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O convento de Santo Antônio de Cairu e o direito de propriedade

Escritura de 1651 revela doação do terreno do Convento de Cairu, prova rara e histórica do direito de propriedade em ilhas costeiras.

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Atualizado às 15:21

Mais uma preciosa escritura pública de terra revelada no acervo do Arquivo Público do Estado da Bahia: A doação do terreno no qual foi edificado o convento e igreja de Santo Antônio, na ilha sede do município e arquipélago de Cairu1. A data do ato é 25/12/1651. O texto foi transcrito de uma certidão datada de 1808 e sua importância é histórica e jurídica.

Não é usual título de propriedade que se mantém produzindo efeitos jurídicos por 374 anos na mesma titularidade e com a sua área integralmente preservada tal como foi doada. Esse fato é incomum e estando em Cairu tem outro aspecto simbólico importante: a prova do direito de propriedade em ilha costeira, com origem anterior a 1850, condição que a SPU - Secretaria do Patrimônio da União se esforça em negar ao não reconhecer títulos particulares em ilhas costeiras. 

A escritura pública tem algumas informações importantes. A data de 25/12/1651 recua em três anos o momento em que teve início formal a construção do convento. O ato refere-se à existência de pequena ermida de Santo Antônio com sua varanda, a qual era guardada por sua confraria. 

Essa antiga ermida de Santo Antônio remonta à senhora Antônia de Pádua de Góes, esposa de Domingos da Fonseca Saraiva, titular da primeira doação das terras da ilha de Tinharé, já referido como tal em 1586, por menção de Gabriel Soares de Souza, autor do magnífico Tratado Descritivo do Brasil.

Antônio de Couros Carneiro figura no ato como síndico do convento e recebe a doação em nome dos franciscanos. Ele foi importante líder político e militar na capitania de Ilhéus e defendeu a região de Tinharé no conturbado período das invasões holandesas.

Diogo da Rocha de Sá assina a escritura como testemunha. Ele é filho de Fernão Ribeiro de Souza, dono de engenho de açúcar na região no século XVI, situado no continente, nas proximidades do embarcadouro de graciosa e provável fundador da igreja de Nossa Senhora do Rosário de Tinharé, nome da antiga freguesia e da vila de Cairu por séculos. 

A SPU nega o direito de propriedade nas conhecidas e turísticas ilhas de Tinharé e Boipeba. Esse fato transformou o município de Cairu em pária da ordem jurídica imobiliária brasileira. Hoje, não é viável o investimento imobiliário em Cairu. Não é fácil obter parcelamento regular de solo em Cairu. Não é possível obter financiamento imobiliário em Cairu. Não é seguro adquirir um imóvel em Cairu. O município não consegue realizar a sua competência de ordenação territorial. Simplesmente, o direito da SPU é próprio e interpretado para afastar o direito de propriedade dos particulares. O SPU é algoz e destruidor da atividade econômica imobiliária em Cairu. A SPU abusa do seu poder contra todos os possuidores e proprietários de terras em Cairu e nas ilhas costeiras.

Os títulos de propriedade e suas cadeias sucessórias no arquipélago remontam ao século XVI e estão bem documentadas por conta da qualidade das transcrições e registros no ofício de imóveis. O título do convento de Santo Antônio é um dentre tantos e como já foi dito remonta a 1651. 

A SPU interpreta o direito ao seu modo e interesse e nos seus papéis e manifestações existem pérolas como essa: "Não se nega que a Ilha Tinharé esteve ocupada e povoada ao longo dos anos. Todavia, resta claro, após análise história dos fatos, dos documentos e da legislação pertinente, que as pessoas que ali habitavam foram mantidas na posse das referidas terras ao longo dos anos por liberalidade do Estado Brasileiro (art. 8º, da Lei nº 610/1850), tendo estado as referidas propriedades inseridas e mantidas no domínio público desde o descobrimento."

