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ICMS transferências: A transferência de créditos é obrigatória ou facultativa?

O artigo opina sobre a obrigatoriedade da transferência de créditos, que é uma das grandes incertezas na tributação de operações de transferência pelo ICMS no cenário "pós ADC 49".

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Atualizado às 11:59

A tributação das operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte é um tema sensível para a iniciativa privada e para a Administração Tributária dos estados.

Mesmo após décadas de litígios, decisões dos tribunais superiores e alterações legislativas substanciais, ainda há muita indefinição a respeito dos procedimentos fiscais que devem ser adotados nessas operações.

A legislação editada após o julgamento da ADC 49 pelo STF não foi redigida com a clareza necessária para definir, com segurança, os procedimentos que devem ser adotados nas diferentes situações proporcionadas pela atividade econômica.

Não fosse o bastante, transcorridos mais de oito meses desde a publicação do convênio ICMS 109/241, alguns estados sequer internalizaram as suas regras, ou atualizaram a sua legislação para adequá-la ao Convênio vigente.

Tudo isso gera uma série de incertezas, que motivaram a elaboração deste artigo, em que analisaremos a obrigatoriedade da transferência de créditos de ICMS em operações interestaduais entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, o que, na nossa visão, representa a principal fonte de indefinição que permeia o assunto.

Retrospecto legislativo e jurisprudencial até a ADC 49

Historicamente, a legislação do ICMS sempre tratou as transferências como operações tributadas2.

Essa abordagem é justificada, essencialmente, por motivos operacionais e de repartição de receitas tributárias no plano federativo. Atribuir às transferências o tratamento de operações tributadas facilitaria a operacionalização do princípio da não cumulatividade do ICMS e reduziria a margem para que os contribuintes "manipulassem" a carga tributária, direcionando débitos ou créditos do imposto ao estado que lhes conviesse.

Contudo, em determinadas hipóteses, a equiparação da transferência a uma operação regularmente tributada também poderia gerar distorções que oneram indevidamente o contribuinte e resultam em ineficiências, como o acúmulo de saldos credores ou a perda da efetividade de benefícios fiscais.

Nesse contexto, contribuintes que se julgavam prejudicados por essa opção legislativa questionaram a legalidade e constitucionalidade das normas que disciplinavam a tributação das transferências pelo ICMS.

A divergência é antiga e foi amplamente debatida nos tribunais superiores, com nítida prevalência do entendimento de que a "circulação física", ou mero deslocamento de mercadoria entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, não configura hipótese de incidência do ICMS3.

As decisões dos tribunais superiores sinalizavam uma posição clara e consolidada, mas não tinham a eficácia geral e vinculante de uma decisão em controle concentrado de constitucionalidade, e não motivaram uma mudança imediata na lei complementar e nas legislações estaduais.

Cenário normativo após a ADC 49

O julgamento da ADC 49 resultou na declaração de inconstitucionalidade de normas da LC 87/1996 que disciplinavam as operações de transferência4 e desencadeou uma série de alterações legislativas.

Em 19/4/2023, ao analisar os embargos de declaração opostos pelo Estado do Rio Grande do Norte, o STF esclareceu que a não incidência do ICMS em operações de transferência não afeta o direito do contribuinte ao aproveitamento de créditos do imposto incidente em etapas anteriores da cadeia produtiva ou comercial, e modulou os efeitos temporais da decisão, que passaria a vigorar a partir de 2024.

Um dos fundamentos que motivaram a modulação foi conferir tempo hábil ao Congresso Nacional, para que alterasse a legislação e disciplinasse a transferência de créditos por parte dos contribuintes. Contudo, houve uma certa demora na resposta do parlamento ao tema, o que levou a administração tributária dos estados a propor uma regulamentação antecipada por meio de convênio celebrado no âmbito do CONFAZ - Conselho Nacional de Política Fazendária.

Em outubro de 2023, foi publicado o convênio ICMS 174/23, que foi rejeitado, por não ter sido ratificado pelo Estado do Rio de Janeiro5.

Apesar da rejeição, em 1/12/2023, o CONFAZ publicou o convênio ICMS 178/23 - praticamente similar ao convênio ICMS 174/23 - que foi ratificado e inspirou a edição de normas específicas por diversos estados.

O convênio ICMS 178/23 propôs que a transferência de créditos seria obrigatória em operações interestaduais entre dois estabelecimentos do mesmo contribuinte e estabeleceu critérios para o cálculo do imposto e o cumprimento de obrigações acessórias. 

Em 29/12/2023, foi publicada a LC 204/23, que estabeleceu a nova disciplina das operações de transferência, incorporada ao art. 12, §§ 4º e 5º da LC 87.

O art. 12, § 4º determina que o estado de destino das mercadorias reconheça o direito aos créditos transferidos, até o limite da aplicação da alíquota interestadual sobre o valor da operação de transferência, e que o estado de origem reconheça o direito aos créditos remanescentes, relativos a operações e prestações anteriores, que não tiverem sido transferidos.

Por sua vez, o art. 12, § 5º da LC 87 autoriza o contribuinte a optar por equiparar as suas operações de transferência a operações regularmente tributadas. A norma foi inicialmente vetada pela Presidência da República, mas está em vigor atualmente, em razão da derrubada do veto pelo Congresso Nacional.

A regulamentação proposta no convênio ICMS 178/23, e internalizada por muitos estados, não era totalmente consistente com a LC 204, pois obrigava o contribuinte a transferir um crédito em valor correspondente ao que seria o limite máximo estabelecido no art. 12, § 4º, inciso I da LC 87 (equivalente a aplicação da alíquota interestadual sobre o valor da operação de transferência). Com a derrubada do veto presidencial ao art. 12, § 5º da LC 87 e a promulgação da norma em junho de 2024, aumentou a pressão para que as regras do convênio ICMS 178/23 fossem revistas, e o convênio ICMS 178/23 foi revogado pelo convênio ICMS 109/24, atualmente vigente.

A Cláusula Primeira do convênio ICMS 109/24 segue a abordagem da LC 204 ao dispor que é assegurado ao contribuinte o direito à transferência de créditos ao estabelecimento destinatário situado em outro estado, mas prevê, em seu parágrafo único, que o estado de origem só é obrigado a assegurar a manutenção de créditos que vierem a exceder o valor que resultar da aplicação da alíquota interestadual sobre o valor atribuído à operação de transferência. Se o contribuinte remetente não transferir o limite máximo do crédito previsto no art. 12, § 4º, inciso I da LC 87, o estado de origem não estaria obrigado a assegurar o crédito que poderia ser transferido, mas não foi.

A Cláusula Quarta, § 1º estabelece o limite máximo do crédito passível de transferência, em linha com o art. 12, § 4º, I da LC 87.

E a Cláusula Sexta, por sua vez, disciplina a opção prevista no art. 12, § 5º da LC 87, de se equiparar a transferência a uma operação regularmente tributada.

De todo modo, a legislação vigente não oferece a segurança e clareza necessárias, e ainda há muita indefinição a respeito da tributação das operações de transferência pelo ICMS.

Transferência de créditos obrigatória ou facultativa

Como já mencionado, a principal indefinição acerca da tributação das operações de transferência é o direito de o contribuinte optar pela transferência de crédito ao estabelecimento destinatário, especialmente em operações interestaduais6. Não se trata da opção por transferir créditos ou equiparar as transferências a uma operação tributada, mas sim, de transferir de forma facultativa ou obrigatória os créditos de ICMS existentes, relativos a operações anteriores, quando for aplicada a disciplina do art. 12, § 4º da LC 87.

É notório que os contribuintes que se insurgiram contra a tributação das transferências tinham o objetivo de não transferir créditos de ICMS ao estabelecimento destinatário, pois, em termos gerais, a transferência de créditos tem efeito similar ou próximo à tributação. O ajuizamento de uma ação para discutir a matéria só seria interessante se a tributação das transferências gerasse um ônus (resultado devedor na apuração do ICMS) no estado de origem e/ou se o estabelecimento destinatário não pudesse aproveitar o crédito do imposto incidente na operação7.

A todo rigor, o resultado prático das decisões judiciais que acolheram o pleito dos contribuintes é equivalente a uma autorização para não transferir créditos, pois se o contribuinte quisesse transferir, bastaria cumprir com a legislação então vigente e tributar as operações.

Ao analisarmos a decisão proferida no julgamento da ADC 498, verificamos que o STF reconheceu que a não incidência do ICMS em operações de transferência não autoriza o estorno do crédito relativo a operações anteriores, mas não afirmou expressamente que o contribuinte pode optar por transferir, ou não, o crédito.

A LC 204, por sua vez, também não é expressa a respeito da natureza facultativa da transferência de créditos. A técnica legislativa utilizada não é a ideal, e a norma comporta interpretações diferentes. É possível interpretar que o art. 12, § 4º, inciso I só estabelece um limite máximo ao valor do crédito a ser transferido, o que permitiria que o contribuinte remetente transfira um crédito em valor menor, ou não transfira crédito. De outro ângulo, também é não é totalmente descabida a interpretação de que a norma determinaria a transferência dos créditos existentes, observando-se o limite máximo mencionado.

E o convênio ICMS 109/24 induz o contribuinte a transferir o crédito em operações interestaduais (ou equiparar a operação de transferência a uma operação regularmente tributada), ao afirmar que o estado de origem é obrigado a assegurar "apenas a diferença positiva" entre os créditos relativos a operações anteriores e o valor resultante da aplicação das alíquotas interestaduais sobre o valor da operação de transferência9.

Atualmente, é praticamente uniforme10 a posição dos estados de que, se houver crédito relativo a operações anteriores, a sua transferência é obrigatória, observados os limites e condições estabelecidos na respectiva legislação.

