MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Não há benefício de ordem em favor do sujeito atingido pela desconsideração da personalidade jurídica

Não há benefício de ordem em favor do sujeito atingido pela desconsideração da personalidade jurídica

O art. 795 do CPC consagra a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, mas, ao tratar da desconsideração, afasta o benefício de ordem ao sócio responsável.

terça-feira, 8 de julho de 2025

Atualizado em 7 de julho de 2025 16:38

O art. 795 do CPC de 2015 encontra-se inserido no Capítulo V, do Título I do Livro II do CPC, capítulo esse inteiramente dedicado à responsabilidade patrimonial. Trata-se de instituto de natureza bifronte, cuja gênese repousa no direito material - nas cláusulas gerais do art. 391 do CC, que trata da garantia patrimonial das obrigações convencionais, e do art. 942, que se refere à garantia patrimonial das obrigações oriundas de ato ilícito -, mas que se concretiza no plano processual por meio da expropriação judicial dos bens do responsável, com o objetivo de satisfazer o crédito e recompor o prejuízo decorrente do inadimplemento da prestação devida.

Diversos dispositivos desse capítulo (que se concentra nos arts. 789 ao 795) cuidam de reafirmar, de modo quase didático, que é o patrimônio do responsável - normalmente o próprio devedor principal - que responde pela dívida inadimplida. Entre esses dispositivos, destaca-se o caput do art. 795, que, numa sequência lógica do conteúdo do art. 794, enuncia uma obviedade jurídica, decorrente da própria lógica do sistema:

 "Art. 795. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, senão nos casos previstos em lei."

O caput do art. 795 consagra, assim, o princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, estabelecido pelo direito material: os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, salvo nas hipóteses legalmente previstas, como ocorre, por exemplo, na responsabilidade ilimitada do sócio comanditado na sociedade em comandita simples, do empresário individual ou em outras situações excepcionais expressamente disciplinadas pela legislação.

A separação entre a personalidade jurídica da sociedade e a de seus sócios integrantes constitui um dos pilares estruturantes da teoria da personalidade jurídica no direito brasileiro, funcionando como garantia de segurança nas relações jurídicas e como instrumento de organização da atividade econômica.

Se, por um lado, o caput do art. 795 do CPC consagra de forma clara e inequívoca a regra da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas - estabelecendo que os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, salvo nos casos previstos em lei -, por outro lado, os parágrafos do mesmo dispositivo trazem certa confusão sistemática ao tratar, sem a devida distinção conceitual, de situações jurídicas profundamente distintas.

De fato, partindo da premissa de que a regra geral é a da autonomia e separação patrimonial entre a pessoa jurídica e os sócios que a integram, há casos em que a própria lei reconhece a comunicabilidade patrimonial.

Esse reconhecimento legal pode ocorrer: (i) diretamente, quando o tipo societário escolhido já implica a inexistência dessa separação, como no caso do sócio comanditado na sociedade em comandita simples ou do empresário individual; ou (ii) indiretamente, quando a lei apenas autoriza que, por decisão judicial, se quebre a autonomia/separação patrimonial mediante a desconsideração da personalidade jurídica, desde que verificada a prática de ato ilícito que tenha violado a garantia patrimonial do credor.1

Ocorre que o art. 795, ao dispor nos parágrafos sobre essas duas distintas situações, não faz a devida separação entre hipóteses tão díspares.

Os §§ 1º a 3º tratam das situações em que a própria lei estabelece a responsabilidade patrimonial conjunta da sociedade e dos sócios em relação as dívidas daquela, mas assegura a estes o benefício de ordem: ambos (sociedade e sócio) são, na prática, garantidores da dívida, mas o sócio figura como garantidor de segunda ordem (responsabilidade patrimonial subsidiária), com o direito de exigir a prévia excussão do patrimônio social, ou seja, o seu patrimônio pessoal do sócio será atingido depois do patrimônio da pessoa jurídica.2

Já o § 4º do art. 795 trata de hipótese inteiramente diversa ao dispor que: "para a desconsideração da personalidade jurídica é obrigatória a observância do incidente previsto neste Código."

O referido parágrafo cuida de dizer que nas hipóteses em que for cabível a utilização da desconsideração da personalidade jurídica para afastar a separação patrimonial entre sociedade e sócios, isso deve se dar por meio do procedimento descrito no art. 133 e ss. do CPC.

