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A liberdade de expressão e o limite do humor

A liberdade de expressão tem limites, mas humor sem dolo ofensivo não é crime. Condenar piadas é retroceder à censura sob pretexto de proteger.

terça-feira, 10 de junho de 2025

Atualizado às 12:59

Nós, brasileiros, estamos assistindo, todos os dias, diversos debates sobre a existência, ou não, de limites à liberdade de expressão. A resposta é clara: sim, como todo direito, a liberdade de expressão possui limitação. Podemos dizer que até mesmo o direito à vida possui limitação: exemplo disso é a permissão legal que uma pessoa tem para praticar a conduta de homicídio, quando, ao sofrer agressão injusta, atual ou iminente, contra si ou contra terceiros, usando os meios moderados, é autorizada a tirar a vida do agressor. Ou seja, se o homicídio é praticado em legítima defesa, desaparece a ilicitude da conduta "matar alguém". Então, sim, a liberdade de expressão possui seu limite.

A problemática ocorre em saber qual é esse limite.

A nosso ver, afirmar que a liberdade de expressão é ilimitada é tão errado quanto desejar responsabilizar, especialmente na área criminal, uma pessoa sem que antes seja feita uma análise fática, criteriosa e à luz do princípio da razoabilidade.

E, na área do direito penal, o que muitos vêm se esquecendo é um precioso detalhe que conduz toda e qualquer conduta relativa à liberdade de expressão em relação ao direito penal: o dolo. Este é o elemento que deve estar, sem nenhuma dúvida, presente para impor a uma pessoa uma condenação, por exemplo, pelo crime de injúria racial, religiosa etc.

Sem a certeza de que a intenção da pessoa que foi denunciada pela prática de um crime, que ocorre pela propalação de palavras ou gestos, é indispensável que se verifique que, de fato, a intenção, livre e consciente, daquele que executa a conduta típica é, por exemplo, ofender alguém, em razão de sua etnia, religião, gênero.

E mais, em nossa opinião, não é qualquer dolo: o dolo deve ser específico! A intenção deve estar clara, ou seja, deve estar demonstrada, de forma inquestionável, que a intenção da pessoa era mesmo cometer aquele delito. Mas, por dever de ofício, vale pontuar que há entendimento de que bastaria o dolo genérico. No entanto, filiamo-nos àqueles que entendem que o dolo deve, mesmo, ser o específico.

E aí chegamos à pergunta que vem, há muito, sendo feita: "o humor tem limite"? A nosso ver, a resposta deve ser baseada, principalmente, no elemento subjetivo do tipo, conforme dissemos: a intenção do humorista (pelo menos a princípio) não é ofender, descriminar, razão pela qual não há falar em crime, ainda que o tema seja religião, raça, etnia.

Recentemente, o humorista Léo Lins foi condenado a 8 (oito) anos e 3 (três) meses, em regime fechado, porque, em um show (sim, em um espetáculo, onde as pessoas pagaram ingresso para ali estar), ele teria ofendido pessoas gordas, idosas, evangélicas, deficientes.

Nada mais absurdo, a nosso ver! E a resposta é muito simples: a intenção era ofender ou o animus ali era o de fazer piada? É evidente e indiscutível que havia, ali, animus jocandi, que a doutrina clássica e a moderna sempre reconheceram que jamais serviu para tipificar qualquer conduta.

Léo Lins é, inquestionavelmente, um humorista. E isso é uma forma de expressão artística. Assim como o ator que xinga alguém em uma novela não pode ser processado - porque não há intenção real de ofender -, o humorista também não possui esta exata intenção. Pode-se dizer que são, no máximo, "piadas de mau gosto". Sim, para alguns, não há dúvida. No entanto, humorista que faz "piada de mau gosto" não pratica crime! Porque, novamente, sem a demonstração inequívoca do dolo específico, não existe crime.

Compreende-se a necessidade de educar, prevenir e, com certeza, punir toda e qualquer forma de discriminação. No entanto, jamais será aceitável, para o direito penal, que um artista, que, em seu show, faz piadas (ainda que com minorias, ainda que desprezíveis, ainda que, para muitos, "sem-graça"), pratica crime, porque ali, no palco, há uma "persona", que não se confunde com a pessoa física do humorista. E muitos vão argumentar: "mas foi a pessoa de Léo Lins quem escreveu as frases, as piadas". Ora, por acaso os autores de alguma peça de teatro, novela, filme, que tenham em seu roteiro alguma encenação de discriminação respondem por seus textos e roteiros? Não. E o mesmo tratamento deve ser dado ao humorista, que é um artista tanto quanto o ator, o cantor, o autor de novelas.

Mais um exemplo: se as palavras de Léo Lins fossem colocadas em uma música, esta música deveria, então, ser censurada, proibida? Óbvio que não! É uma expressão de arte, sem qualquer intenção específica de ofender. Se um autor escreve uma certa música, em um contexto de objetificação da mulher, por exemplo, isso é crime? É violência de gênero? Não. Todos nós sabemos que não, porque não há nenhuma intenção de praticar a violência de gênero. Há inúmeras músicas com este contexto, sendo até desnecessário citar.

Pessoas pagaram para ouvir aquele tipo de texto. Pessoas religiosas, pessoas com nanismo, pessoas idosas, pessoas gordas, que compram os ingressos para o show de Léo Lins, ou que acessam qualquer conteúdo que ele faça, sabem muito bem o tipo de humor que ele produz. E, mesmo assim, consomem este tipo de conteúdo, voluntariamente.

Nem se diga que o fato de o tal show ter sido inserido na plataforma do Youtube viabilizaria a condenação. Léo Lins é conhecido justamente por conta deste tipo de humor. Se uma pessoa ou outra não gosta, ou não entende como humor, é um direito que ela tem. Daí a dizer que é vítima de discriminação, vítima de injúria, por conta disso, é algo bem diferente. O juiz não pode condenar alguém porque a arte produzida é de mau gosto, ou porque alguém simplesmente se sentiu ofendido, já que é evidente que, ali, o que se fazia, era um espetáculo, um stand up comedy (o que consta expressamente da denúncia e da sentença prolatada neste caso concreto) e isso afasta, completamente, qualquer tipo de análise criminal a respeito de suas falas: o animus é jocandi1!

A sociedade evoluiu - felizmente - para criminalizar condutas péssimas que, antes, eram socialmente admitidas. No entanto, havendo excesso, exagero e despreparo ao aplicador da lei - que se deixa levar pelo âmago e pelo fígado, a despeito da aplicação do direito - o retrocesso virá. É fato! O Brasil, após muitos anos de luta, pôde experimentar viver um humor (e não ele) sem censura. Basta lembrar do tipo de humor que faziam os rapazes do "Casseta & Planeta". Criminalizar o humor é, sem dúvida alguma, um retrocesso imenso e um enorme passo à "legalização da censura", sob o pretexto de "proteger" minorias.

Por isso, nestes casos, tão em voga, sobre a liberdade de expressão no ramo humorístico, cabe ao aplicador do direito, especialmente na área criminal, pautar-se, sim, pela análise da situação no caso concreto, mas sem, no entanto, esquecer de avaliar a presença indiscutível do dolo (mesmo que seja o genérico), pois, mesmo na dúvida, a resposta deve ser a absolvição.

Então, é certa a resposta à pergunta sobre "qual é o limite do humor": a existência inquestionável do dolo.

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Intenção de brincar.

Flávia Elaine Remiro Goulart Ferreira

Flávia Elaine Remiro Goulart Ferreira

Advogada criminalista e sócia do escritório Cláudia Seixas Sociedade de Advogados.

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