A responsabilidade do ente público nas terceirizações - Tema 1.118, STF
A responsabilidade do ente público por débitos trabalhistas vem sendo construída pela jurisprudência. Recentemente, o STF julgou o RE 1.298.647, delimitando o ônus probatório acerca da fiscalização.
quinta-feira, 10 de julho de 2025
Atualizado em 11 de julho de 2025 08:26
A temática envolvendo a responsabilidade da Administração Pública por débitos trabalhistas nas terceirizações de serviços possui contornos legislativos e, principalmente, jurisprudenciais.
Na famigerada ADC 16, o STF entendeu pela constitucionalidade do art. 71, § 1º, da antiga lei 8.666/93 (atual art. 121, § 1º, da lei 14133/21), que possuía a seguinte redação:
Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.
§ 1º A inadimplência do contratado, com referência aos encargos estabelecidos neste artigo, não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.
Porém, no julgamento em questão, o Pretório Excelso estabeleceu a seguinte ressalva: se a Administração falhar na fiscalização do contrato, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas pela empresa contratada, o ente público poderá ser responsabilizado pelos encargos trabalhistas que não foram pagos.
Diante do decidido na aludida ADC, o TST modificou o seu enunciado 331, acrescentando um item V ao mesmo, cujo teor se transcreve a seguir:
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE.
V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
Essa inovação trazida pelo TST no item V de sua súmula vem fundamentando a condenação do Poder Público nas reclamatórias trabalhistas ajuizadas por trabalhadores terceirizados. Atualmente, há também o art. 121, § 2º, da nova lei de licitações1, que chancelou o teor do enunciado sumular.
Após a alteração da súmula, novamente, a discussão chegou ao STF por meio do Tema 246 de sua repercussão geral (RE 760.931 - 26/4/17), tendo sido fixada a seguinte tese:
"O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da lei 8666/93."
Opostos embargos de declaração contra o julgado, o STF, embora tenha rejeitado os aclaratórios, afirmou que a responsabilidade subsidiária do Poder Público não é automática, dependendo da comprovação de culpa in eligendo ou da culpa in vigilando, "o que decorre da inarredável obrigação da administração pública de fiscalizar os contratos administrativos firmados sob os efeitos da estrita legalidade."
Em que pese os julgamentos acima tenham consolidado a questão no plano material - da natureza da responsabilidade da Administração, ainda ficara pendente a definição do ônus da prova quanto à demonstração de fiscalização (aspecto processual).
Com base nos princípios da aptidão para a prova e da distribuição do ônus probatório, o TST, por meio da sua SDI-12, vinha entendendo que caberia ao ente público tomador dos serviços o ônus de comprovar que houve a fiscalização do contrato de prestação de serviços.
Todavia, em decisão de 13/2/25, no RE 1.298.647, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.118), o STF firmou, por maioria, a seguinte tese:
1. Não há responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviços contratada, se amparada exclusivamente na premissa da inversão do ônus da prova, remanescendo imprescindível a comprovação, pela parte autora, da efetiva existência de comportamento negligente ou nexo de causalidade entre o dano por ela invocado e a conduta comissiva ou omissiva do poder público. 2. Haverá comportamento negligente quando a Administração Pública permanecer inerte após o recebimento de notificação formal de que a empresa contratada está descumprindo suas obrigações trabalhistas, enviada pelo trabalhador, sindicato, Ministério do Trabalho, Ministério Público, Defensoria Pública ou outro meio idôneo. 3. Constitui responsabilidade da Administração Pública garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores, quando o trabalho for realizado em suas dependências ou local previamente convencionado em contrato, nos termos do art. 5º-A, § 3º, da Lei nº 6.019/1974. 4. Nos contratos de terceirização, a Administração Pública deverá: (i) exigir da contratada a comprovação de capital social integralizado compatível com o número de empregados, na forma do art. 4º-B da Lei nº 6.019/1974; e (ii) adotar medidas para assegurar o cumprimento das obrigações trabalhistas pela contratada, na forma do art. 121, § 3º, da Lei nº 14.133/2021, tais como condicionar o pagamento à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas do mês anterior"
Em linhas gerais, no mérito, o Pretório Excelso decidiu que compete ao trabalhador comprovar eventual comportamento negligente da Administração na fiscalização das obrigações contratuais, de acordo com a regra geral de distribuição do ônus probatório (art. 818, I, da CLT). Um dos fundamentos do acórdão para atribuir ao empregado o encargo da produção da prova fora a presunção de validade, legalidade e legitimidade de que se revestem os atos administrativos.
