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Do atalho ao labirinto: Como o Tema 91 abriu as portas erradas

O TJ/MG busca incentivar soluções extrajudiciais no consumo, mas a falta de padronização pode burocratizar o processo e enfraquecer a efetividade da medida.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Atualizado em 24 de julho de 2025 11:21

É inegável o avanço da Justiça em reconhecer a obrigatoriedade da tentativa prévia de resolução de conflitos antes da judicialização de casos de consumo r conflitos de consumo. Contudo, ao abrir todas as portas ao mesmo tempo, o atalho criado se transformou em labirinto. A decisão do Tema 91 do TJ/MG começa bem - e pode terminar muito mal. Em vez de reduzir a avalanche de processos, corre o risco de burocratizar ainda mais as disputas e até incentivá-las de forma indireta.

Hoje, o Brasil convive com um volume impressionante de litigiosidade. São quase 84 milhões de processos em tramitação, com 35 milhões de novas ações ingressando só em 2023. Diversos fatores alimentam esse cenário: o acesso extremamente facilitado ao Judiciário (justiça gratuita, Juizados Especiais, e uma quantidade de faculdades de Direito sem paralelo mundial) estimula o uso "lotérico" da Justiça. Soma-se a isso a insegurança jurídica de decisões conflitantes sobre temas idênticos, e a ausência de um canal único, público e integrado ao Judiciário para soluções alternativas de conflito. Diante desse quadro, remédios processuais para conter a litigiosidade excessiva vêm sendo discutidos - mas a solução escolhida pelo TJ/MG no Tema 91 pode não atacar as causas raízes e, pior, criar efeitos colaterais indesejados.

No julgamento do IRDR - Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas Tema 91, o TJ/MG enfrentou a questão do "interesse de agir" em ações de consumo, isto é, o consumidor deveria ser obrigado a procurara a empresa e buscar a solução extrajudicial antes de acessar o Judiciário. A tese firmada determinou que, nas ações consumeristas de prestação de serviço/obrigação, o consumidor deve comprovar tentativa prévia de solução extrajudicial do conflito para que sua ação seja admitida.

A tema julgado sobre o rito dos recursos repetitivos é tentativa louvável de reduzir as ações judiciais que se assolam o Judiciário, o ponto de crítica  reside na multiplicidade de canais de atendimento ou reclamação que podem ser acessados. Vale protocolo em SAC da empresa, reclamação no PROCON, órgãos reguladores, plataformas como o Consumidor.gov.br e até sites privados como o Reclame Aqui. Em outras palavras, o Judiciário mineiro não obrigou o consumidor a seguir um caminho único antes de processar - aceita praticamente qualquer iniciativa extrajudicial como suficiente.

Se o fornecedor não apresentar solução em 10 dias úteis após a reclamação, considera-se preenchido o requisito e o consumidor pode ingressar com o processo. Em casos de urgência ou risco, o consumidor pode ajuizar a ação sem tentativa prévia, mas deve comprovar essa tentativa posteriormente, sob pena de extinção do processo.

A decisão buscou incentivar a cultura da solução extrajudicial dos conflitos de consumo. Contudo, ao optar por abrir múltiplos caminhos alternativos em vez de definir um procedimento claro, pode ter criado novas armadilhas. Na tentativa de solucionar conflitos sem acionar o Judiciário, corre-se o risco de adicionar uma camada burocrática facilmente transponível e que pode gerar grande trabalho operacional às empresas, sem reduzir o número de ações.

A multiplicidade de caminhos virou parte do problema. Sem padronização, qualquer tentativa se traduz em mero protocolo - mas não necessariamente gera solução. Quando tudo vale como tentativa de acordo, no fundo nada realmente vale. O consumidor pode escolher reclamar via SAC, e-mail, redes sociais, Procon, Consumidor.gov.br, Reclame Aqui. e, tendo feito qualquer dessas coisas, já estará munido da "comprovação" exigida para ingressar com a ação judicial.

Essa dispersão esvazia o espírito da ideia. A exigência vira algo burocrático: cumpre-se o rito apenas para "carimbar" o ingresso da ação, sem um engajamento genuíno na solução. Quando cada um escolhe por onde vai tentar resolver, não há um processo claro que conduza a um acordo efetivo.

As pessoas aceitam melhor as decisões quando confiam no processo que levou a elas. "Não é só o que se decide. É como se decide." Essa ideia, presente na teoria da legitimação pelo procedimento, aponta que resultados só adquirem legitimidade se forem produto de um procedimento considerado justo, claro e confiável.

No caso das disputas de consumo, a multiplicidade de vias extrajudiciais mina essa confiança. Sem procedimento claro e único, cada parte pode alegar que o processo não foi satisfatório, ao contrário se bem delimitado traria previsibilidade. Todos saberiam de antemão qual caminho seguir para buscar um acordo. O resultado, mesmo que desfavorável, teria maior aceitação.

Para as empresas, o Tema 91 criou um "dever difuso" de resolver problemas em canais indefinidos. Foi reforçada a obrigação de atender bem o consumidor, mas sem indicar onde isso deve acontecer. O resultado: as empresas precisam estar atentas e eficientes em todos os canais.

Essa pulverização pode aumentar a vulnerabilidade das empresas. Qualquer falha pode ser explorada em juízo. E o Tema 91 pode municiar ações indenizatórias. Consumidores passam a enxergar a reclamação prévia como um passo estratégico para fortalecer a futura ação, não como uma via de solução.

Para sair do labirinto, o mais sensato seria criar um caminho único, claro e público para a tentativa de solução extrajudicial. Em vez de "qualquer porta vale", definir qual porta deve ser usada. Isso significa instituir um canal unificado de reclamações com regras bem delineadas.

A plataforma Consumidor.gov.br já se aproxima desse ideal. É um portal público onde consumidores registram reclamações e empresas respondem em até 10 dias. Todo o processo é monitorado por órgãos oficiais, e os resultados ficam registrados numa base pública.

Adoção de um canal único traz vantagens: padroniza o procedimento, dá transparência e acelera a resolução. Com um canal centralizado, todos ganham. Consumidor tem uma via fácil e confiável. Empresa concentra esforços num fluxo único. Judiciário vê redução de ações precipitadas.

Conclusão

O aprendizado do Tema 91 é que boas intenções precisam vir acompanhadas de bom desenho institucional. É louvável querer resolver conflitos sem brigar em juízo; mas é preciso guiar as partes por um caminho único e confiável até esse acordo.

Quando o caminho é claro, até os conflitos mais difíceis encontram destino. Mas quando cada um escolhe por onde vai, a Justiça pode acabar sendo só mais uma porta entre muitas - e não a melhor delas.

Henrique José Parada Simão

Henrique José Parada Simão

Sócio do escritório Parada Advogados.

André Salgado Felix

André Salgado Felix

Head Jurídico do C6 Bank.

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