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O impacto da inteligência artificial no cenário jurídico brasileiro: Oportunidades, desafios e perspectivas regulatórias

A IA revoluciona o direito brasileiro com ganhos de eficiência, mas impõe desafios como vieses riscos legais e necessidade de regulação clara.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Atualizado em 5 de junho de 2025 10:28

Examinamos nesse texto a influência da IA - Inteligência Artificial no setor jurídico nacional, analisando mudanças, desafios emergentes e o panorama regulatório. Exploramos o progresso na adoção da IA, seus riscos críticos - como citações falsas, erros de contextualização, segurança de dados e vieses algorítmicos - e as perspectivas do CNJ, a ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados e da OAB, além dos impactos no mercado de trabalho e questões éticas de formação profissional.

Adoção e aplicações atuais

O Brasil experimenta acelerada adoção de IA no setor jurídico: mais de 55% dos advogados já utilizam ferramentas de IA generativa em 20251. No Poder Judiciário, projetos de IA cresceram acima de 26% entre 2022 e 2023, totalizando 140 projetos em 62 tribunais2, 3. Esse crescimento está alinhado ao volume de 84 milhões de processos judiciais em 20244 e às iniciativas do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, com investimentos até 20285.

As aplicações demonstram considerável diversidade: ferramentas de gestão documental projetam redução superior a 70% no tempo de revisões contratuais6, pesquisa jurídica por jurimetria identifica padrões e prevê resultados processuais, e automação de tarefas rotineiras como elaboração de minutas está amplamente difundida. Sistemas de IA como VICTOR (STF) e ATHOS (STJ) auxiliam na triagem processual e admissibilidade de recursos7, 8, otimizando fluxos e gerindo a elevada demanda processual.

Crescimento das IA nos Stakeholders Jurídicos

O VICTOR, desenvolvido com a Universidade de Brasília, realiza triagem e classificação com foco em temas de repercussão geral, mantendo validação humana constante. No STJ, ATHOS analisa admissibilidade de recursos, Sócrates identifica controvérsias jurídicas, e e-Juris otimiza pesquisa jurisprudencial9.

O CNJ regulamentou o uso da IA através da resolução 332/20, estabelecendo diretrizes para desenvolvimento e uso de IA no Judiciário, prevenindo o uso indevido e garantindo transparência, não discriminação e supervisão humana qualificada. As preocupações incluem replicação de vieses algorítmicos e "viés de automação", onde julgadores podem aceitar sugestões da IA sem escrutínio necessário.

O ecossistema de legaltechs conta com mais de 600 startups em 2024, crescimento superior a 300%, desde a criação da AB2L em 2017. O projeto "ChatGPT Jurídico", financiado pela Finep, desenvolve IA generativa para o ordenamento brasileiro10. Plataformas como Jurídico AI e Lexter.ai combinam modelos globais com IA proprietária e bases nacionais.

Contudo, surgem polêmicas: o STJ indeferiu recentemente a pretensão da OAB/RJ para suspender a plataforma "Resolve Juizado", que usa IA para elaborar petições em juizados especiais. O ministro Herman Benjamin salientou que o serviço pode democratizar o acesso à Justiça para causas de pequeno valor11.

Casos de citações falsas

Os riscos legais precisam ser avaliados, por exemplo as "alucinações" da IA geram informações fabricadas, incluindo jurisprudência inexistente. O caso REsp 2.207.929/MG no STJ em 2025 resultou em sanção por litigância de má-fé após advogado apresentar julgados falsos presumivelmente gerados por IA [12]. Similarmente, o STF oficiou a OAB para investigar petição com decisões inexistentes do TST13.

Essas falhas podem induzir magistrados em erro e gerar responsabilidade civil e ético-disciplinar. As limitações intrínsecas dos modelos de IA, que operam com probabilidades sem compreensão semântica real, impõem a indispensabilidade da verificação humana. Diversos erros já foram verificados também nas sentenças elaboradas com IA pelos magistrados brasileiros14.

