Pode o juiz condenar quando o Ministério Público pede a absolvição?
Análise crítica do art. 385 do CPP à luz do pacote anticrime, sistema acusatório e processo penal constitucional.
sexta-feira, 27 de junho de 2025
Atualizado às 13:50
Com a promulgação do pacote anticrime - lei 13.964/19 - e o fortalecimento do sistema acusatório no processo penal brasileiro, surgiram debates importantes sobre os limites da atuação do juiz, sobretudo em relação ao disposto no art. 385 do CPP. O dispositivo prevê que o juiz pode proferir sentença condenatória mesmo que o Ministério Público tenha pedido a absolvição do réu.
De acordo com o ordenamento jurídico, o art. 3º-A do CPP, introduzido pelo pacote anticrime, reforça a separação entre as funções de acusar, defender e julgar, vedando a iniciativa do juiz na fase de investigação e sua substituição em relação à atuação probatória do órgão de acusação. O objetivo é assegurar a imparcialidade do julgador, princípio central do devido processo legal.
Nesse contexto, questiona-se: ainda pode o juiz condenar se o Ministério Público pedir a absolvição?
Segundo entendimento predominante na doutrina e na jurisprudência, a resposta é afirmativa, inclusive o referido artigo teve o reconhecimento de sua constitucionalidade pelo STF no julgamento das ADIns 6.298, 6.300 e 6.305. A possibilidade de condenação permanece válida, pois o pedido de absolvição não equivale à renúncia à ação penal, mas reflete apenas a interpretação do MP sobre as provas dos autos. O juiz então, ao condenar, não estaria assumindo a função de acusador, mas apenas exercendo seu papel de julgador com base no conjunto probatório apresentado.
Por outro lado, parte da doutrina vem apontando que a manutenção da possibilidade de condenação em casos de pedido de absolvição do Ministério Público pode tensionar os limites do sistema acusatório. Ao proferir sentença condenatória nesse cenário, o juiz poderia acabar por atuar como substituto do órgão acusador, o que fragilizaria a própria lógica de separação entre acusação e julgamento, pilares do modelo acusatório reforçado pelo pacote anticrime. Além disso, haveria uma ofensa ao princípio da inércia da jurisdição, na medida em que a iniciativa condenatória poderia ser compreendida como manifestação de uma atuação proativa indevida por parte do julgador.
Essa discussão ganha maior relevo quando se considera o contexto do Tribunal do Júri, em que a soberania das decisões dos jurados deve ser preservada. Há quem sustente que, em hipóteses em que o próprio Ministério Público, titular da ação penal pública, reconhece a insuficiência de provas para a condenação e postula a absolvição, a prolação de sentença condenatória pelo juiz togado pode gerar um desequilíbrio no processo e ensejar questionamentos quanto à legitimidade da decisão. Assim, embora o art. 385 do CPP continue formalmente válido, tais críticas reforçam a necessidade de uma interpretação restritiva e compatível com os valores do sistema acusatório contemporâneo e do processo penal democrático.
Por isso, é necessário cautela: o julgador não pode suprir a inércia acusatória, produzir provas de ofício de forma desarrazoada ou agir como verdadeiro acusador, sob pena de violar o sistema acusatório e a garantia da imparcialidade. A condenação, nesses casos, só é legítima quando fundada exclusivamente nas provas regularmente produzidas nos autos.
Portanto, evidencia-se que a atuação do juiz ao proferir condenação, mesmo diante do pedido de absolvição do MP, não é neutra e exige rigorosa observância das garantias constitucionais do processo penal. O fortalecimento do sistema acusatório no Brasil não afasta, por si só, a possibilidade de condenação nesses casos, mas impõe limites claros à atuação do magistrado.