O julgamento em questão vem sendo alvo de críticas por aqueles que militam na área trabalhista. A primeira delas diz respeito à competência do STF para enfrentar a matéria, visto que trataria de regra de Direito Processual (distribuição do ônus probatório), não tendo natureza tipicamente constitucional, a atrair a competência da Corte Maior. Todavia, enfrentada a discussão pela Corte, o STF entendeu pela repercussão geral da temática. A segunda crítica se estruturou no sentido de que o STF teria exigido a produção de uma prova de fato negativa por parte do trabalhador, que não teria condições de produzi-la.
Todavia, entendo que nada impede que o juiz, como dirigente da instrução processual, estabeleça o ônus da prova de modo diverso3, atribuindo-o à Administração, desde que o faça de maneira fundamentada. A fundamentação, que já era exigida pelo comando legal, agora se mostra ainda mais necessária em caso de inversão, visto que o magistrado passou a estar blindado pelos termos fixados no Tema 1.118, da Corte Maior, de eficácia vinculante.
O item 2 da tese presume o comportamento negligente do Poder Público "quando a Administração Pública permanecer inerte após o recebimento de notificação formal de que a empresa contratada está descumprindo suas obrigações trabalhistas, enviada pelo trabalhador, sindicato, Ministério do Trabalho, Ministério Público, Defensoria Pública ou outro meio idôneo."
Por notificação formal parece que, neste caso, a Corte Suprema não quis exigir uma formalidade excessiva. Basta que seja dada ciência inequívoca ao ente público do descumprimento das obrigações trabalhistas por parte da contratada, seguida de uma omissão administrativa, para configurar a inércia da Administração. O próprio ministro Nunes Marques, relator do acórdão, ressaltou que a notificação formal deve trazer apenas um esclarecimento mínimo da questão. "É esclarecer minimamente do que se trata, a omissão", nas palavras do ministro.
Isto é, quando o ente público, embora tome conhecimento inequívoco de que obrigações trabalhistas foram descumpridas, não toma nenhuma medida para regularização.
Se encaminhada diretamente pelo trabalhador, a notificação poderá ser formalizada por meio de correio eletrônico (e-mail). Em caso de envio por órgão público oficial, o encaminhamento deverá ser feito, preferencialmente, através de ofício, meio de comunicação oficial entre órgãos públicos.
O item 3 da tese, de sugestão do ministro Flávio Dino, teve por objetivo deixar expresso que, em caso de dano ao trabalhador em razão de descumprimento das obrigações relativas a condições de segurança, higiene e salubridade do meio laboral, a responsabilidade é direta e primária do Poder Público (tomador de serviços), e não meramente subsidiária, por força do disposto no art. 5º-A, § 3º, da lei 6019/74, com redação dada pela reforma trabalhista.
Por fim, o item 4 traz garantias que deverão ser exigidas pelo Poder Público nos contratos de terceirização, com o escopo de evitar eventuais inadimplementos trabalhistas. São elas: i) a comprovação de capital social integralizado compatível com o número de empregados, conforme o art. 4º-B da lei 6.019/1974; ii) a adoção das medidas trazidas pelo art. 121, § 3º, da lei 14.133/21, tais como condicionar o pagamento à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas do mês anterior, exigência de caução, criação de conta vinculada, entre outras.
Com relação às medidas do art. 121, § 3º, da lei 14.133/21, a lei de licitações traz uma mera faculdade ao Poder Público, estipulando que a Administração poderá exigir os mecanismos arrolados nos incisos, além de outros.4
Ocorre que o item trazido na tese do tema é expresso em dizer que "Nos contratos de terceirização, a Administração Pública deverá (...)." Ou seja, o Tema 1.118, do STF parece ter convolado em obrigação/dever do ente estatal aquilo que a lei tratava como mera faculdade, poder do ente público.
Como a imposição não era trazida no texto da lei, tendo sido estabelecida pela decisão do STF, entendo que deverá ser dotada de efeitos prospectivos. A questão até fora levantada ao longo do acórdão, a título de obter dictum. Porém, não constou como parte integrante da tese fixada. A modulação de efeitos, todavia, ainda não ocorreu. Só nos resta, então, aguardar as cenas dos próximos capítulos.
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1 Art. 121. Somente o contratado será responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.
§ 2º Exclusivamente nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, a Administração responderá solidariamente pelos encargos previdenciários e subsidiariamente pelos encargos trabalhistas se comprovada falha na fiscalização do cumprimento das obrigações do contratado.
2 E-RR-925-07.2016.5.05.0281, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Claudio Mascarenhas Brandao, DEJT 22/05/2020.
3 Art. 818. O ônus da prova incumbe: (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)
§ 1o Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos deste artigo ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juízo atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
4§ 3º Nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, para assegurar o cumprimento de obrigações trabalhistas pelo contratado, a Administração, mediante disposição em edital ou em contrato, poderá, entre outras medidas:


