O IPTU, a Constituição e a falta de animus domini
A incidência do IPTU exige a presença do *animus domini*, ou seja, a intenção de ser dono. Posse sem esse elemento não pode ser tributada, sob pena de inconstitucionalidade.
sexta-feira, 1 de agosto de 2025
Atualizado às 14:24
A CF/88 estabeleceu no seu art. 156, inciso I, que compete aos municípios instituir "IPTU", imposto sobre a "propriedade predial" (construções em área urbana) e "territorial urbana" (terrenos sem construção, ou sem incluir a parcela construída, também localizados na zona urbana).
Apesar da distinção acima, a previsão constitucional faz com que o IPTU incida não só sobre a poligonal de superfície natural da terra que tem algum proprietário, mas também pelo que é incorporado por acessão artificial1 em tal poligonal de superfície.
Portanto, não há incidência de IPTU sobre qualquer posse relativa aos imóveis, estando claro na CF/88 que o imposto incide sobre a propriedade, podendo inclusive, nos termos do inciso II, do §4º, do art. 182, instituírem os municípios uma progressividade no tempo do IPTU sobre o proprietário do solo urbano não edificado (propriedade territorial urbana sem construção), como forma de buscar o melhor desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar dos que nela habitam2.
E nem poderia haver a incidência do IPTU sobre quaisquer das espécies da posse, sob pena de ampliação indevida da hipótese de incidência do tributo, afrontando o princípio da legalidade e às limitações ao poder de tributar do Estado (art. 145 a 152 da CF/88) e, bem verdade, à própria origem do direito constitucional que limitou os poderes do rei da Inglaterra em 1215 pela conhecida Magna Carta3.
Tais limitações são fundamentais para que o Estado Democrático de Direito não volte a tributação para um modelo de Estado absolutista, no qual o déspota, ainda que esclarecido (erudição não significa sabedoria e ética com relação às famílias e empresas), defina o quando quer e como quer arrecadar tributos dos seus súditos (no Estado Democrático de Direito, cidadãos que contribuem - contribuintes4 e não súditos), sem seguir as diretrizes e limitações impostas pelo seu Poder Constituinte.
O CTN - lei nº 5.172/1966 -, por sua vez, tratou do IPTU no seu art. 325 a 34, definindo como hipótese de incidência "a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do município", e continua no seu §1º indicando que para ser propriedade urbana deve ter pelo menos duas infraestruturas, dentre as cinco que enumerou.
Embora o CTN tenha sido recepcionado pela CF/88 como lei complementar (cf. art. 146 da CTN), o espaço temporal entre um e outro não deve ser desconsiderado, valendo destacar, ainda, a interpretação tributária dada pelo CTN, que tratou de coibir abusos ao firmar no seu art. 110 que: "A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal [...]".
Vê-se, portanto, que o CTN, já em 1966, prezava pela interpretação do que está contido no texto constitucional vigente, razão pela qual a análise do art. 156, 182 e demais artigos e princípios da CF/88 aplicáveis não nos permitem ter propriedade simplesmente como posse sem animus dominus (expressão em latim que significa a "intenção de ser dono").
Embora o art. 32 do CTN mencione três situações - (i) propriedade, (ii) o domínio útil ou (iii) a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física -, entendemos que em todas elas a incidência está, ao final, ligada à existência de animus domini, com ou sem título.
A hipótese, assim, continua a ser única, sendo necessário o animus domini para que ocorra a tributação pelo IPTU. Em casos, por exemplo, de irregularidade fundiária, ou institutos como enfiteuse6, os verdadeiros proprietários, muitas vezes, não têm título dominial, sendo necessário que o domínio útil e a posse estejam revestidos do animus domini e se alberguem no conceito de proprietário, pois do contrário não estaríamos tributando o verdadeiro dono, como tributação sobre a propriedade, e sim o consumo por quem aluga, arrenda, recebe em concessão etc.
Já para a base de cálculo, o art. 337 do CTN se encaixa no conceito constitucional do IPTU, ao definir o valor venal pela propriedade predial e territorial urbana e não pelos bens móveis que nela se encontram.
Por fim, o art. 34 do CTN pode gerar confusão, na medida em que tratou, em 1966, como "Contribuinte do imposto o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título. A leitura singela deste dispositivo de 1966, sem ter em mente a CF/88, pode nos levar a crer que possuidor sem animus domini poderia ser contribuinte do IPTU, o que estaria ampliando a hipótese de incidência permitida pela CF/88.
A posse de quem ocupa o imóvel sem animus domini não pode ser utilizada pelo fisco como regra para facilitar a arrecadação, desvirtuando o preceito constitucional e institutos do direito civil.
Em âmbito jurisprudencial, destaca-se o Tema 1.1398 do STF, embora entendendo como infraconstitucional, tratou do animus domini com segurança jurídica e resolveu:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO - Execução fiscal - IPTU - Exercício de 2017 - Exceção de pré-executividade rejeitada - Pretensão à reforma da decisão
- Admissibilidade - Ação executiva proposta contra credor fiduciário, que não pode ser responsabilizado por débito relativo ao IPTU (arts. 26 e 27, § 8º, da lei 9.514/1997) por não se enquadrar como contribuinte em quaisquer das hipóteses do art. 34, do CTN - Posse indireta exercida de forma precária e que não tem por objeto a efetiva aquisição da propriedade - Credor fiduciário que possui domínio meramente resolúvel, sem objetivo de adquirir, em definitivo, a propriedade do bem, a qual depende do inadimplemento do contrato, pelo devedor, para se consolidar e não pode ser equiparada à propriedade plena do art. 1.231, do CC - Propriedade fiduciária que é prevista no art. 1.367, do mesmo códex
- Credor fiduciário que será responsável pelo pagamento do IPTU incidente sobre o imóvel apenas quando for imitido na posse direta do bem, nos termos do art. 1.368-B, parágrafo único, do CC - Ilegitimidade passiva ad causam configurada - Decisão reformada para acolher a exceção de pré-executividade - Agravo provido (Doc. 4, p. 2)
[...]
