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Poluidor x Transgressor: Repercussões conceituais na responsabilidade administrativa e civil ambiental

Poluidor e infrator não são sinônimos. A distinção entre eles é essencial para aplicar corretamente os diferentes regimes de responsabilidade ambiental no Brasil.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Atualizado em 26 de junho de 2025 16:01

1. Introdução

1. Ao ingressarmos na temática da responsabilidade ambiental, é imprescindível destacar a centralidade dos conceitos jurídicos no âmbito do Direito Ambiental. Trata-se de um ramo jurídico profundamente interdisciplinar, que dialoga com saberes das ciências naturais, da engenharia, da economia ecológica, da sociologia ambiental, entre outros. Essa interdisciplinaridade, embora enriquecedora, impõe desafios concretos à compreensão técnica e à aplicação precisa dos institutos jurídicos por parte dos operadores do Direito - magistrados, advogados, promotores, gestores públicos e demais intérpretes.

2. Nesse contexto, os conceitos normativos assumem papel estruturante: não apenas delimitam o campo de incidência das normas, como também oferecem segurança jurídica, coerência hermenêutica e funcionalidade sistêmica à atuação estatal e à tutela jurisdicional do meio ambiente.

3. É por essa razão que a lei 6.938/1981, que institui a Política Nacional do Meio Ambiente, já no seu art. 3º, traz um conjunto de definições legais que funcionam como um verdadeiro glossário jurídico-ambiental, fundante para a compreensão de todo o regime jurídico ambiental brasileiro. Ali se encontram os conceitos de meio ambiente, degradação da qualidade ambiental, poluição, poluidor e recursos ambientais - e é precisamente sobre alguns desses conceitos, notadamente os de poluidor e transgressor, que nos deteremos nesta breve exposição, a fim de analisar suas repercussões nas esferas civil, administrativa e penal da responsabilidade ambiental.

2. Fundamento constitucional da responsabilidade ambiental

4. A raiz teórica da responsabilidade ambiental reside no princípio do poluidor-pagador, também qualificado, em contexto mais abrangente, como poluidor-usuário pagador. Esse princípio, consagrado em documentos internacionais como as Declarações de Estocolmo de 1972 e do Rio de Janeiro (1992) foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro no art. 225 da CF/88 e estrutura-se em quatro grandes eixos normativos complementares:

A. Precaução, que visa à contenção dos riscos potenciais à integridade dos ecossistemas;

B. Prevenção, que impõe a atuação estatal e privada para evitar a concretização de danos ambientais;

C. Responsabilidade penal, administrativa e civil como mecanismos de reprovação ao infrator/transgressor e de reparação ao causador do dano ambiental.

D. Imposição ao usuário da contribuição pelo uso econômico dos recursos ambientais.

5. Esse sistema de responsabilização encontra fundamento direto na Constituição Federal, que, em seu art. 225, §3º, dispõe com clareza:

"As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. "

6. Neste dispositivo está o que se convencionou de chamar "tríplice responsabilidade ambiental". A responsabilização penal e administrativa, de natureza sancionatória, não exclui a responsabilização civil, de caráter reparatório - e todas podem ser aplicadas de forma cumulativa e independente.

3. Diferenças estruturais entre as responsabilidades civil, administrativa e penal ambientais: O papel dos conceitos jurídicos

7. Para compreender adequadamente as diferenças entre as esferas civil, administrativa e penal da responsabilidade ambiental, não basta remeter cada qual à sua fonte normativa - a responsabilidade civil no art. 14, §1º, da lei 6.938/1981, a penal nos tipos incriminadores da lei 9.605/98, e a administrativa no rol de infrações previsto no decreto 6.514/08.

8. A chave interpretativa está no núcleo estrutural de cada regime de responsabilização.

9. Enquanto as responsabilidades penal e administrativa possuem como elemento central a prática de um ilícito ambiental, ou seja, a violação de uma norma jurídica de conduta ambientalmente adequada, a responsabilidade civil ambiental possui como núcleo necessário e constitutivo a existência de um dano ao meio ambiente.

