Autoridade e poder quando a norma não se legitima pela força
O artigo reflete sobre autoridade, poder e legalidade, destacando o papel da Administração Pública e os limites impostos pelo princípio da legalidade no Estado Democrático de Direito.
segunda-feira, 23 de junho de 2025
Atualizado em 20 de junho de 2025 13:56
A crise de autoridade que hoje vivenciamos em grande parte se deve à falta de identidade e a consequente perda da noção de pertencimento na sociedade. Essa falta de reconhecimento se expande às instituições do Estado, ou seja, estaria diametralmente associada à noção de cidadania. Não se deve ter em vista a figura de Estado controlador, mas, um Estado garantidor dos direitos e garantias individuais, sendo que a legitimidade de suas decisões será sempre pautada na dignidade humana, o que não teria relação direta em um poder absoluto de influenciar ou controlar o comportamento de outros.
Nietzsche reconhece e coloca como o caráter fundamental do ente na totalidade aquilo que ele denomina "vontade de poder".
O vocábulo da palavra é muito associado a domínio ou potência, não é à toa que as duas palavras têm a mesma origem e praticamente o mesmo significado, excepcionalmente se distinguem na semântica, potência denota uma capacidade futura de transformar-se ou fazer-se, já poder denota a envergadura de ser e de fazer.
O poder é força e autoridade é a capacidade de impor-se, seja pela força bruta, seja pelo convencimento. A aptidão desse convencimento que marca de forma indelével o poder, faz com que quem o exerça sinta-se tentado a abusar do mesmo por tornar as pessoas poderosas. Nas palavras de Montesquieu em sua clássica obra O espírito das leis, transcrevemos a seguinte lição sobre o fascínio que o poder exerce:
"Mas trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. Quem, diria! Até a virtude precisa de limites. Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder." (CHARLES LOUIS DE SECONDAT, BARÃO DE MONTESQUIEU 200, São Paulo: Martins Fontes, 1996, Livro primeiro, capítulo IV.p. 166 e 167 )
Diante de tanto fascínio com algo tão singular e tão sedutor na humanidade, vários pensadores tentaram explicar, racionalizar, entender o poder. Nesse sentido, os filósofos Aristóteles, Nicolau Maquiavel, Friedrich Nietzsche, Karl Marx, Norberto Bobbio e Michel Foucault desenvolveram curiosas e intensas teorias sobre o poder, entendendo-o como artifícios do âmbito político e social e como um aspecto natural da vida.
Todo poder só é poder na medida em que e quanto ele é mais poder, ou seja, elevação do poder. Todo poder só é poder quando ultrapassa e excede o nível de poder a cada vez alçado (Heidegger - superpotencialização). No momento em que o poder permanece parado em um nível de poder, ele já se torna impotência. Nietzsche relaciona com "força". Somente o poder e somente ele impõe a sua aceitação enquanto valor pricipiológico.
A necessidade do controle dos atos administrativos.
O atual presidente da Suprema Corte de Justiça de nosso país, o ministro Luís Roberto Barroso na obra "Interpretação e aplicação da Constituição" aborda o tema de forma peculiar, vejamos:
[.] "Os princípios são muito importantes porque, pela sua plasticidade conferem maior flexibilidade à Constituição, permitindo a ela que se adapte mais facilmente às mudanças que ocorrem na sociedade". Além disso, por estarem mais próximos dos valores, eles ancoram a Constituição no solo ético, abrindo-a para conteúdos morais substantivos. Por isso, seria inadmissível uma combinação baseada apenas em normas regras.
[.] Sem embargo, também seria inviável uma Constituição que se fundasse apenas sobre princípios, pois esta carrearia ao sistema uma dose inaceitável de incerteza e insegurança, já que a aplicação dos princípios se opera de modo mais fluido e imprevisível do que a das regras.
[.] Na verdade, os princípios constitucionais encarnam juridicamente os ideias de justiça de uma comunidade, escancarando a Constituição para uma 'leitura moral', pois é, sobretudo, através deles que se dará uma espécie de positivação constitucional dos valores do antigo direito natural, tornando-se impossível uma interpretação axiologicamente asséptica da Constituição"
(Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva 1996, p. 142-143).
Os poderes conferidos para a atuação da Administração é o que chamamos de uso do poder de imperium, o seu uso deve ter por finalidade à melhor satisfação do interesse público, em observância aos princípios administrativos, a lei e a finalidade do ato. Não por acaso o art. 37 da nossa Carta Magna nos mostra tais princípios de forma clara.
CF/1988, art. 37- A Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)
Citando Antonio-Enrique Perez Luño, em sua obra em La universalidad de los Derechos Humanos y el Estado Constitucional, nos deparamos com esta valorosa lição quanto a necessidade de convivermos com as peculiaridades e as incertezas que o poder carrega em si:
Uma cultura que implica este processo de superação das condições de limitação auto-impostas a partir da própria dialética das ideias na história é o que marca o crescente mecanismo de revisão da cultura político-jurídica prevalecente para que se fixem as bases de desenvolvimento de um Estado Constitucional.
(Antonio-Enrique Perez Luño. La universalidad de los Derechos Humanos y el Estado Constitucional.Madrid, Tecnos,2002, p.97)
Destaco para melhor debate da matéria o princípio constitucional da legalidade esculpido no art. 37, sendo aplicável às administrações públicas direta e indireta, de todos os Poderes e todas as esferas de governo. A legalidade apresenta dois significados distintos. O primeiro aplica-se aos administrados, isto é, às pessoas e às organizações em geral. Conforme dispõe o inciso II, do art. 5°da Carta Magna: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Dessa forma, para os administrados tudo o que não for proibido será permitido.