A mera condição de credor fiduciário não confere ao banco-agravado os direitos de usar, gozar e dispor do imóvel, haja vista que a sua posse, indireta e resolúvel, tem por objetivo apenas garantir o recebimento do valor financiado e não a aquisição da propriedade, sendo flagrante ausência de 'animus domini'."
O STJ, analisando o Tema 1.158, fixou a tese: "O credor fiduciário, antes da consolidação da propriedade e da imissão na posse no imóvel objeto da alienação fiduciária, não pode ser considerado sujeito passivo do IPTU, uma vez que não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas no art. 34 do CTN." (grifamos)
Em outro caso9, o STJ entendeu pela violação aos arts. 32, 34 e 128 do CTN e confirmou que o arrendatário, de contrato de arrendamento portuário, não é sujeito passivo do IPTU, por não ser o proprietário ou o possuidor por direito real que exerce a posse com animus domini.
A interpretação apurada do CTN, com relação a contribuinte do IPTU que tenha animus domini, inibe a discussão da sua constitucionalidade, mas nos casos em que isso não ocorre, necessário o esclarecimento sobre constitucionalidade ou não da parte final do art. 34 do CTN.
Claro que a análise da imunidade tributária recíproca (art. 150, VI da CF/88) do patrimônio (inclusos os imóveis), renda e serviços das pessoas jurídicas de direito público, como objeto principal de um litígio, muitas vezes, faz com que o animus domini não seja analisado com profundidade, como ocorreu nos Temas 385 e 437 do STF. Já nos Temas 508, 644 e 1140 há evidente análise da imunidade recíproca, sem sequer tratar do animus domini, que é central para a incidência do IPTU, ainda que se considere que não há imunidade tributária.
Os Temas 1.122, 1.297 e 1.398 do STF, também com foco na imunidade recíproca, ainda não foram julgados e deveriam ter o olhar atento para a questão do animus domini.
Se o possuidor não possui animus domini, não pode ser considerado sujeito passivo para fins de pagamento de IPTU, de bem público (portos, ferrovias, rodovias, aeroportos, saneamento básico, metrô, energia elétrica etc.) ou de bem privado, como ocorre com o locatário, arrendatário, cessionário, concessionário, possuidor fiduciário etc. Da mesma forma quem subloca, subarrenda etc.
Se o bem imóvel é de propriedade da União ou dos Estados/Distrito Federal, tais imóveis não deveriam sofrer a incidência do IPTU, na medida em que (i) o proprietário é um dos entes da nossa federação, a ele se aplicando a imunidade do patrimônio e (ii) se beneficia, direta ou indiretamente, da renda ou serviços gerados pela utilização da tais imóveis, seja por outorga fixa ou outorga variável, cobradas dos arrendatários, cessionários, permissionárias ou concessionárias, cujos contratos incluem tais imóveis públicos. Estes, por sua vez, utilizam os imóveis com o consentimento do proprietário e, por não possuírem animus domini, jamais poderão ser considerados como sujeitos passivos do IPTU
Resta-nos agora aguardar o posicionamento em definitivo dos Tribunais Superiores, e torcer para que eles analisem com mais vagar a presença (ou não) de animus domini, pois só com a verdadeira intenção de dono é que estaremos diante de hipótese de incidência de IPTU.
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1 Trata-se de forma de aquisição de propriedade por ação humana que incorpora construções ou bens, unindo-os ao imóvel.
2 Podem ao invés de devem é uma diretriz constitucional bastante acertada, pois dependerá do contexto de cada cidade. Há praias no Brasil com problema de incidência do sol em determinados horários do dia em razão da quantidade de prédio na orla marítima, o que demonstra que terremos com construções menores podem ser até melhor para a coletividade urbana.
3 https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/182020/000113791.pdf
4 "Me arrancam tudo a força e depois me chamam de contribuinte." Millôr Fernandes. Não podemos ter aqui que a irreverência sirva para todo e qualquer tributo, mas é irretocável para aquilo que foge ao texto constitucional e seus princípios originários.
5 . Art. 32 O imposto, de competência dos Municípios, sôbre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.
§ 1º Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal; observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público:
I - meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais;
II - abastecimento de água;
III - sistema de esgotos sanitários;
IV - rêde de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar;
V - escola primária ou pôsto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado.
§ 2º A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos têrmos do parágrafo anterior.
6 Vide art. 2.038 do Código Civil e Decreto-Lei nº 9.760/1946 e a Lei nº 9.636/1998.
7 Art. 33. A base do cálculo do imposto é o valor venal do imóvel.
Parágrafo único. Na determinação da base de cálculo, não se considera o valor dos bens móveis mantidos, em caráter permanente ou temporário, no imóvel, para efeito de sua utilização, exploração, aformoseamento ou comodidade.
8 https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=9355435
9 AgRgnoAGRAVODEINSTRUMENTO Nº1.009.182-SP(2008/0022157-4)
Renato de Menezes Pires
Sócio nas áreas de Direito Empresarial e Infraestrutura do escritório De Vivo, Castro, Cunha e Whitaker Advogados.



