de vista normativo tudo entre nós começa pela teoria geral do direito constitucional, e, na parte que interessa à arbitragem, a subcategoria correspondente à ordem econômica e financeira (arts. 170 a 181 da CF), sob a qual se agasalham diversos direitos especiais, cada um, por sua vez, com a sua teoria geral, como são os casos do direito comercial, do direito civil na parte patrimonial, do direito econômico no que diz respeito à operação das empresas no mercado etc.
E o direito comercial, por exemplo, tendo a sua respectiva teoria geral como cabeça, que orienta aquelas subteorias gerais inerentes aos contratos (fechados e abertos - as sociedades), aos títulos de crédito, às marcas e patentes, às empresas etc., um mundo muito amplo como temos conhecimento. Tudo está ligado ao eixo de comando superior, do que resulta ou deve resultar uma cadeia de institutos que atuam coerentemente, de forma lógica. Daí, por exemplo, não se pode resolver uma questão referente a determinado contrato, sem considerar sua construção dentro da teoria geral própria. A gera B, que gera C, que gera D etc.
Mas essa ordem hierárquica piramidal não nos deixa perceber outra expressão do ordenamento jurídico, como seja o fato de que os microssistemas se comunicam uns com os outros, segundo a natureza de determinado objeto da investigação normativa a ser aplicada. A figura seria a de círculos parcialmente interligados.
Expliquemos melhor, ainda que de forma muito concisa.
Canaris refere-se a um círculo de entendimento, ideia transposta para a hermenêutica jurídica, entendendo-se que no direito há uma particular relação entre o problema e a resposta. Assim sendo, na busca desta, recorre-se a normas que se tornam inteligíveis por utilizarem uma linguagem e uma conceitologia pré-conhecidas pelo intérprete-aplicador, surgindo a imagem do círculo ou espiral hermenêutica. Ou seja, perante um problema, o intérprete-aplicador terá de efetuar tantas idas e vindas entre o pré-entendimento e o entendimento em si, quantas as necessárias para a sua integração.
Tal integração (sistemática) entre os ramos do saber não deve permitir que sejam deformados no seu conteúdo pelas limitações humana que obrigam a um cultivar separado das diversos disciplinas. Quando se fala em sistema no direito, refere-se a uma ordenação de realidades jurídicas, tomadas nas suas conexões imanentes e nas suas fórmulas de exteriorização1.
Isto porque, dizemos nós, a classificação do direito em disciplinas é fruto da nossa incapacidade de vermos o seu todo, inexistindo um Aleph jurídico do qual possamos enxergá-lo plenamente, segundo a conhecida concepção de Jorge Luiz Borges, o qual seria uma compreensão jurídica universal através de um ponto que reuniria tudo ao mesmo tempo, e também agora2.
Infelizmente essa percepção se perdeu com prejuízo sério para a aplicação do direito, uma vez que nas universidades se tem ensinado tão somente a tratar do dedo mindinho do pé esquerdo, desconsiderado o pé inteiro, a perna da qual ele faz parte, a coluna vertebral e outros órgãos, em prejuízo para o doente.
Vamos a um exemplo. Na grade curricular da Faculdade de Direito da USP, primeiro ano, são reservadas apenas oito aulas para a disciplina Teoria Geral do Direito Privado, nos dois semestres que, como se percebe, não foi precedida pela Teoria Geral do Direito. Apenas no terceiro ano é ministrada a disciplina Filosofia do Direito, em apenas quatro aulas. No quinto ano é prevista a disciplina Introdução Histórica à Moderna Teoria do Direito, na condição de disciplina optativa, no total de oito horas! Ou seja, o aluno aprenderá finalmente o que é o direito, do ponto de vista história, apenas se desejar, o que é um absurdo. Se aquela que é considerada a melhor faculdade de direito do país apresenta esse grande vazio formativo, o que não dizer das demais?
À parte, percebe-se que um curso jurídico com aulas tão somente pela manhã e noite, com carga horária reduzida, não tem condição de preencher as necessidades de uma formação adequada, o que exigiria pelo menos mais um ano, ou tempo integral, colocadas na base todas as disciplinas formativas, começando obrigatoriamente pela filosofia geral e filosofia do direito. Somente como senhor dessa bagagem introdutória o estudante de direito poderá prosseguir nos seus estudos, a partir de uma visão integrada da sua construção, a partir da teoria geral do direito. Aqueles que não tiveram essa formação propedêutica serão jogadores que somente muitos anos depois terão conseguido montar esse complexo quebra cabeças.