Este dispositivo (§4º), como se vê, é um peixe fora d'água em relação aos parágrafos que o precedem. Nos parágrafos 1º à 3º o que se tem é a regra da responsabilidade patrimonial legal, principal e subsidiária, envolvendo a sociedade e os sócios. Já no parágrafo quarto não há, previamente pela lei, hipótese de responsabilidade conjunta dos sócios para com as dívidas da sociedade. Trata-se, de responsabilidade patrimonial reconhecida judicialmente, superveniente, constituída no âmbito de uma relação jurídica processual que envolve o credor, o devedor (pessoa jurídica) e o terceiro (sócio) que será alcançado pela desconsideração, passando este a responder por dívida que, até então, não lhe era imputável.

Nessa hipótese, o sócio somente passa a responder pela dívida da sociedade a partir do momento em que a desconsideração é decretada por decisão judicial. Antes disso, não há qualquer responsabilidade patrimonial a seu encargo; após o reconhecimento judicial, sua responsabilidade nasce de forma direta e solidária, em igualdade de condições com a pessoa jurídica. Isso porque a decisão judicial reconhece a ocorrência de um ilícito que violou o patrimônio da sociedade que servia de garantia da obrigação inadimplida, comprometendo a capacidade da sociedade de satisfazer a obrigação.

Portanto, a responsabilidade patrimonial do sócio atingido pela desconsideração não é nem originária (nasceu na lei) e nem subsidiária (segunda ordem). Ao revés, decorre da constatação de que o manto da autonomia patrimonial foi ilicitamente utilizado, razão pela qual a responsabilização se dá de modo solidário, sem que se possa sequer cogitar do benefício de ordem, que é direito típico das hipóteses de responsabilidade diretamente fixada pela lei (originária) e subsidiária (por vontade da lei) previstas nos §§ 1º a 3º do dispositivo.

Por isso, não há sentido jurídico nem lógico em atribuir ao sócio atingido pela desconsideração qualquer benefício de ordem. Primeiro, porque a razão da instauração da desconsideração judicial da personalidade jurídica (art. 133 e ss.) é justamente a insuficiência do patrimônio garantidor da pessoa jurídica em relação a dívida por ela assumida e inadimplida, em razão de ilícito que se imputa ao sócio. Segundo, porque admitir o benefício de ordem ao atingido pela desconsideração equivaleria a conferir uma espécie de prêmio ilegítimo ao próprio sujeito responsável pela violação do direito que motivou a quebra do manto da personalidade jurídica, o que seria um contrassenso, para dizer o menos.

Nesses casos, a responsabilidade patrimonial do sócio decretada pela desconsideração da personalidade jurídica é solidária, sem qualquer gradação ou privilégio de ordem, ao contrário do que ocorre nas hipóteses tratadas nos §§ 1º a 3º. E, mais que isso, possivelmente é o patrimônio do desconsiderado que normalmente deverá suportar a execução movida contra a sociedade pois não se instauraria a desconsideração da personalidade jurídica se houvesse patrimônio suficiente para satisfazer o crédito judicialmente perseguido pelo credor da sociedade.

Esse entendimento é coerente não apenas com o texto do art. 795, § 4º, mas também com os princípios que informam o sistema de responsabilização patrimonial no direito brasileiro. Permitir a aplicação do benefício de ordem em tais casos é não apenas uma demonstração do desconhecimento da teoria geral da responsabilidade patrimonial3, bem como equivaleria a frustrar a efetividade da tutela jurisdicional e a esvaziar o próprio alcance do instituto da desconsideração, cuja função é justamente evitar o uso abusivo da personalidade jurídica em prejuízo de credores e da ordem jurídica.

_______

1 Observe que nesta última hipótese há, originariamente, a regra da separação patrimonial e apenas em decorrência do reconhecimento do ilícito cometido que se desconsidera a referida separação para atingir o patrimônio dos sócios por dívidas da pessoa jurídica.

2 Neste particular, há similitude entre o conteúdo do artigo 794, quando ele trata do benefício de ordem do fiador, responsável patrimonial subsidiário, com os referidos parágrafos 1º a 3º do art. 795.

3 A respeito ver RODRIGUES, Marcelo Abelha. Responsabilidade patrimonial pelo inadimplemento das obrigações. 2ª edição, São Paulo: Foco. 2024.

Marcelo Abelha Rodrigues

Marcelo Abelha Rodrigues

Mestre e doutor em Direito pela PUC/SP. Pós-doutorado em Direito Processual pela Universidade de Lisboa. Professor e sócio do escritório Cheim Jorge & Abelha Rodrigues Advogados Associados.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca