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A coisa julgada nos benefícios previdenciários por incapacidade

Análise crítica sobre a relativização da coisa julgada em benefícios por incapacidade quando há novo requerimento administrativo com provas de agravamento.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Atualizado às 07:48

Introdução

A discussão sobre os limites da coisa julgada em matéria previdenciária, especialmente no que concerne aos benefícios por incapacidade, tem suscitado importantes debates doutrinários e jurisprudenciais. A tensão entre a segurança jurídica, representada pela imutabilidade das decisões judiciais, e a necessidade de proteção social adequada, considerando a natureza dinâmica das condições de saúde dos segurados, exige uma análise aprofundada dos institutos processuais aplicáveis à matéria.

O ordenamento jurídico brasileiro consagra a coisa julgada como garantia constitucional, prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, e regulamentada pelos arts. 502 a 508 do CPC. Contudo, a aplicação desse instituto às relações jurídicas continuativas, como são as previdenciárias, demanda uma interpretação que considere suas peculiaridades e a finalidade protetiva da seguridade social.

Nesse contexto, emerge a discussão sobre a possibilidade de relativização da coisa julgada em ações que pleiteiam benefícios previdenciários por incapacidade, quando há novo requerimento administrativo e demonstração de agravamento de doença. A questão torna-se ainda mais complexa quando, na nova ação judicial, o perito fixa a DII - Data de Início da Incapacidade em período no qual o fato já havia sido discutido em processo anterior, com decisão transitada em julgado que não reconheceu a incapacidade laborativa.

O presente estudo propõe-se a analisar criticamente essa problemática, partindo da premissa de que a coisa julgada em matéria previdenciária opera secundum eventum litis ou secundum eventum probationis, ou seja, segundo o resultado do processo ou segundo o resultado da prova. Busca-se demonstrar que a superveniência de novo processo administrativo, com novos documentos médicos, configura alteração na situação fática capaz de afastar os efeitos da coisa julgada, mesmo quando a DII fixada pelo perito na nova ação remonta a período anterior ao trânsito em julgado da ação precedente.

A relevância do tema justifica-se pela necessidade de harmonizar os princípios da segurança jurídica e da proteção social, garantindo que o instituto da coisa julgada não se converta em obstáculo à efetivação dos direitos previdenciários em face de alterações no estado de saúde do segurado. Ademais, a compreensão adequada dos limites da coisa julgada em matéria previdenciária é fundamental para orientar a atuação de magistrados, advogados e demais operadores do direito que lidam com ações de benefícios por incapacidade.

1. Fundamentos teóricos da coisa julgada em matéria previdenciária

1.1. Coisa julgada e relações jurídicas continuativas

A coisa julgada, enquanto instituto processual destinado a garantir a estabilidade das decisões judiciais, encontra peculiaridades em sua aplicação às relações jurídicas continuativas, como são as previdenciárias. O art. 505, I, do CPC estabelece que a sentença de mérito transitada em julgado poderá ser revista quando "se tratar de relação jurídica de trato continuado e sobrevier modificação no estado de fato ou de direito", hipótese em que "poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença".

Essa previsão normativa reconhece que determinadas relações jurídicas, por sua própria natureza, estão sujeitas a alterações fáticas ou jurídicas supervenientes que justificam a revisão do que foi decidido. Como observa Dinamarco (2019, p. 237), "as sentenças que dispõem sobre relações continuativas contêm implicitamente a cláusula rebus sic stantibus, significando que sua eficácia perdura enquanto permanecerem inalterados os pressupostos fáticos e jurídicos existentes ao tempo de sua prolação".

No âmbito previdenciário, essa característica é particularmente relevante quando se trata de benefícios por incapacidade, cuja concessão está condicionada à verificação de um estado de saúde que, por sua própria natureza, é dinâmico e sujeito a alterações. Como bem observa Savaris (2020, p. 45), "a incapacidade laborativa, enquanto fato jurídico que fundamenta a concessão de benefícios previdenciários, possui caráter essencialmente mutável, podendo agravar-se, atenuar-se ou mesmo cessar ao longo do tempo".