A escritura do convento de Santo Antônio segundo se pode interpretar da transcrição acima não seria para a União um título de propriedade. Apenas uma liberalidade do Estado brasileiro! Qualquer coisa, menos um título de propriedade! Esse é o tipo de situação que evidencia o abuso de poder na interpretação da norma, o qual precisa ser limitado e coibido pelos poderes constituídos da República.

Os antigos costumavam atribuir à Santo Antônio a patente de militar pela crença na força do santo como defensor. Aqui, convém evocar mais uma vez essa fé na esperança de que Santo Antônio proteja o povo de Cairu das usurpações e ilegalidades da SPU visando tomar-lhe as terras e reduzi-lo à condição de ocupantes. 

O título de propriedade do convento de Santo Antônio está lá firme no seu chão, nos seus limites, protegido pelo santo e vivo por mais de 374 anos. Essa é a estabilidade e segurança jurídica que o povo de Cairu e das ilhas costeiras merecem e quem sabe invocando-o, o bom santo ajude na causa. 

Transcrição da escritura de doação

Instrumento em pública forma com teor do traslado de uma escritura de doação feita aos religiosos de Santo Antônio desta vila e mais uma petição com despacho e certidão que tudo reconhece como verdadeiro e é como assim se declara

Saibam quantos este público instrumento dado e passado em pública forma do ofício de mim tabelião virem que sendo no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e oito aos dezesseis dias do mês de agosto do dito ano nesta Villa de Nossa Senhora do Rosário de Cairu e comarca dos Ilhéus e cartório de mim tabelião adiante nomeado por parte de José Ferreira da Cunha síndico do convento de Santo Antônio desta Vila me foi apresentado o traslado de um escritura de doação feita aos religiosos do mesmo convento por Bento Salvador e o dito traslado junta uma petição despachada e com certidão que por achar verdadeira e limpo sem vício, borrão e entrelinhas ou coisa que dúvida faça lhe dou a presente e os seus teores verbo ad verbum  são os seguintes = Lançada na Nota a folhas cinquenta e dois verso do livro nono. Traslado da escritura de doação que faz Bento Salvador aos religiosos de São Francisco e em seu lugar ao seu síndico Antônio de Couros Carneiros da terra que ele foi necessária para a fundação do novo convento e toda que lhe for necessária para as suas hortas e cercas: Saibam quantos este público instrumento de doação virem que no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil seiscentos e cinquenta e um anos dia de natal do presente ano no sítio de Santo Antônio desta vila de Nossa Senhora do Rosário do Cairu e estando presente o Governador das Armas Antônio de Couros Carneiros e os oficiais da Câmara do ano passado que servem até dia de janeiro inclusive o juiz Manoel de Uzeda de Ayala, o juiz Francisco Cardoso Pereira e os vereadores José Luís de Espínola e Jorge da Costa Teixeira e o procurador Antônio Vaz da Veiga e os mordomos da Confraria do Glorioso Santo Antônio Paulo Fernandes, Francisco Dias Ramos, João Coelho, Domingos Gonçalves, Antônio Ramos e as mais pessoas que abaixo assinaram apareceu perante mim tabelião abaixo nomeado e das testemunhas abaixo assinadas Bento Salvador e por ele foi dito que ele por sua livre vontade e de sua mulher Isabel Gomes de quem ele tinha procuração contente e de mim tabelião davam e doavam como com efeito deram e doaram com doação perpétua e para sempre valedoura a terra que estava ao redor da dita ermida de Santo Antônio desta Vila de Cairu que começa da casas do governador Antônio de Couros Carneiro por uma parte e da outra das casas de Simon Pinto de Faria donde vira cortando até passar o brejo da outra banda do rio ficando sempre o brejo e uma água dentro da cerca a qual continuando fará volta pela outra banda até porto do Salgado donde tornará a cerca a esta banda e virá cortando até as casas velhas do governador Antônio de Couros Carneiro o qual tudo doaram com efeito para os religioso do seráfico São