O que se observa é que as administrações tributárias dos estados vêm defendendo a obrigatoriedade da transferência de créditos em operações interestaduais de forma bastante enérgica. E é compreensível que o façam, pois a atribuição de caráter facultativo a essa medida geraria oportunidades de planejamento tributário aos contribuintes, e permitiria o "direcionamento" de créditos de ICMS ao estabelecimento em que forem aproveitados de forma mais eficiente ou conveniente, o que certamente geraria sérios impactos arrecadatórios.

Essa postura certamente influenciou a redação intrincada da LC 204 e a abordagem inconsistente dos convênios ICMS 178/23 e 109/24, que denotam um esforço para conferir o mínimo possível de margem para que o contribuinte opte pela alocação de créditos de ICMS em um estado ou outro. Em uma análise mais crítica, a redação desses diplomas normativos pode até sugerir uma tentativa de se "contornar" a decisão do STF na ADC 49.

Em que pese a posição dos estados, na nossa leitura, a interpretação de que a transferência de créditos é facultativa é a que melhor se alinha com a ADC 49 e com a LC 204. A redação do art. 12, § 4º, inciso I da LC 87 não determina, mas apenas autoriza, a transferência de créditos, ao passo que o inciso II resguarda o crédito não transferido, independentemente de não ter sido transferido por opção do contribuinte ou por exceder o limite máximo estabelecido no inciso I. E se a LC 204 não impõe a transferência de créditos, não cabe a um convênio do CONFAZ instituir tal restrição.

No contexto do nosso sistema tributário, nos parece razoável que a transferência de créditos de ICMS seja uma medida facultativa, pois, ainda que gere oportunidades de planejamento tributário e de "alocação" de créditos em um estado ou outro, a medida ajudaria a resolver um problema grave de nosso sistema atual, que é o acúmulo de saldos credores de ICMS.

É notório que, por conveniência arrecadatória e administrativa, a legislação do ICMS impõe uma série de ineficiências aos contribuintes, que arcam com o ônus do imposto na aquisição de insumos e mercadorias11, acumulam saldos credores e sofrem os prejuízos financeiros inerentes, pois os estados não implementam mecanismos que permitam a utilização dos créditos e, quando implementam, impõem obstáculos procedimentais e burocráticos que tornam a utilização complexa e morosa.

Sob essa perspectiva, a transferência facultativa de créditos poderia servir como uma ferramenta adicional para evitar o acúmulo de saldos credores e ajudaria a promover um maior equilíbrio na relação entre fisco e contribuinte.

Diversos contribuintes já questionaram a obrigatoriedade da transferência de créditos perante os tribunais judiciais, que deverão definir a questão ao longo dos próximos anos.

_______

1 Convênio publicado em 7/10/2024.

2 Esse tratamento estava previsto no Decreto-lei n. 406/1968, no Convênio ICM n. 66/1988 e na redação original Lei Complementar n. 87/1996.

3 Súmula 166, publicada em 23.8.1996; e Tema Repetitivo n. 259, do Superior Tribunal Justiça; Tema 1.099 da Repercussão Geral ("leading case" ARE 1.255.885/MS) no STF.

4 Art. 11, § 3º, II; parte do art. 12, I; e art. 13, § 4º.

5 A não ratificação do Convênio foi formalizada no Decreto Estadual n. 48.799/2023, e justificada pelo fato de que o Convênio conflitaria com a decisão proferida pelo STF no julgamento da ADC 49 ao prever que a transferência de créditos seria obrigatória.

6 Como o art. 25 da LC 87 autoriza a compensação entre saldos credores e devedores dos estabelecimentos do mesmo titular situados no mesmo estado, em operações internas, o impacto arrecadatório é relativizado e a discussão a respeito da possibilidade de opção pela transferência de créditos se torna menos relevante, tanto que alguns estados, como São Paulo, autorizam expressamente a opção.

7 O que poderia ocorrer se a operação subsequente estiver sujeita a benefício fiscal que impeça o aproveitamento do crédito, por exemplo. 

8 Nos Embargos de Declaração.

9 Ou seja, são preservados apenas os créditos que não puderem ser transferidos em razão do limite previsto no art. 12, § 4º da LC 87.

10 Exemplo de divergência é o Decreto n. 16.568/2025, de Estado de Mato Grosso do Sul, que, ao que consta, permite a transferência facultativa.

11 Incluindo a antecipação do imposto relativo a operações futuras, no regime de substituição tributária.

Gabriel Miranda Batisti

VIP Gabriel Miranda Batisti

Advogado, Mestre em Direito Tributário Internacional (LL.M) pela Universidade da Flórida (EUA), Especialista em Direito Tributário pela FGV/SP.

Rodrigo R. Leite Vieira

Rodrigo R. Leite Vieira

Mestre em Direito Tributário pela USP. Ex-Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT).

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