Uma Justiça que escolhe seus réus ou uma Justiça em que os réus escolhem os (seus) juízes?
A imparcialidade objetiva do juiz é pilar da Justiça. Artigo defende que, em caso de ameaça pessoal, o magistrado deve se afastar para garantir a isenção.
segunda-feira, 14 de julho de 2025
Atualizado em 11 de julho de 2025 14:13
A ilustre advogada criminalista Luiza Oliver (de ora em diante "Oliver" ou "articulista") publicou artigo no Estadão sob o primeiro título (27/06, A6) e, os não menos insignes advogados Antonio Carlos de Almeida Castro (Kakay) e Lenio Luiz Streck (de ora em diante "contestantes") publicaram uma crítica, sob o segundo título, na qual formularam algumas indagações, terminando por sugerir que "A comunidade jurídica poderia ajudar a respondê-las" (29/06, A4). Como advogado militante há mais de meio século, ouso me manifestar a respeito.
Com o devido respeito aos contestantes, considero viciada a estruturação dos seus argumentos e isso por dois motivos: primeiro, por desenvolvê-los num cenário distinto do desenhado por Oliver, ao tratarem de temas que não estavam em discussão, como, por exemplo, no caso, a competência do STF para julgar acusados de tentarem um golpe de estado, algo por ela não alegado; e segundo, por utilizarem a falácia do exagero, conforme se tentará explicar abaixo.
Logo no início, os contestantes afirmam não aceitar o que entendem como um "raciocínio circular e vicioso" de Oliver, caracterizando-o como um "venire contra factum proprium às avessas", situação esta de difícil compreensão lógica, mas por eles explicado pelo fato de que, tendo o STF contribuído para o fracasso do golpe, ser-lhe impugnado agora, em virtude de alegada suspeição, o direito de julgar golpistas. Acontece porém que, em nenhum ponto de seu artigo, Oliver faz essa afirmação. Mas, para se voltarem contra o artigo de Oliver, os críticos sentiram a necessidade de utilizar duas falácias, ou seja, a falácia da composição (fallacia compositionis) e a da conclusão irrelevante (ignoratio elenchi). A primeira, por tomarem a parte pelo todo, ao estenderem a todo o STF a suspeição que a articulista afirmou pesar apenas sobre o ministro Moraes; e, a segunda, por embasarem o argumento em situação distinta daquela sobre a qual deveria ser embasada, fazendo-o com o nítido propósito de desviar a atenção do ponto fundamental alegado pela articulista..
Deixando de lado a assertiva (que Oliver não expressou), consistente na suspeição do STF como um todo, fiquemos naquilo que ela efetivamente sustenta, ou seja, a falta de imparcialidade objetiva do ministro Moraes. No caso, a pretexto de demonstrarem que a percepção sobre a imparcialidade daquele não foi afetada, engendram um raciocínio especioso, baseado na premissa de que, em tese, todos os ministros poderiam ser ameaçados de morte, pelo que se chegaria a um estado aporético sobre quem, na hipótese, passaria a ter competência para julgar o grupo acusado. Realmente, uma situação de extrema dificuldade! Mas, já que adentramos no plano filosófico, quem sabe se a solução, no caso, não pudesse ser a constituição de um tribunal "ad hoc", integrado por "juízes sem rosto" ?... Quem impediria o STF de, em situações excepcionalíssimas, convocar notáveis acima de qualquer suspeita, a fim de assumirem determinado julgamento? Mas, ainda a permanecermos no plano das abstrações, outros estados aporéticos poderiam ser cogitados, a partir de outras falácias de exagero (paleas homo fallacia), como, por exemplo, a situação absolutamente imaginária na qual os onze ministros do STF conspirassem entre si para dar um golpe de estado. E nessa hipótese, quem os julgaria?
Convém, todavia, para as corretas conclusões deste artigo, evitar o plano das abstrações e adentrar no concreto da vida real. O objeto das afirmações feitas por Oliver, como já antecipado, não consiste na falta de competência do STF para o caso e nem na suspeição da Corte como um todo, mas, sim, no fato de que a ameaça à pessoa do ministro Moraes afeta sua imparcialidade objetiva. Portanto, despicienda a questão teórica consistente na possibilidade de se tornarem suspeitos todos os ministros ameaçados. No plano concreto, o certo é que não houve ameaça dirigida ao STF como instituição. O ministro Moraes sofreu ameaça como pessoa física. Ora, apesar de ministro, ele não representa a Corte e nem a ameaça que sofreu afeta, necessária e automaticamente, a imparcialidiade de seus pares. Daí decorre que relator poderia ser qualquer outro integrante da turma julgadora. Mesmo que os demais ministros pudessem se condoer (e com toda a razão) do risco de morte em que chegou a correr um de seus pares, a verdade é que, no caso, não se pode negar a existência, em relação ao ministro Moraes, de "uma camada adicional de comprometimento da imparcialidade", como bem apontado pela ilustre articulista.
Enfatize-se que, afastados os paralogismos da crítica ao artigo de Oliver, o que ela contesta, de modo claro e veemente, é a possibilidade de que uma autoridade judicial, que poderia ter sido vítima de assassinato caso concretizado o suposto "plano golpista", e que atua como parte, com interesse direto no caso, pudesse assumir papel central na investigação, atuando também como juiz instrutor, relator e um dos julgadores da causa. O que critica, em suma, é a juridicidade da assimetria funcional instaurada e a corrosão da posição institucional do juiz como terceiro imparcial. E lembra, com toda razão que "O juiz que atua como parte não é juiz" e que "Essa premissa, corretamente aplicada para restaurar o Estado de Direito no caso de Lula, precisa agora ser reafirmada - ainda que o réu se chame Jair Bolsonaro". Acrescento que jamais se deve perder de vista que a credibiidade do STF depende diretamente da fidelidade aos postulados que definem o Estado Democrático de Direito e o devido processo legal.
No entanto, a objurgatória ao artigo de Oliver funda-se, exclusivamente, na contestação a uma situação abstrata concebida com o nítido propósito de tentar contornar as questões principais por ela levantadas, e que consistem na afronta às regras que garantem o bom funcionamento da justiça e a proteção dos direitos dos cidadãos. Oliver peleja contra o fato de a Constituição da República e as normas processuais estabelecidas para a proteção das pessoas em relação ao Estado julgador serem afetadas no seu âmago, no seu espírito, constituindo a imparcialidade objetiva do juiz um dos postulados inafastáveis de um julgamento percebido pela sociedade como justo, sem que paire suspeita de que a Justiça não esteja sendo ministrada com todos os requisitos que dela se exigem. Em todos os casos levados ao conhecimento do Poder Judiciário, e fundamentalmente naqueles que dizem respeito aos interesses da coletividade, tornam-se impensáveis, no Estado Democrático de Direito, julgamentos realizados sob suspeita de parcialidade de um ou mais julgadores. Esses julgamentos devem ser como aquilo que de Cornélia disse César, que não bastava ser honesta, mas que devia parecer honesta.
Com efeito, na situação enfocada por Oliver, não se trata apenas de uma questão individual, de natureza subjetiva, ou seja, do direito de o magistrado declarar-se suspeito ou não, mas há implicado aí, também, um princípio fundamental do sistema jurídico, que busca garantir a confiança pública na administração da Justiça, a qual, como sabido e ressabido, deve ser imparcial para ser justa, evitando-se que sua atuação possa vir a ser questionada em face da aparente parcialidade objetiva do julgador. Ao resguardar a integridade do sistema judiciário, mediante pleno respeito aos postulados básicos do direito constitucional e do direito processual, a Justiça não verá diminuido, por certo, o crédito que lhe é devido por parte da cidadania.
Lionel Zaclis
Advogado do escritório Azevedo Sette Advogados.