Francisco fundarem um convento com sua cerca e forte da banda do Porto de Santo Antônio por cima da casa que foi de Manoel da Cruz virá a cerca como dito é até as casas do dito Antônio de Couro Carneiro dezesseis braças craveiras da varanda da dita ermida para o nascente e declarou que faziam também doação ...que dentro desta demarcação na data se incluem o que tudo com efeito aceitou e recebeu  seu domínio o dito Governador Antônio de Couros Carneiros como síndico dos ditos religiosos e os ditos oficiais da Câmara a desembargar e fazer livres quaisquer chãos que estivesse embaraçados dentro da dita  doação e os religiosos que neste ato assistiram como foram o padre definidor Frei Gaspar da Conceição que fica por prelado do dito recolhimento, o padre definidor Frei Jerônimo de Santa Catarina, o padre frei Daniel de São Francisco guardião do Convento da Bahia prometeram e em nome do padre Custódio Frei Sebastião do Espírito Santo que protestava dar-lhe uma sepultura no Cruzeiro da Igreja Nova que se houver de fazer adiante ao dito Bento Salvador e sua mulher para se enterrar nela e se falecerem antes disto se lhes dará nesta ermida de Santo Antônio no mesmo lugar e outrossim os irmãos da confraria de Santo Antônio acima ditos entregaram aos ditos religiosos e síndico tudo o que pertence a dita confraria como constará do inventário que fica na mão dos religiosos assinados e com os ditos mordomos e todos juntos o governador Antônio de Couros Carneiros e oficiais da Câmara e o doador das terras Bento Salvador e oficiais de Santo Antônio e mais povo aceitaram e meteram de posse aos ditos religiosos da dita igreja de Santo Antônio e da dita terra e da fábrica da dita igreja com as suas pertenças e de como todos foram contentes e aceitaram que a vinda dos ditos religiosos é para o bem do dito povo e aumento deles e salvação das suas almas e de como o houveram por bem mandaram fazer esta escritura nesta Nota, que dela desse os traslados que necessários fossem e de como assim o mandaram e aceitaram se assinaram todos. Eu, Manoel de Almeida tabelião que o escrevi. Cruz de Bento Salvador = Antônio de Couros Carneiro = Declaro que Bento Salvador assinou nome e por sua mulher Izabel Gomes = Manoel de Uzeda de Ayala = Francisco Cardoso Pereira = José Luis de Espínola = Antônio Vaz da Veiga = como mordomos de Santo Antônio = Siman Francisco = o vigário Antônio Camello = Paulo Fernandes = Diogo da Rocha de Sá = João de Souza Delmondo = Domingos Gonçalves = Antônio Ramos = Francisco Dias Ramos = Antônio Soares de Abreu = O qual traslado de escritura de doação eu Nicolau Pereira, digo Nicolau de Souza Pereira tabelião público do judicial e notas nesta vila de Nossa Senhora do Rosário de Cairu, ... trasladei bem e fielmente do livro da Escritura de doação, petição a ele junta e seu despacho, certidão e concerto que tudo bem e fielmente passei na presente pública forma do próprio, a que me reporto. Cairu, dia, mês e ano assim inítio. Eu, Francisco Antônio de Barbuda Tabelião que escrevi, conferi, me reportei e com outro oficial de justiça abaixo assinado as concerto, a concertei e em público e raso assinei.

Em testemunho de verdade             Francisco Antônio de Barbuda (1808)

E comigo Juiz Ordinário                     

José Maurício Ribeiro de Aguiar.      Concertado por tabelião Francisco Antônio de Barbuda (1808)

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1 APEB. N. 614, N. 614 Fundo do Governo Geral/ Governo da Capitania, incluem informações sobre bispos de diversas localidades, inventários. https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:3Q9M-CSVL-33S6?view=explore&groupId=TH-909-70833-2510-48&lang=pt

Luiz Walter Coelho Filho

Luiz Walter Coelho Filho

Sócio-fundador do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Sociedade de Advogados. Graduado em Direito pela UFBA, ano de 1985. Exerce a advocacia nas áreas de Direito Administrativo e Imobiliário

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