A economia em sobressaltos do tipo gangorra atômica e a administração da insegurança gerada no campo dos contratos - Nova utopia
Instabilidades econômicas iniciadas no governo Trump desafiam contratos empresariais, exigindo novos caminhos jurídicos diante da imprevisibilidade global.
terça-feira, 15 de julho de 2025
Atualizado em 14 de julho de 2025 13:52
Desde a posse do governo Trump as economias americana e a global passaram a conviver com surpresas desagradáveis, às vezes mais de uma no mesmo dia. Não é o foco neste artigo perscrutar a respeito das causas, mas examinar os seus efeitos no campo dos contratos - especialmente os empresariais - já se percebendo que o direito se encontra diante de uma nova realidade. Se ela perdurará ou não, e por quanto tempo, não se tem e mínima ideia.
É sabido que mudanças econômicas bruscas surgem de quando em vez - como foi o caso da pandemia do Covid-19 -, ocasião em que o direito foi obrigado a buscar caminhos para a superação dos problemas que vieram à luz. Mas a situação atual é muito mais grave, por mostrar-se extremamente caótica e muito mais abrangente, nascida da pena de um gênio da lâmpada aparentemente ensandecido. Aparentemente porque essa loucura tem método e objetivos diversos, resumidos na busca de uma supremacia econômica e política globais, fundada no método mafioso da chantagem.
O direito estabelece institutos que se prestam a tutelar as mudanças das condições originais dos contratos, desde muito tempo conhecidas, como exceção às regras gerais antiquíssimas, rebus sic stantibus sunt servanda ou seja mantidas as condições originais, o contrato deve ser mantido nos seus termos, a não ser que circunstâncias especiais permitam a sua alteração para o restabelecimento do equilíbrio contratual, que é uma das suas premissas mais fundamentais, digamos assim.
O desgaste da manutenção do contrato, uma história recente, foi objeto de preocupação do legislador, em vista dos efeitos perniciosos dele advindos, tendo se dado perigoso encaminhamento às externalidades negativas supervenientes, danosas para o tecido social. Dessa forma, a chamada "lei de liberdade econômica" introduziu mudanças na redação do art. 421 do CC, no sentido de que, nas relações contratuais privadas, devem prevalecer o princípio da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual, essa a ocorrer de forma excepcional e limitada. Resta ver como essa orientação opera frente à avalanche demolidora da qual estamos falando, cabendo aqui traçar apenas alguns lineamentos, pois essa Hidra tem muitas caras.
Vejamos em que circunstâncias o CC permite alterações no contrato.
No tocante aos contratos aleatórios, nos termos do art. 458, o risco de coisas futuras não virem a existir, assumido por um dos contraentes, o fato de terceiro que tenha demolido as bases do negócio não pode dar ao credor o direito de receber integralmente o que lhe foi prometido. A mesma situação ao inverso, prevista no art. 459, dá no mesmo resultado. E não se pode recorrer ao tratamento do caso fortuito ou de força maior, previstos no art. 393, uma vez que o fato de terceiro não pode ser caracterizado como necessário.
Passando a analisar rapidamente a teoria da imprevisão, tratada nos arts. 478 s 480 do CC, sabe-se que ela poderia ser aplicada em virtude de modificações legislativas "fora do padrão", considerados os seguintes elementos: (i) contratos de execução continuada ou diferida; (ii) prestação de uma das partes que se tornar excessivamente onerosa; (iii) extrema vantagem para a outra parte; e (iv) em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. Ora, não havia qualquer previsibilidade na mudança de alterações tarifárias tão extensas e tão profundas como as que o governo Trump adotou logo após a sua posse, por meio de Ordens Executivas1, ainda que tenham sido objeto de promessas de campanha eleitoral, caracterizadas como fato do príncipe. Neste sentido, como diria alguém, promessas políticas são palavras, nada mais do que palavras. Nesse caso a teoria da imprevisão poderia ser aplicada em defesa da parte prejudicada, por meio de um dos remédios previstos, como sejam, a resolução do contrato, a modificação equitativa das condições contratuais, a redução da prestação ou o modo de executá-la.
Veja-se que o STJ tem adotado posições contra e a favor da teoria em apreço2, da seguinte forma, por exemplo: negativamente nos casos de pragas, secas e variações de preços; em alguns contratos afetados pela pandemia do Covid-19; e nas maxidesvalorizações cambiais. Positivamente, quando do aumento do valor do aluguel em razão do Covid-19. Tenha-se em conta que não é possível identificar uma regra geral, tendo as situações sido tratadas de forma individual. Uma visão genérica procuraria identificar a presença da álea extraordinária extracontratual.
