Câncer e plano de saúde: Desafios na jornada do paciente oncológico
Estudo revela que pacientes com câncer enfrentam negativas, burocracia e abandono emocional na saúde suplementar, exigindo judicialização para garantir tratamento digno.
quinta-feira, 24 de julho de 2025
Atualizado às 15:09
1. Introdução: Quando o plano de saúde adoece junto com o paciente
O diagnóstico de câncer representa, para qualquer ser humano, uma ruptura profunda com a rotina, os projetos e o senso de estabilidade. No entanto, no sistema de saúde suplementar brasileiro, essa dor é frequentemente agravada por falhas operacionais, burocracias excessivas e ausência de suporte humanizado.
Um estudo recente, intitulado "Jornada do Paciente Oncológico na Saúde Suplementar Brasileira: Design de Serviço Aplicado na Prática", publicado na RBSS - Revista Brasileira de Saúde Suplementar, mapeou essas dificuldades a partir de entrevistas com 36 pacientes e 17 profissionais da área oncológica.
A pesquisa incluiu 36 pacientes com diferentes tipos de câncer, conforme a distribuição abaixo, o que confere diversidade e representatividade à análise das jornadas vivenciadas:
Os achados reforçam o que vemos na prática jurídica: o paciente é muitas vezes invisibilizado em sua dor, negligenciado em seus direitos e desamparado diante de um sistema que deveria acolhê-lo.
2. Comunicação falha, decisões unilaterais e o paciente como mero espectador
Entre os principais relatos colhidos na pesquisa, destacam-se:
- Falta de explicações claras sobre o diagnóstico e as alternativas terapêuticas;
- Volume excessivo de informações técnicas em consultas curtas, sem tempo para assimilação;
- Decisões médicas tomadas sem o envolvimento real do paciente, que muitas vezes desconhece seus direitos ou sente que não pode questionar.
Essa realidade vai de encontro ao princípio do cuidado centrado na pessoa, que exige escuta ativa, respeito à autonomia e compartilhamento de decisões.
A ausência desses elementos transforma o cuidado em protocolo, e o paciente em número.
3. A negligência com a saúde mental
Outro aspecto sensível revelado no estudo é a carência de apoio psicológico e emocional.
Outro ponto crítico é a ausência de suporte psicológico estruturado. Apesar da carga emocional imposta pelo câncer, poucos pacientes relataram ter recebido encaminhamento para atendimento psicológico. Quando isso ocorreu, a iniciativa partiu, em geral, do próprio paciente ou de familiares.
O estudo também observou a persistência de estigmas que levam muitos pacientes a evitar serviços de apoio emocional. Essa lacuna compromete a adesão ao tratamento, aumenta o sofrimento e agrava a sensação de isolamento.
Reconhecer a integralidade do paciente, incluindo suas dimensões emocionais e espirituais, é essencial para um cuidado mais efetivo e humanizado.
4. A burocracia como obstáculo ao cuidado
Os relatos de pacientes mostram que, além da doença, muitos enfrentam cargas administrativas injustificáveis: autorizações negadas ou demoradas, necessidade de transportar exames e laudos, exigência de deslocamentos para outras cidades sem suporte logístico.
No entanto, a realidade descrita no estudo mostra o contrário:
- Judicializações para garantir início do tratamento ou continuidade de procedimentos;
- Redirecionamento forçado para a rede própria, mesmo sem histórico com o médico;
- Exigências administrativas que recaem sobre o paciente em estado de vulnerabilidade.
Cada dia perdido na burocracia é um dia em que a doença avança.
5. Negativas mais comuns dos planos de saúde em casos de câncer
O estudo analisado revela um padrão recorrente de barreiras impostas pelas operadoras de saúde, mesmo diante de doenças graves como o câncer.
Entre as negativas mais frequentes, destacam-se:
- Negativa de medicamentos fora do rol da ANS, mesmo com prescrição médica e evidência científica;
- Recusa de cirurgia plástica reparadora, especialmente nos casos de mastectomia bilateral ou simetrização;
- Imposição de troca de equipe médica para rede própria, desconsiderando o vínculo terapêutico já estabelecido;
- Demora ou ausência de autorização para exames, biópsias e cirurgias essenciais ao diagnóstico precoce;
- Negativa de home care ou cuidados paliativos, sob alegação de exclusão contratual ou ausência de previsão em rol;
- Cobrança indevida por materiais ou medicamentos durante internação, que deveriam estar incluídos no pacote hospitalar;
- Descontinuidade de terapias de suporte (psicologia, fisioterapia, nutrição) após o término da quimioterapia ou cirurgia.
Essas negativas frequentemente levam à judicialização, não apenas para garantir tratamentos, mas para assegurar a dignidade e a previsibilidade da jornada.
6. Os direitos dos pacientes oncológicos na saúde suplementar
Pacientes diagnosticados com câncer possuem direitos específicos garantidos por lei, que muitas vezes são negligenciados pelas operadoras de planos de saúde.
Conhecê-los é essencial para garantir o tratamento adequado, no tempo certo e sem abusos:
- Cobertura obrigatória do tratamento oncológico (Lei 9.656/1998 e rol da ANS), incluindo quimioterapia, radioterapia, cirurgia e medicamentos orais para uso domiciliar;
- Direito à reconstrução mamária após mastectomia, inclusive do lado saudável para simetria, assegurado pela lei 9.656/1998, art. 10-A, recentemente alterado pela lei 15.171/25;
- Medicamentos de alto custo, mesmo fora do rol da ANS. Os planos devem cobrir medicamentos registrados na Anvisa, mesmo que não constem no rol da ANS ou sejam de uso off-label (fora da bula), desde que haja prescrição médica justificada e respaldo técnico. Exemplos comuns: Palbociclibe (Ibrance), Enzalutamida, Trastuzumabe Entansina, entre outros.
- Atendimento multidisciplinar, com cobertura de psicoterapia, nutricionista, fisioterapia e cuidados paliativos quando indicados;
- Proibição de carência para urgência e emergência oncológica, após 24h do início do contrato;
- Direito à permanência com o profissional de confiança, mesmo fora da rede própria, quando não houver continuidade no acompanhamento;
- Direito à informação clara e acessível sobre o diagnóstico, prognóstico e opções terapêuticas;
- Direito ao dignóstico: exames genéticos e moleculares (quando definem a conduta médica). Exames como o Oncotype DX, FoundationOne ou painéis genéticos para câncer hereditário são fundamentais para determinar o tipo e agressividade do tumor e, assim, orientar o tratamento. Mesmo que não estejam expressamente listados no rol, o Judiciário tem reconhecido sua essencialidade, garantindo cobertura com base no princípio da integralidade do tratamento.
Esses direitos têm sido reiteradamente reconhecidos pelo Judiciário e devem orientar não apenas a atuação dos advogados, mas também as decisões dos médicos e familiares diante de qualquer negativa indevida.
7. A judicialização como resposta à negligência
Diante de tantas falhas - atrasos, negativas, tratamentos incompletos, ausência de cirurgia plástica reparadora, exclusão de medicamentos fora do rol - a Justiça tem se tornado a única porta de acesso real para muitos pacientes.
A litigância judicial, embora desgastante, ainda é a via mais eficaz para garantir:
- Autorização de cirurgias urgentes;
- Cobertura de medicamentos off-label ou não incluídos no rol da ANS;
- Tratamento multidisciplinar contínuo;
- Cirurgia plástica reparadora de mama, assegurada por lei e, muitas vezes, negada sob pretextos burocráticos;
- Permanência do paciente na rede credenciada de confiança, sem transferências arbitrárias para unidades próprias.
Essa judicialização, que poderia ser exceção, tornou-se rotina.
O Judiciário tem desempenhado papel central na proteção da dignidade do paciente, diante de operadoras que frequentemente priorizam critérios econômicos em detrimento do cuidado integral.
8. Conclusão: Repensar a saúde suplementar sob o olhar de quem sofre
O estudo analisado oferece uma contribuição valiosa ao evidenciar, com base empírica, que o cuidado oncológico na saúde suplementar ainda é profundamente fragmentado, burocratizado e distante das reais necessidades dos pacientes.
É urgente que operadoras, profissionais de saúde e o próprio poder público reconheçam a importância da experiência do paciente como parâmetro de qualidade.
Enquanto esse redesenho não ocorre, a atuação estratégica da advocacia permanece essencial para transformar dor em reparação, e invisibilidade em proteção jurídica.
Que a burocracia não seja mais um obstáculo. E que o sistema de saúde, enfim, reconheça o paciente com câncer como sujeito pleno de direitos - não como mais um número na planilha de custos.
Enquanto isso não acontece, é nosso papel - como advogados e defensoras dos direitos dos pacientes - dar voz às suas dores, lutar por suas escolhas e garantir que nenhum obstáculo administrativo impeça o acesso ao tratamento adequado paciente com câncer já enfrenta um desafio físico e emocional imensurável, que a burocracia e a frieza das operadoras de saúde não sejam mais um tumor a ser vencido.
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CASTRO, V. F. et al. Jornada do Paciente Oncológico na Saúde Suplementar Brasileira: Design de Serviço Aplicado na Prática. Rev. Bras. Saúde Suplementar, 2025.