Essa mutabilidade intrínseca às condições de saúde do segurado justifica a aplicação diferenciada do instituto da coisa julgada às ações que pleiteiam benefícios por incapacidade. Conforme destaca Lazzari (2023, p. 312), "a coisa julgada em matéria previdenciária, especialmente no que concerne aos benefícios por incapacidade, deve ser compreendida à luz da finalidade protetiva da seguridade social, não podendo converter-se em obstáculo à efetivação dos direitos fundamentais do segurado em face de alterações em seu estado de saúde".

1.2. Coisa julgada secundum eventum litis e secundum eventum probationis

A doutrina processual contemporânea reconhece diferentes modalidades de formação da coisa julgada, entre as quais se destacam a coisa julgada secundum eventum litis e a coisa julgada secundum eventum probationis. Enquanto a primeira condiciona a formação da coisa julgada ao resultado do processo, a segunda a condiciona ao resultado da prova.

No direito previdenciário, tem-se consolidado o entendimento de que a coisa julgada opera secundum eventum litis ou secundum eventum probationis, especialmente nas ações que pleiteiam benefícios por incapacidade. Conforme explica Leite (2020, p. 1725), "a coisa julgada secundum eventum probationis impede a constituição da coisa julgada material em decisões judiciais improcedentes por insuficiência de provas, como uma técnica processual mais consentânea à teoria do processo e, sobretudo, mais legítima e adequada para as demandas judiciais previdenciárias".

Essa orientação já firmada na jurisprudência pátria reflete a preocupação com a efetivação dos direitos previdenciários, reconhecendo que a insuficiência probatória em um primeiro processo não deve obstar definitivamente o acesso do segurado à proteção previdenciária, caso posteriormente reúna elementos que comprovem seu direito.

1.3. A cláusula rebus sic stantibus nas ações previdenciárias

As ações que pleiteiam benefícios previdenciários por incapacidade têm como objeto relações jurídicas continuativas, sujeitas a variações em seus elementos constitutivos ao longo do tempo. Por essa razão, as sentenças nelas proferidas contêm implicitamente a cláusula rebus sic stantibus, vinculando-se aos pressupostos fáticos existentes ao tempo de sua prolação.

Essa característica foi bem sintetizada pelo TRF da 4ª região:

  • "As ações de concessão de benefício previdenciário por incapacidade para o trabalho caracterizam-se por terem como objeto relações continuativas e, portanto, as sentenças nelas proferidas se vinculam aos pressupostos do tempo em que foram formuladas, sem, contudo, extinguir a própria relação jurídica, que continua sujeita à variação de seus elementos. Tais sentenças contêm implícita a cláusula rebus sic stantibus, de forma que, modificadas as condições fáticas ou jurídicas sobre as quais se formou a coisa julgada material, tem-se nova causa de pedir próxima ou remota (TRF4, AC 5019929-28.2018.4.04.9999, Rel. p/ Acórdão des. Fed. Celso Kipper, 9ª turma, j. 16/12/2022, grifou-se)

A aplicação da cláusula rebus sic stantibus às ações previdenciárias encontra fundamento na própria natureza do direito material em discussão. Como observa Macedo (2025, p. 280), "o próprio legislador, indicando o caminho probabilístico da avaliação da incapacidade, no aspecto temporal, utilizou o termo 'estimado', que é sinônimo de 'provável', quando se referiu à data de duração do benefício", evidenciando o caráter dinâmico e mutável das condições de saúde que fundamentam a concessão de benefícios por incapacidade.

Leia o artigo na íntegra.

Alan da Costa Macedo

VIP Alan da Costa Macedo

Doutorando em D. Trab e Seguridade Social na USP. Mestre em Direito Público, Especialista em D. Constitucional, Previdenciario, Processual e Penal. Coordenador Científico do IPEDIS.

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