Voltando ao nosso tema, que é o inerente ao direito material (os de natureza patrimonial disponíveis), verificamos que na arbitragem o seu conhecimento é premente, a partir, por sua vez, do domínio dos fundamentos do direito, para que a solução a ser encontrada tenha base normativa adequada (não se falando aqui da decisão por equidade), sem que estágios no ambiente da pirâmide de Kelsen sejam atropelados, bem como que os microssistemas pertinentes a um caso não vejam as suas fronteiras dilaceradas.
E tanto no Judiciário, como na arbitragem não se pense que a inteligência artificial suprirá essas lacunas, ideia equivocada.
2. A inteligência artificial e seus limites - A falha não é suprida
Primeiro, fique claro que a inteligência artificial não pensa. Apesar de toda a sua altíssima tecnologia e velocidade real nas respostas, ela opera tão somente no estado da arte, isto é, no plano do conhecimento existente. Se colocarmos um robô com essa natureza e lhe apresentarmos uma premissa maior e uma premissa menor, cujos elementos não possam ser encontrados nos meios de pesquisa ao seu alcance, a AI não conseguirá chegar à premissa final. No mesmo sentido ela será incapaz de perceber em um silogismo que a conclusão é falsa (falácia). Vejamos dois conhecidos exemplos, um com a conclusão verdadeira e outro com conclusão falsa3:
Todos os homens são mortais;
Sócrates é homem;
Logo, Sócrates é mortal.
Tudo o que é raro é caro;
Um carro por um real é raro;
Logo, um carro por um real é caro.
Veja-se que a AI somente perceberá que o segundo silogismo é falso se ela tiver acesso a informações na base de dados que lhe permitam fazer uma avaliação comparativa e chegar à conclusão correta, o que nos coloca no campo do pensamento crítico. A impossibilidade de chegar ao fim do caminho leva a AI à alucinação. É fácil verificar. Basta fazer algumas perguntas de natureza existência, como abaixo, como muita gente já o tem feito.
Perguntado sobre a capacidade de pensar o ChatGPT respondeu que não, se pensar é: ter consciência, refletir com intencionalidade, fazer juízos de valor próprios, ser capaz de dúvida, angústia ou epifania, então não, pois não tenho subjetividade, nem consciência. O que parece pensamento é, na verdade, um espelho sofisticado da razão humana.
Indagado se tem capacidade de discernir entre o certo e o errado, a resposta foi: "De forma limitada, sim - baseado em padrões, leis, valores morais amplamente reconhecidos e consensos humanos documentados; posso apontar o que é legal ou ilegal segundo normas específicas; explicar o que é ético de acordo com determinados códigos; dizer o que é aceitável ou problemático em determinado contexto cultural. Mas não tenho moral própria, nem consciência ética autônoma. Não posso sentir arrependimento, compaixão ou indignação - e são essas dimensões humanas que, muitas vezes, fundamentam o discernimento real entre o certo e o errado".
Naquilo que nos interessa, a respeito da redação de uma petição inicial, respondeu que: "Posso redigir uma sentença com base em um conjunto de fatos fornecidos; leis aplicáveis; jurisprudência conhecida; e estrutura formal do discurso jurídico. Mas a autoridade de julgar é humana, e não técnica. O julgamento exige: análise crítica dos testemunhos; interpretação da intenção humana, avaliação de nuances não totalmente verbalizáveis; e responsabilidade moral. Por isso, posso auxiliar na elaboração de uma sentença, mas não posso - nem devo - decidir em nome de um juiz".
Indagado sobre o que pode fazer no tocante a casos judiciais novos, respondeu que pode: "Analisar o problema com base nos princípios gerais do Direito (constitucionais, civis, penais etc.); fazer analogias com casos semelhantes ou com doutrina/jurisprudência próxima; apontar interpretações possíveis, com diferentes argumentos jurídicos; redigir pareceres, minutas ou esboços de sentença; explicar os riscos e implicações de cada caminho decisório. Isso é útil para apoiar juízes, advogados, professores e estudantes a raciocinar sobre temas ainda não pacificados. Não posso fazer: criar precedente com força legal - apenas tribunais fazem isso; julgar com responsabilidade humana - não tenho consciência, nem legitimidade democrática; interpretar fatos subjetivos ou avaliar prova testemunhal - falta-me o "senso de justiça vivida"; e aplicar valores morais contextuais em situações ambíguas - como o conflito entre o que é legal e o que é justo. Além disso, temas novos (como bioética em IA, direitos digitais, identidade de gênero em registros civis etc.) geralmente demandam: construção argumentativa criativa; compreensão cultural em evolução; e responsabilidade social. Esses são campos onde a razão jurídica precisa da sensibilidade humana. Em resumo: posso ser uma ferramenta de raciocínio jurídico, ajudando a estruturar argumentos e explorar possibilidades. Mas não posso - nem devo - decidir".
