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PGR se manifesta na ADPF 1.106 e opina pela improcedência

ADPF 1.106 questiona a constitucionalidade da lei Ferrari. Após mudança de entendimento da PGR, prevalece a tendência de manter a norma por sua compatibilidade com a ordem econômica.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Atualizado às 12:15

1. Panorama Geral da ADPF 1.106 até agora

No dia 13 de dezembro de 2023, a PGR - Procuradoria-Geral da República ajuizou a ADPF 1.106 - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1.106/DF, distribuída ao ministro Edson Fachin, na qual se questiona a constitucionalidade de diversos dispositivos da lei 6.729/1979 (lei Ferrari) que regula a concessão comercial entre montadoras e concessionárias de veículos automotores terrestres. O foco central da demanda está nas implicações desses dispositivos sobre a livre iniciativa, a liberdade de contratar, a repressão ao abuso do poder econômico e a atuação de autoridades antitruste, especialmente do CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica.

Na exordial apresentada pela PGR em 13 de dezembro de 2023, sustenta-se que a lei Ferrari, alterada pela lei 8.132/1990, impõe uma série de restrições verticais nas relações contratuais que teriam potencial anticompetitivo.

Entre os dispositivos impugnados estão normas que tratam da exclusividade comercial (art. 3º, §1º, "b"), restrições territoriais e cláusulas de raio (art. 5º, I e II, e §§2º e 3º), quotas mínimas de vendas e fidelização na compra de peças (arts. 7º a 9º), manutenção de estoques (art. 10), vedação à revenda entre concessionárias (art. 12), uniformização de preços (art. 13, § 2º), proibição de venda direta ao cliente pelas montadoras (art. 15), convenções de marca e categoria (arts. 17 a 19), regras sobre duração contratual (art. 21)   pagamentos após a extinção do contrato (art. 27), além da previsão de nulidade de cláusulas contratuais contrárias à lei (art. 30).

A Procuradoria fundamentou seu posicionamento, à época, na nota técnica elaborada pelo Departamento de Estudos Econômicos do CADE (nota técnica 28/22), segundo a qual tais restrições poderiam limitar a concorrência intramarca e prejudicar o consumidor, afastando os preços do padrão esperado em um mercado competitivo. Sustentou-se, ainda, que "[a]o autorizar condutas contrárias à livre-iniciativa e à livre concorrência, a lei Ferrari afronta o art. 173, § 4º, criando uma série de isenções que autorizam a prática de atos comerciais que, a depender do caso, podem se revelar deletérias à Ordem Econômica, subtraindo indevidamente do SBDC o setor automotivo da fiscalização e atuação do CADE."1.

Outro ponto debatido na inicial seriam as mazelas ao princípio da defesa do consumidor, já que "as concessionárias, ao gozarem do direito à exclusividade operacional geográfica, o que supostamente teria o objetivo de proteger o mercado dos revendedores, garantindo-lhes tempo suficiente para recuperação dos investimentos realizados para o início de suas atividades (art. 5º, I e II, da lei 6.729/1979), embora possa - de fato - favorecer a atividade comercial de concessionárias autorizadas, cria incentivos econômicos contrários ao interesse do consumidor, ao garantir área de revenda exclusiva, gerando uma espécie de imunidade à concorrência, fator que costuma conduzir à inevitável elevação de preços."2

A PGR, à época, concluiu que a legislação impugnada não encontraria respaldo nos princípios constitucionais que regem a ordem econômica e pleiteou que não fosse recepcionada pela Constituição de 1988.

Em contraponto, no curso da ADPF 1.106, o Senado Federal, a Câmara dos Deputados e a Advocacia-Geral da União manifestaram-se pela improcedência da ação, posicionamento igualmente adotado pela FENABRAVE e a ANFAVEA, entidades representativas do setor automotivo do Brasil, que ingressaram no feito na qualidade de amicus curiae.

A AGU, em sua oportunidade de se manifestar também pugnou pela improcedência da ação, defendendo que a lei Ferrari representa um mecanismo legislativo legítimo, editado com base em políticas públicas que visam conferir segurança jurídica e equilíbrio nas relações comerciais entre montadoras e concessionárias. A instituição afirma que o objetivo da norma é proteger a concessionária, considerada o elo economicamente mais frágil da cadeia de distribuição, contra eventuais abusos das montadoras. Ademais, destacou que a lei não retira a competência do CADE, tampouco cria qualquer forma de blindagem antitruste. Na realidade, para a AGU, a fiscalização e repressão a práticas abusivas continuam plenamente viáveis dentro do arcabouço legal vigente.

2. A nova manifestação da Procuradoria

Em manifestação mais recente, o atual Procurador-Geral da República, Paulo Gonet Branco, aparentemente se posicionou contrariamente ao entendimento adotado em 2023 pela então procuradora-geral, Elizeta Maria de Paiva Ramos. No parecer apresentado, Gonet sustenta que a lei Ferrari não impõe obrigações cogentes, permitindo que as partes negociem livremente cláusulas de exclusividade, quotas e fidelização, no exercício da liberdade contratual. Ressalta ainda que essas cláusulas, por si sós, não configuram práticas abusivas ou  anticoncorrenciais, podendo, inclusive, gerar efeitos pró-competitivos, a depender do contexto - entendimento também refletido na nota técnica do CADE3.