A tutela estabelecida pelo legislador na forma de remédios contratuais3 não se aplica ao tema sob exame, porque os contratos em causa não nasceram doentes, não se tratando de causa interna, mas de efeito superveniente, provocado por terceiro não contratante. Trata-se de uma intensa chuva de meteoros originados de galáxia distante, jamais vistos na nossa estratosfera.
Observe-se, no entanto, que os efeitos do chamado "tarifaço", alcançam as duas partes, uma imediatamente no momento do cumprimento do contrato; e a outra em momento posterior, quando o preço do bem adquirido vier a ser internalizado na economia local, cujos agentes provavelmente não aceitarão o repasse direto dos efeitos daquela medida, exigindo descontos do importador, então também prejudicado. Esse efeito não é alcançado pela teoria da imprevisão, que se volta para as relações diretas e imediatas das partes.
Por outro lado, a partir da segunda emissão das mencionadas Ordens Executivas, às quais se seguiram muitas outras, algumas suspensas provisoriamente, não se poderia mais falar em imprevisão, pois a maléfica caneta do Presidente Trump tem mostrado ser uma metralhadora giratória, atirando para todos os lados, aparentemente sem que se possa perceber algum critério que a inspire. E isso se dá na política e na economia, indistintamente, tudo junto e misturado.
Não sendo aqui o caso de analisar reações políticas, diante desse cenário o agente econômico se vê perdido, sem vislumbrar institutos jurídicos que lhe deem alguma proteção que seja ao menos em parte efetiva, exceto quando cada parte conta com a boa-fé e boa vontade da outra, atuando ambas juntas em um jogo de ganha/ganha ou perde/perde, que lhes seja menos prejudicial.
Na realização de grandes projetos, que se prolongam durante anos na sua concretude, uma saída é a adoção dos dispute boards, os comitês permanentes de resolução de conflitos, que opere com o objetivo de reequilibrar as relações contratuais, com maior ou menor liberdade concedida previamente pelas partes.
No plano amigável uma solução estará na adoção de cláusulas de hardship, aquelas que preveem a possibilidade de renegociação do contrato em caso de mudanças imprevisíveis e significativas que afetem a execução das obrigações contratuais. Entrevê-se uma dificuldade pratica, qual seja, a possibilidade do estabelecimento de um mínimo de garantias em favor de cada parte, de maneira a que a revisão contratual não venha a ser extremamente custosa, o que inviabilizaria a sua implementação.
Deve-se insistir no entendimento de que o melhor caminho estará no exercício de boa fé pelos dois lados, reconhecendo-se que o pau que bate em Chico poderá mais tarde bater também em Francisco, ou seja, a terra não é plana, é redonda. Além do que, espera-se, seja esse um tsunami passageiro, a ser vencido pela atualmente muito combalida democracia americana.
Tratando-se aqui de um breve ensaio, somente o tempo dirá como o problema aqui discutido poderá ser adequadamente enfrentado, tendo-se em conta que ele se complica muito com a mistura de interesses entre o ambiente privado e o público, este além de tudo enredado por disputas eleitorais rasteiras. Isto porque, como se sabe, o Estado brasileiro é um empresário gigante, exercendo essa atividade por meio de empresas públicas e de sociedades de economia mista, muito além dos limites constitucionais, ultrapassados pelo abuso à recorrência de centenas de subsidiários. Assim sendo, a resposta adequada a ser dada fica contaminada pela mistura de interesses.
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1 Semelhante em alguma medida ao nosso antigo decreto-lei, que não necessitava de ulterior apreciação pelo Legislativo, como ocorre atualmente com as medidas provisórias. A esse respeito é muito difícil de compreender que o presidente dos Estados Unidos detenha tamanho e tão diferenciado poder em suas mãos, que nas ditaduras somente se alcança pela força.
2 A exemplo dos processos: REsp 945.166, REsp 1.9982.06, REsp 1.984.277; e REsp 1.321.614, REsp 1.797.714.
3 Sobre esses remédios, vide nossa obra, "Teoria Geral do Contrato - Fundamentos da Teoria Geral do Contrato", em coautoria com Rachel Sztajn, Ed. Dialética, São Paulo, 2022, caps. 17 e 18.
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.



