Contagem recíproca e refiliação ao RGPS para averbação no RPPS
Análise jurídica demonstra que segurados não precisam se refiliar ao RGPS para averbar tempo do RPPS.
segunda-feira, 7 de julho de 2025
Atualizado às 08:38
1. Considerações iniciais
O instituto da contagem recíproca de tempo de contribuição entre diferentes regimes previdenciários representa uma das mais importantes conquistas do direito social brasileiro, constituindo mecanismo essencial de proteção aos trabalhadores que exercem atividades em diferentes esferas da administração pública e da iniciativa privada. A previsão constitucional deste direito, insculpida no art. 201, § 9º, da Carta Magna de 1988, estabelece garantia fundamental que visa assegurar a continuidade da proteção previdenciária independentemente das transições laborais do segurado.
No entanto, a aplicação prática deste instituto tem gerado controvérsias interpretativas significativas, particularmente no que concerne aos requisitos necessários para sua efetivação. Uma das questões mais debatidas refere-se à exigência ou não de manutenção de vínculo ativo ao RGPS - Regime Geral de Previdência Social no momento do requerimento de benefício que utilize tempo de contribuição oriundo do RPPS - Regime Próprio de Previdência Social.
A problemática surge da interpretação do art. 99 da lei 8.213/1991, que dispõe sobre a concessão de benefícios resultantes de contagem recíproca pelo "sistema a que o interessado estiver vinculado ao requerê-lo"1. Tradicionalmente, parcela da jurisprudência, incluindo entendimentos anteriores da TNU - Turma Nacional de Uniformização, interpretava este dispositivo como exigência de vínculo formal ativo ao regime no momento da solicitação do benefício.
Contudo, esta interpretação tem sido objeto de crescente questionamento doutrinário e jurisprudencial, especialmente após a evolução legislativa promovida pela lei 10.666/2003, que alterou substancialmente a sistemática previdenciária ao dispensar a manutenção da qualidade de segurado para aposentadorias programadas2. Esta mudança paradigmática na legislação previdenciária impõe nova reflexão sobre os requisitos aplicáveis à contagem recíproca.
O presente estudo propõe-se a examinar esta questão sob perspectiva jurídica, analisando a evolução jurisprudencial recente, especialmente os precedentes do Tribunal Regional Federal da 1ª região e da própria TNU, que têm reconhecido a desnecessidade de vínculo formal ao RGPS para fins de averbação de tempo contributivo do RPPS3. A investigação fundamenta-se na aplicação de princípios hermenêuticos consolidados, particularmente o cânone interpretativo segundo o qual não cabe ao intérprete criar restrições onde a lei não as estabelece.
A relevância da questão transcende o aspecto meramente teórico, possuindo implicações práticas diretas para milhares de trabalhadores brasileiros que, ao longo de suas trajetórias profissionais, contribuíram para diferentes regimes previdenciários. A adoção de interpretação excessivamente restritiva pode resultar em prejuízos significativos aos direitos destes segurados, contrariando a finalidade social da previdência e os princípios constitucionais que informam a seguridade social.
Metodologicamente, o trabalho adota abordagem sistemática, examinando a legislação aplicável em conjunto com a evolução jurisprudencial e os princípios doutrinários pertinentes. A análise privilegia a interpretação teleológica das normas previdenciárias, considerando sua finalidade social e os objetivos constitucionais da seguridade social. Especial atenção é dedicada à refutação dos argumentos tradicionalmente invocados em sentido contrário, demonstrando-se que tais posicionamentos carecem de fundamento legal sólido e contrariam a evolução do sistema previdenciário brasileiro.
O objetivo central consiste em demonstrar que a interpretação que dispensa a exigência de vínculo formal ao RGPS para averbação de tempo do RPPS não apenas é juridicamente correta, mas também representa a aplicação adequada dos princípios hermenêuticos e constitucionais aplicáveis à matéria. Esta conclusão baseia-se na análise sistemática da legislação, na evolução jurisprudencial recente e na aplicação dos cânones interpretativos consolidados no Direito brasileiro.
2. Desenvolvimento histórico-constitucional do instituto
2.1. Antecedentes normativos e fundamentos constitucionais
A contagem recíproca de tempo de contribuição possui raízes históricas profundas no ordenamento jurídico brasileiro, remontando à lei 6.226/1975, que estabeleceu pela primeira vez a possibilidade de aproveitamento recíproco de períodos contributivos entre diferentes regimes previdenciários4. Este marco legislativo representou reconhecimento pioneiro da necessidade de proteção aos trabalhadores que transitam entre diferentes esferas de atividade laboral.