Outro ponto de destaque na recente manifestação da Procuradoria-Geral da República é a inexistência de qualquer dispositivo na lei Ferrari que exclua ou limite a atuação do CADE. No parecer, argumenta-se que "[a] existência de restrições verticais em contratos de concessão de veículos automotores, em que partes de diferentes elos da atividade econômica se vinculam voluntariamente a concessões recíprocas com vistas a um escopo considerado vantajoso a ambos os contratantes, por si, não viola a Constituição."4. Desta forma, a alegação de que a norma criaria uma espécie de imunidade setorial à fiscalização antitruste não encontraria respaldo no texto legal.

Destaca ainda que, segundo a jurisprudência do STF, notadamente no julgamento da ADI 5.794/DF5, o Poder Judiciário deve respeitar a margem de conformação do legislador sempre que não restar demonstrada, de forma inequívoca, a inconstitucionalidade da norma impugnada.

Sob a ótica consumerista, o recente parecer aduz que a lei Ferrari garante, expressamente, mecanismos de pluralidade e liberdade de escolha: "[a] norma permite que a mesma área conte com mais de um concessionário da mesma rede (art. 5º, §1º) e confere ao consumidor a liberdade de escolha para aquisição de bens e serviços em qualquer concessionário (art. 5º, §3º)."6

O parecer também faz menção à nota técnica 28/22 do CADE, que, embora traga críticas pontuais sobre potenciais efeitos da norma na dinâmica concorrencial, reconhece que tais efeitos não podem ser generalizados e devem ser analisados caso a caso, em razão da diversidade dos mercados envolvidos e das especificidades de cada relação comercial. Neste sentido, a Procuradoria-Geral da República encerra o parecer sustentando que não se justifica a declaração de inconstitucionalidade em abstrato da lei Ferrari.

Conclui-se, portanto, que a Procuradora-Geral da República se posiciona de forma categórica pela improcedência da ADPF 1.106/DF, reconhecendo a compatibilidade da lei Ferrari com os princípios constitucionais da ordem econômica, da livre iniciativa, da liberdade contratual e da repressão ao abuso do poder econômico.

A manifestação ressalta, ainda, a importância de preservar a segurança jurídica dos contratos de concessão comercial e a função reguladora do legislador ordinário no setor automotivo7, sem prejuízo da atuação concorrencial do Estado nos casos concretos em que se contatem efetivamente práticas abusivas.

3. O que esperar a diante

Com esse novo posicionamento, a Procuradoria-Geral da República refutou os fundamentos trazidos pela própria instituição na inicial apresentada em 13 de dezembro de 2023. Considerando que todas as partes que já se manifestaram nos autos da ADPF 1.106 pugnaram pela improcedência do pedido inicial, o cenário denota convergência institucional nesse sentido.

Essa tendência de alinhamento pode influenciar a decisão final a ser proferida pelo relator, ministro Edson Fachin.

Até o momento, não houve movimentações relevantes por parte do relator, sendo necessário aguardar os próximos andamentos processuais, bem como eventuais manifestações ou julgamentos que venham a compor a análise final do STF sobre o tema.

_______

1 Página 33 da Petição Inicial da ADPF 1.106

2 Página 46 da Petição Inicial da ADPF 1.106

3 Ementa da nota técnica nº 28/2022/DEE/CADE - "Ementa: Avaliação dos efeitos concorrenciais gerados pela Lei nº 6.729/1979, a Lei Ferrari, que regula as relações entre fabricantes de veículos automotores e seus concessionários. A Lei representa uma intervenção direta indevida do Estado na economia, gerando limitações à liberdade de empresas e consumidores. Restrições verticais previstas na lei podem ter efeitos concorrenciais e econômicos positivos e negativos, portanto devem ser avaliadas caso a caso a fim de se aferir seus resultados líquidos. A Lei Ferrari pode ser usada como justificativa legal para práticas abusivas relacionadas a restrições verticais nos mercados de distribuição de veículos, dificultando a ação da autoridade antitruste. Sugere-se a revisão da Lei Ferrari no sentido de adequar o setor ao ambiente de livre concorrência e liberdade econômica." (Disponível em: Acesso em: 17/06/2025

4 Página 7 do Parecer de 12/6/2025

5 "a autocontenção judicial requer o respeito à escolha democrática do legislador, à míngua de razões teóricas ou elementos empíricos que tornem inadmissível a sua opção" (Trecho do acórdão da ADI n. 5.794/DF, rel. Min. Edson Fachin, DJe 23.04.2019.)

6 Página 12 do Parecer de 12/6/2025

7 "Não se vislumbra, portanto, ofensa ao núcleo essencial da liberdade de contratar, eliminação da concorrência nem desproporcionalidade entre as restrições verticais permitidas pela lei e a finalidade da lei de prevenir o abuso de poder econômico. Não se cogita de ofensa direta a preceito fundamental." (Páginas 14 e 15 do parecer da PGR)

Tatiana Dratovsky Sister

Tatiana Dratovsky Sister

Sócia da área de Contratos Comerciais e Franquias do escritório BMA Advogados.

Winnie Baptista Freitas

Winnie Baptista Freitas

Advogada da área de Contratos Comerciais e Franquias do escritório BMA Advogados.

Bruno Ganz Granito

Bruno Ganz Granito

Integrante da área de Contratos Comerciais e Franquias do escritório BMA Advogados.

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