Erro de contextualização

Um risco relevante no uso da IA no Direito, ainda pouco comentado, é o erro de contextualização, que ocorre quando a IA interpreta normas ou decisões sem compreender seu contexto jurídico. Diferente da alucinação, que inventa dados, esse erro aplica informações reais de forma inadequada, como jurisprudência estrangeira tratada como nacional. Isso afeta a gestão de documentos jurídicos, gerando classificações erradas, cláusulas impróprias e análises distorcidas. Por isso, é fundamental a supervisão técnica e validação humana nas etapas críticas do uso da IA na área jurídica.

Viés algorítmico da IA

O viés algorítmico manifesta-se quando sistemas perpetuam preconceitos dos dados de treinamento, sendo um outro risco que precisa ser endereçado. No Brasil, onde desigualdades sociais são acentuadas, riscos de vieses raciais e de gênero constituem preocupação relevante15. A mitigação exige supervisão humana rigorosa, investimento na qualidade dos dados de treinamento, transparência (XAI), formação de equipes diversas e desenvolvimento de competências em prompt engineering16.

Segurança e proteção de dados

Ainda nos riscos legais, a utilização de IA introduz vulnerabilidades significativas dado o manuseio de informações confidenciais: dados pessoais, segredos comerciais e estratégias litigiosas. Riscos incluem treinamento de modelos com dados submetidos, políticas opacas e compartilhamento inadvertido de informações sensíveis, resultando em violação do sigilo profissional e infrações à LGPD. A mitigação exige análise criteriosa de fornecedores, priorização de soluções com elevados padrões de segurança e políticas claras de uso interno.

Perspectivas regulatórias da ANPD

A ANPD consolida-se como ator central na regulação da IA, com perspectiva de tornar-se órgão central no Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial, conforme o PL 2.338/23 (Marco Legal da IA)17. Além disso, a ANPD integrou a IA na Agenda Regulatória 2025-202618, com publicações como o "Radar Tecnológico sobre IA Generativa" avaliando práticas sob princípios da LGPD19.

A ANPD também exerceu papel fiscalizatório suspendendo a política de privacidade da Meta para treinamento de IA com dados brasileiros20. Assim como, promoveu a consulta pública sobre IA e elaborou a nota técnica 12/25/CON1/CGN/ANPD sobre decisões automatizadas21, demonstrando uma construção de regulação participativa e tecnicamente embasada.

A visão da OAB

A Recomendação 001/24 do CFOAB estabeleceu diretrizes para uso ético da IA generativa, vedando delegação de atos privativos da advocacia e exigindo supervisão humana qualificada22. Destacou a proteção da confidencialidade, verificação rigorosa de informações e transparência com clientes, incluindo consentimento informado por escrito do cliente, ponto bastante polêmico e de difícil compliance. A OAB fiscaliza ainda infrações ético-disciplinares decorrentes do uso da IA, conforme art. 34, XIV, do Estatuto da Advocacia, mas por outro lado está preocupada em investir em capacitação profissional para minimizar esses impactos23.

Impacto no futuro dos empregos jurídicos

A IA transformará carreiras jurídicas automatizando tarefas repetitivas e permitindo foco em atividades de maior valor: teses complexas, estratégias processuais, negociação e aconselhamento personalizado - domínios onde pensamento crítico e julgamento humano permanecem insubstituíveis24. A transformação exige novas competências: letramento digital avançado, interpretação crítica de resultados da IA e proficiência em prompt engineering25.

Conclusão

A IA remodela o setor jurídico brasileiro oferecendo oportunidades para incrementar eficiência e acesso à justiça, mas apresentando desafios como "alucinações", vieses algorítmicos e dilemas éticos. Uma abordagem equilibrada é essencial, aproveitando benefícios da IA mantendo elevados padrões éticos, conformidade legal e proteção de direitos fundamentais, com inovação responsável e supervisão humana como pilares centrais.

O Brasil, com expressivo volume processual e mercado de legaltechs em expansão, pode converter-se em laboratório global para implementação de IA no setor legal. Contudo, escolhas atuais sobre regulação, educação e combate a vieses determinarão se a IA promoverá maior equidade ou aprofundará desigualdades existentes. O desenvolvimento deve alinhar-se com valores democráticos, garantindo que a tecnologia fortaleça a justiça e integridade profissional em benefício da sociedade brasileira.