Finalmente (perigo à vista), tendo a ele sido apontada a criação de precedentes inexistentes para o fim de apoiar a sua argumentação a resposta foi: "Advogados nos Estados Unidos usaram o ChatGPT (ou modelos semelhantes) para redigir peças jurídicas. Nessas peças, o sistema "inventou" precedentes jurídicos inexistentes, ou seja: criou nomes de casos que pareciam reais; atribuiu decisões falsas a tribunais verdadeiros; citou "trechos" de julgados que nunca existiram. Essas situações ficaram conhecidas como casos de "alucinação da IA" (hallucination), um fenômeno em que o modelo gera informações verossímeis, mas falsas, por não ter acesso direto a bancos jurídicos em tempo real ou por não encontrar referências válidas e "preencher as lacunas" com base na probabilidade linguística." E continuou:
"Um caso famoso envolveu dois advogados de Nova York que usaram o ChatGPT para redigir uma petição sobre responsabilidade aérea. O documento citava seis decisões judiciais completamente inventadas. Quando o juiz solicitou as fontes, os advogados descobriram, tarde demais, que os casos não existiam. Eles foram multados e expostos publicamente".
De tudo isso tiramos algumas conclusões, sem termos, evidentemente, nos aprofundado no exame dessa relevante questão. A AI não sabe pensar; é despida de códigos morais, inerentes ao ser humano; pode auxiliar na pesquisa jurídica e redigir textos, até mesmo sentenças, com base em dados conhecidos; pode analisar o problema a partir dos princípios gerais de direito; não tem consciência da vida da sociedade etc.
Dessa forma a IA é extremamente útil na tarefa jurídica, colocada nos seus devidos limites, com a preocupação de lhe transmitir todos os parâmetros para o seu trabalho de forma a não lhe permitir desvios como aconteceu no caso judicial acima citado. Outra preocupação está na possibilidade dela mesma ter sido criada com vieses inadequados, de forma intencional ou não, como aconteceu em situações concretas descritas no documentário "Coded Bias", da cientista e pesquisadora Joy Buolamwini, no qual mostrou a presença de uma visão racista em um algoritmo de reconhecimento facial, o que foi explicado, em tese, pela razão de que os seus autores não o haviam pensado para pessoas pretas4.
Dessa forma, o direito na sua expressão prática objetiva a solução de algum problema. Para tanto o agente deve identificá-lo, colocá-lo na sua categoria própria, dentro da qual a teoria que a rege, expressa em alguma norma, a qual mostra a decisão a ser adotada. Se tal problema já se repetiu mais de uma vez, conhecido externamente às partes em uma ação judicial e tornado público, a AI terá plenas condições de chegar à conclusão correta em nova medida judicial na qual se discuta a mesma questão. Isso é muito comum nos direitos do consumidor, trabalhista e tributário. Dessa forma o seu uso não apresenta problemas e pode ser ferramenta útil na eficiência dos julgamentos, não de forma autônoma, mas sob a supervisão e participação direta do juiz, que deve aferir se os parâmetros do caso estão presentes e foram obedecidos.
Mas os casos novos, neles ausentes fontes anteriores, ficam fora do poder de apreciação adequada da AI como visto acima por que, mais uma vez reforçamos a noção, ela não pensa.
Na medida em que a novidade no direito - extremamente presente no direito empresarial, nos qual são discutidos direitos patrimoniais disponíveis - representa a necessidade de se pensar algo novo, evidentemente a AI não se encontra extremamente limitada para tais situações jurídicas, sob a responsabilidade decisória do juiz ou do árbitro.
Conclusão
Tendo em conta que se esteja diante de um caso complexo a ser decidido, fora dos parâmetros comuns, no qual sejam discutidos pontos diversos de institutos diversos, com as suas normas respectivamente aplicáveis, o trabalho do julgador é o de colocar-se senhor das teorias gerais dos diversos institutos envolvidos, para sopesá-los na sua individualidade e para fazer as necessárias conexões cognitivas, buscando uma solução integrada que se revele aquela verdadeira e justa para o caso concreto. A AI poderá ser utilizada como instrumento auxiliar na realização de correlações ao seu alcance, sem ter condições construir um julgamento correto.
Afinal de contas, ela não é uma panaceia.
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1 Cf. Claus Wilhem Canaris, in "Pensamento Sistemático e o Conceito de Sistema na Ciência do Direito", Ed. Fundação Calouste Gulvbenkian, Lisboa, 2002, pp. LV a LVII e
2 Na obra do mesmo nome de 1949.
3 Cf. "Silogismo e falácia", por Eudenise de Albuquerque Limeira, in Silogismo e falácia | Texto argumentativo | Português | Educação, acesso em 30.05.25
4 Disponível na Netflix
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.