10. Em outras palavras, as primeiras duas são voltadas à reprovação do comportamento ilícito - típico e antijurídico -, enquanto a responsabilidade civil é voltada à reparação do dano ecológico efetivamente causado, ainda que sem ilicitude formal ou culpa, nos moldes do regime objetivo consagrado no art. 14, §1º, da lei 6.938/1981:

"Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade."

11. Esse ponto evidencia a importância decisiva dos conceitos fundamentais do Direito Ambiental, em especial dos termos poluidor, infrator e infração ambiental, cuja precisão é essencial para delimitar a responsabilização adequada.

12. A lei da Política Nacional do Meio Ambiente define o poluidor (art. 3º, IV) como:

"a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental."

13. Esse conceito estabelece que o "poluidor" é responsável civilmente por atividade que, direta ou indiretamente, causa dano ao meio ambiente.

14. Por outro lado, no contexto da lei de Crimes Ambientais (lei 9.605/1998) e do decreto 6.514/08, a responsabilização exige a configuração de uma infração - definida no art. 70 do Decreto como:

"a ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente."

15. Infrator é aquele que fratura, quebra, transgride uma regra jurídica de proteção ambiental. Sua responsabilidade - seja administrativa, seja penal - está centrada na violação de um dever legal de conduta, e não, necessariamente, na produção de um dano ambiental concreto.

16. Em outras palavras, o ilícito, e não o dano, constitui o pressuposto essencial da responsabilização sancionatória. Esse ilícito pode ser:

  • Um ilícito formal, ou seja, uma conduta proibida pela norma independentemente de seus efeitos materiais - como, por exemplo, penetrar em uma unidade de conservação portando uma motosserra sem autorização do órgão competente ou ainda expor a população ao risco ambiental
  • Um ilícito material ou danoso, como ocorre na supressão não autorizada de vegetação em APP - Área de Preservação Permanente, em que o ato ilícito coincide com a produção de um dano ambiental concreto.

4. Conclusões terminológicas da distinção entre poluidor e infrator

17. Distinguir poluidor de infrator/transgressor não constitui mero preciosismo terminológico, mas sim uma exigência dogmática essencial para a adequada aplicação dos distintos regimes de responsabilização ambiental - civil, administrativa e penal - e para assegurar os princípios da segurança jurídica, da proporcionalidade e da função própria de cada esfera sancionatória.

18. Enquanto o poluidor é definido legalmente como aquele que, direta ou indiretamente, causa degradação ambiental (art. 3º, IV, da lei 6.938/1981), o infrator é aquele que viola uma norma jurídica de conduta ambiental, seja ela de natureza administrativa ou penal.

19. Dessa distinção conceitual, decorrem algumas hipóteses juridicamente relevantes:

1. Há o "poluidor indireto", mas não há "infrator indireto": a responsabilidade civil admite a imputação mesmo sem participação direta na conduta causadora do dano, ao passo que a sanção administrativa ou penal exige a autoria ou coautoria da infração.1

2. Nem todo infrator é poluidor: muitas infrações e crimes ambientais não preveem em seu núcleo a ocorrência do dano ao meio ambiente, pois visam prevenir riscos (ex.: fabricar balões, transporte irregular de resíduos, etc.).

3. Nem todo poluidor é infrator: há hipóteses em que o dano ambiental decorre de uma atividade lícita, autorizada, mas ainda assim geradora de obrigação de reparação civil, independentemente de culpa ou ilicitude formal.

4. Há situações em que o infrator também é poluidor: quando a conduta infracional resulta em dano ambiental, há cumulação de ilícito e lesão, gerando responsabilidade civil, administrativa e/ou penal simultaneamente.

Essas combinações evidenciam que a correta qualificação do sujeito passivo da responsabilização depende de uma análise técnico-jurídica atenta aos elementos estruturantes de cada tipo de responsabilidade - e que a eficácia da tutela ambiental passa necessariamente pelo domínio conceitual rigoroso do operador do direito.