O segundo da legalidade insere-se no contexto dos atos administrativos, diretamente conexos ao art. 37, caput, da CF/1988, que impõem e limita a atuação da administração a previsão legal ou princípio de estrita legalidade.
Nesse contexto, a Administração deve se limitar aos ditames da lei, não podendo por simples ato administrativo, conceder direitos de qualquer espécie, criar obrigações ou impor vedações. Para tanto, depende de prévia edição legal.
A meu sentir talvez estejamos a considerar o debate pelo viés da reserva legal ao invés da estrita legalidade. Não há que se falar em reserva legal ao caso mas sim aos princípios legais da Administração Pública.
O princípio da legalidade determina que a atuação administrativa deva pautar-se na lei em sentido amplo, abrangendo qualquer tipo de norma, desde a Constituição Federal até os atos administrativos normativos (regulamentos, regimentos, portarias, etc.). Por outro lado, a reserva legal significa que determinadas matérias devam ser regulamentadas necessariamente por lei formal (lei em sentido estrito) são sentidos distintos onde um trata da atuação administrativa e o outro da regulamentação de matérias determinadas. Atualmente a doutrina nos trouxe o conceito de juridicidade administrativa. Trata-se da imposição da legalidade a administração publica não somente em seu sentido formal ou imóvel, mas partindo agora de uma postura da análise do o ordenamento jurídico como um todo.
A juridicidade administrativa originou a devida importância ao Direito que passou a ser visto de forma plena e consequentemente a noção da sua legitimidade. A atuação da Administração Pública passa a concretizar efetivamente a Constituição ou nas palavras do professor Konrad Hesse, na sua força normativa, na eficácia da legalidade e na legitimidade, aspectos necessários e determinantes do que Ferrajolli denominou de estado constitucional democrático de direito. Em obra que aborda o tema o mestre de Florença assim leciona:
O Estado de Direito que emerge da transição do Estado absoluto representa um "Estado legislativo de Direito", ou seja, tem no princípio da legalidade a fonte exclusiva de validade e existência do Direito, desde que postas pela autoridade com competência normativa (Luigi Ferrajoli. O Estado de Direito entre o passado e o futuro. O Estado de Direito: história, teoria e crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 422- 423)
Tais limites imperativos ao Estado são obra da estrita legalidade, graças aos limites do principio da legalidade, a administração pública, ainda não usurpou por completo nossas garantias e direitos fundamentais. É, portanto, vital para Estado de Direito a criação de tais limites, assim, os atos da Administração Pública se realizam pelo seu controle e limite. Para a existência plena do Estado se torna necessário o controle do mesmo, os que podem ser considerados validos ou inválidos.
Concluímos que a Administração Pública obrigatoriamente se pauta e se limita pelo já debatido principio da legalidade. O professor da Universidade de Turim e juiz do Tribunal Constitucional da Itália entre os anos de (1995-2004), Gustavo Zagrebelsky em sua obra:
(El derecho dúctil: ley, derechos, justicia), amplia o debate ao lembrar a existência de outros princípios também afetados pela legalidade, a exemplo da separação de poderes. Vejamos:
A Concentración de la producción jurídica en una sola instancia constitucional, la instancia legislativa. Su significado supone una reducción de todo lo que pertenece al mundo del derecho - esto es, los derechos y la justicia - a lo dispuesto por una ley. Esta simplificación lleva a concebir la actividad de los juristas como un mero servicio a la ley, si no incluso como su simple exégesis, es decir, conduce a la pura y simple búsqueda de la voluntad del legislador.
(Gustavo Zagrebelsky. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Tradução de Marina Gascón. Madrid: Editorial Trotta, 2011. p.33)
Seu significado supõe uma redução de tudo o que pertence ao mundo do direito - isto é, Direito e Justiça - às disposições de uma lei. Esta simplificação leva a conceber a atividade dos juristas como mero serviço ao direito, senão mesmo como sua simples exegese, ou seja, conduz à busca pura e simples da vontade do legislador.
Ao que já fora dito, podemos concluir com as sempre efusivas ministrações do mestre de todos nós, o professor Paulo Bonavides, que sintetizou de maneira perspicaz o fenômeno da convivência e do necessário equilíbrio entre poder e democracia, no livro Do país constitucional ao país neocolonial, são dele o que agora trago a reflexão:
Dos órgãos de soberania que compõem o poder do Estado, o mais vulnerável, o mais exposto as vicissitudes e fraqueza da organização política, o mais sujeito a reparos, nem sempre justos, é, por sem dúvida, o Poder Judiciário.
Chave de todos os equilíbrios sociais suscetíveis de afiançar a estrutura de uma sociedade livre, aberta e democrática, acha-se ele, todavia, no centro de uma das piores crises que estão a convelir o principio da separação de poderes. E prossegue:
A crise não é propriamente do Poder Judiciário, mas do Estado mesmo e, neste, do Poder Executivo, seu ramo hegemônico, onde ela grassa com extrema virulência e intensidade, irradiando-se, em seguida, aos demais poderes.
(PAULO BONAVIDES, Do país constitucional ao país neocolonial. A derrubada da constituição e a recolonização pelo golpe de Estado Institucional.4ª edição, Malheiros Editores, São Paulo/SP, p.71)
Mário Goulart Maia
Sócio do Kohl & Maia Advogados.