A constitucionalização deste direito, operada pela Carta Magna de 1988, elevou a contagem recíproca ao patamar de garantia fundamental, conferindo-lhe proteção especial contra restrições infraconstitucionais. O art. 201, § 9º, da Constituição Federal estabelece que "para efeito de aposentadoria, é assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição na administração pública e na atividade privada, rural e urbana"5, consagrando direito de aplicação imediata e eficácia plena.
A natureza fundamental deste direito encontra respaldo em diversos princípios constitucionais. Conforme observa a doutrina especializada, a contagem recíproca constitui desdobramento do direito de propriedade (art. 5º, XXII, CF), devendo observar sua função social (art. 5º, XXIII, CF), e relaciona-se diretamente com o direito à segurança social (arts. 5º e 6º, CF)6. Trata-se, portanto, de direito fundamental de natureza social, dotado de auto-aplicabilidade e eficácia imediata.
2.2. Evolução do texto constitucional
A análise da evolução constitucional do instituto revela movimento consistente de ampliação e aperfeiçoamento do direito à contagem recíproca. A comparação entre as redações introduzidas pelas EC 20/1998 e 103/19 demonstra esta tendência expansiva.
A EC 20/1998 estabeleceu no art. 40, § 9º, que "o tempo de contribuição federal, estadual ou municipal será contado para efeito de aposentadoria"7, enquanto o art. 201, § 9º, assegurava "a contagem recíproca do tempo de contribuição na administração pública e na atividade privada, rural e urbana"8.
Posteriormente, a EC 103/19 aperfeiçoou esta redação, estabelecendo no art. 40, § 9º, que "o tempo de contribuição federal, estadual, distrital ou municipal será contado para fins de aposentadoria, observado o disposto nos § § 9º e 9º-A do art. 201"9. Simultaneamente, o art. 201, § 9º, passou a dispor que "para fins de aposentadoria, será assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição entre o Regime Geral de Previdência Social e os regimes próprios de previdência social, e destes entre si"10.
Esta evolução textual possui significado jurídico relevante. A substituição da expressão "para efeito de aposentadoria" por "para fins de aposentadoria" sugere amplitude interpretativa maior, indicando que o constituinte derivado pretendeu conferir alcance mais amplo ao direito. Ademais, a explicitação da bilateralidade da contagem recíproca ("entre o Regime Geral de Previdência Social e os regimes próprios de previdência social, e destes entre si") elimina qualquer dúvida sobre a possibilidade de aproveitamento de tempo em ambas as direções.
2.3. Jurisprudência Constitucional: O Tema 522 do STF
O STF, no julgamento do Tema 522 de repercussão geral, fixou tese de fundamental importância para a compreensão do instituto: "A imposição de restrições, por legislação local, à contagem recíproca do tempo de contribuição na administração pública e na atividade privada para fins de concessão de aposentadoria viola o art. 202, § 2º, da Constituição Federal, com redação anterior à EC 20/1998"11.
Esta decisão estabelece princípio hermenêutico fundamental: qualquer restrição não prevista na legislação federal à contagem recíproca constitui violação ao texto constitucional. O precedente do STF reforça o entendimento de que o direito à contagem recíproca, por possuir status constitucional, não pode ser limitado por interpretações restritivas que não encontrem amparo expresso na lei.
2.4. Implicações da evolução constitucional
A trajetória evolutiva do instituto da contagem recíproca no texto constitucional demonstra inequivocamente que a tendência do ordenamento jurídico brasileiro é ampliar, e não restringir, este direito fundamental. Esta constatação possui implicações hermenêuticas diretas para a interpretação dos dispositivos legais que regulamentam o instituto.
Quando o constituinte derivado promove alterações no sentido de ampliar direito fundamental, estas modificações devem ser interpretadas como diretrizes para aplicação da legislação infraconstitucional. Assim, qualquer interpretação que pretenda restringir o alcance da contagem recíproca deve ser examinada com extrema cautela, especialmente quando não encontra respaldo expresso no texto legal.
A evolução constitucional também confirma a natureza instrumental da contagem recíproca, destinada a facilitar o acesso aos benefícios previdenciários. Nesta perspectiva, a imposição de obstáculos não previstos expressamente na lei contraria a finalidade do instituto e a evolução constitucional observada.
- Clique aqui e confira o artigo na íntegra.