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1 https://convergenciadigital.com.br/inovacao/oab-sp-55-dos-advogados-usam-iagenerativa/

2 https://www.cnj.jus.br/uso-de-ia-no-judiciario-cresceu-26-em-relacao-a-2022-aponta-pesquisa/

3 https://www.conjur.com.br/2024-set-13/o-judiciario-brasileiro-e-a-transformacao-doanalogico-para-o-digital/

4 https://www.cnj.jus.br/justica-em-numeros-2024-barroso-destaca-aumento-de-95-em-novos-processos/

5 https://www.gov.br/lncc/pt-br/assuntos/noticias/ultimas-noticias-1/plano-brasileirode-inteligencia-artificial-pbia-2024-2028

6 https://www.terra.com.br/noticias/ia-juridica-reduz-tempo-de-analise-e-otimizaprocessos-em-escritorios,a6aab6613f25c90449548b9ceab592dduhrl4i44.html

7 https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=507120&ori=1

8 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/11062024-STJ-recebe-representantes-de-tribunais-em-projeto-para-fortalecer-sistema-deprecedentes.aspx

9 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/23082020-Revolucao-tecnologica-e-desafios-da-pandemia-marcaram-gestao-do-ministroNoronha-na-presidencia-do-STJ.aspx

10 https://ab2l.org.br/noticias/governo-investe-r-10-mi-em-chatgptjuridico/#:~:text=O%20dinheiro%20vem%20do%20programa,setor%20e%20oferecendo%20solu%C3%A7%C3%B5es%20customizadas

11 https://convergenciadigital.com.br/mercado/stj-rejeita-tirar-do-ar-site-que-usainteligencia-artificial-para-redigir-peticoes-iniciais/

12 https://www.conjur.com.br/2025-mai-24/precisamos-falar-do-treinamento-para-ouso-de-inteligencia-artificial-no-direito/

13 https://www.conjur.com.br/2025-mai-17/tribunais-mostram-irritacao-com-pecas-eate-sustentacoes-feitas-por-ia/

14 https://www.conjur.com.br/2025-mai-21/a-justica-dos-modeloes-reflexoes-sobre-ouso-de-ia-na-producao-de-decisoes-e-sentencas-criminais/

15 https://veja.abril.com.br/coluna/planeta-ia/algoritmos-e-o-banco-dos-reus-osriscos-da-ia-generativa-nos-tribunais/

16 https://tiinside.com.br/04/04/2025/vieses-algoritmicos-sao-desafio-para-empresasna-incorporacao-da-ia/

17 https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2487262#:~:text=PL%202338%2F2023%20Inteiro%20teor,Projeto%20de%20Lei&text=Ementa-,Disp%C3%B5e%20sobre%20o%20desenvolvimento%2C%20o%20fomento%20e%20o%20uso%20%C3%A9tico,11%20de%20janeiro%20de%202023

18 https://convergenciadigital.com.br/governo/anpd-prioriza-inteligencia-artificialbiometria-e-poder-publico/

19 https://www.gov.br/anpd/pt-br/centrais-de-conteudo/documentos-tecnicosorientativos

20 https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/anpd-determina-suspensaocautelar-do-tratamento-de-dados-pessoais-para-treinamento-da-ia-da-meta

21 https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/anpd-apresenta-resultados-datomada-de-subsidios-sobre-tratamento-automatizado-de-dados-pessoais

22 https://diario.oab.org.br/pages/materia/842347

23 https://amparo.esaoabsp.edu.br/Curso/10312-inteligencia-artificial-para-advogadostransformando-a-pratica-juridica-em-tecnologia/

24 https://www.jusbrasil.com.br/artigos/impacto-da-inteligencia-artificial-no-direitodesenhos-e-possibilidades/

25 https://www.conjur.com.br/2025-mai-24/precisamos-falar-do-treinamento-para-ouso-de-inteligencia-artificial-no-direito/

Helio Ferreira Moraes

Helio Ferreira Moraes

Coordenador da Comissão de Tecnologia do CCBC. Sócio do PK - Pinhão & Koiffman Advogados.

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