_______

1 Os julgados do STJ que colocamos em sequência correspondem à evolução da distinção, hoje sedimentada, sedimentada pelo STJ, sobre o tema da responsabilidade administrativa e civil ambiental.  "12. Em resumo: a aplicação e a execução das penas limitam-se aos transgressores; a reparação ambiental, de cunho civil, a seu turno, pode abranger todos os poluidores, a quem a própria legislação define como "a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental" (art. 3º, inc. V, do mesmo diploma normativo). 13. Note-se que nem seria necessária toda a construção doutrinária e jurisprudencial no sentido de que a obrigação civil de reparar o dano ambiental é do tipo propter rem, porque, na verdade, a própria lei já define como poluidor todo aquele que seja responsável pela degradação ambiental - e aquele que, adquirindo a propriedade, não reverte o dano ambiental, ainda que não causado por ele, já seria um responsável indireto por degradação ambiental (poluidor, pois). 14. Mas fato é que o uso do vocábulo "transgressores" no caput do art. 14, comparado à utilização da palavra "poluidor" no § 1º do mesmo dispositivo, deixa a entender aquilo que já se podia inferir da vigência do princípio da intranscendência das penas: a responsabilidade civil por dano ambiental é subjetivamente mais abrangente do que as responsabilidades administrativa e penal, não admitindo estas últimas que terceiros respondam a título objetivo por ofensa ambientais praticadas por outrem. 15. Recurso especial provido". (REsp n. 1.251.697/PR, relator ministro Mauro Campbell Marques, 2ª turma, julgado em 12/4/2012, DJe de 17/4/2012.); 

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA SUBMETIDOS AO ENUNCIADO ADMINISTRATIVO 2/STJ. EMBARGOS À EXECUÇÃO. AUTO DE INFRAÇÃO LAVRADO EM RAZÃO DE DANO AMBIENTAL. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. 1. Na origem, foram opostos embargos à execução objetivando a anulação de auto de infração lavrado pelo Município de Guapimirim - ora embargado -, por danos ambientais decorrentes do derramamento de óleo diesel pertencente à ora embargante, após descarrilamento de composição férrea da Ferrovia Centro Atlântica (FCA). 2. A sentença de procedência dos embargos à execução foi reformada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro pelo fundamento de que "o risco da atividade desempenhada pela apelada ao causar danos ao meio ambiente consubstancia o nexo causal de sua responsabilidade, não havendo, por conseguinte, que se falar em ilegitimidade da embargante para figurar no polo passivo do auto de infração que lhe fora imposto", entendimento esse mantido no acórdão ora embargado sob o fundamento de que "[a] responsabilidade administrativa ambiental é objetiva". 3. Ocorre que, conforme assentado pela Segunda Turma no julgamento do REsp 1.251.697/PR, de minha relatoria, DJe de 17/4/2012), "a aplicação de penalidades administrativas não obedece à lógica da responsabilidade objetiva da esfera cível (para reparação dos danos causados), mas deve obedecer à sistemática da teoria da culpabilidade, ou seja, a conduta deve ser cometida pelo alegado transgressor, com demonstração de seu elemento subjetivo, e com demonstração do nexo causal entre a conduta e o dano". 4. No mesmo sentido decidiu a Primeira Turma em caso análogo envolvendo as mesmas partes: "A responsabilidade civil ambiental é objetiva; porém, tratando-se de responsabilidade administrativa ambiental, o terceiro, proprietário da carga, por não ser o efetivo causador do dano ambiental, responde subjetivamente pela degradação ambiental causada pelo transportador" (AgRg no AREsp 62.584/RJ, Rel. p/ Acórdão Ministra Regina Helena Costa, DJe de 7/10/2015). 5. Embargos de divergência providos. (EREsp n. 1.318.051/RJ, relator ministro Mauro Campbell Marques, 1ª seção, julgado em 8/5/2019, DJe de 12/6/2019.)

Marcelo Abelha Rodrigues

Marcelo Abelha Rodrigues

Mestre e doutor em Direito pela PUC/SP. Pós-doutorado em Direito Processual pela Universidade de Lisboa. Professor e sócio do escritório Cheim Jorge & Abelha Rodrigues Advogados Associados.

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