MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. A recuperação judicial e a lavagem de dinheiro

A recuperação judicial e a lavagem de dinheiro

A recuperação judicial, quando deturpada, pode ser usada para lavar dinheiro e ocultar fraudes contábeis, exigindo atuação técnica e ética de todo o sistema de justiça.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Atualizado às 10:39

A recuperação judicial, concebida como ferramenta de proteção à empresa viável em crise, é um instrumento legítimo de reorganização econômica. Seu propósito, desde a promulgação da lei 11.101/05, é preservar a atividade empresarial, os empregos e os interesses de credores. No entanto, como acontece com tantas ferramentas jurídicas, seu uso também pode ser desvirtuado - e, nos últimos anos, tem sido crescente o número de casos em que a recuperação judicial se converte em meio de dissimulação patrimonial e lavagem de dinheiro.

A lavagem de dinheiro pressupõe, em essência, ocultar a origem ilícita de recursos por meio de operações aparentemente regulares, como bem nos ensina os juristas Bittar e Soares1 ao discorrerem que a lavagem de dinheiro "poderia ser conceituada como 'o processo em virtude do qual os bens de origem delitiva se integram no sistema legal com a aparência de terem sido obtidos de forma licita". 

Nesse cenário, a recuperação judicial - especialmente em situações de crise contábil real ou simulada - oferece um ambiente propício à entrada, circulação e reintegração de valores contaminados por práticas criminosas. Ao se valer da complexidade do processo e da dificuldade técnica de análise profunda de ativos e passivos, grupos empresariais podem estruturar fraudes sofisticadas que escapam ao olhar comum.

A lavagem de dinheiro, de acordo com a doutrina de Fonseca2, se desenrola em três fases complementares, sendo "um processo interligado para acontecer o final relativo à admissão de bens e valores decorrente de infração penal". Estas fases, segundo o mesmo doutrinador, são denominadas de Placement (colocação), layerung (ocultação ou dissimulação) e integration (integração), e quando articuladas com mecanismos empresariais e societários, as fases ganham maior complexidade e tornam a detecção do ilícito muito mais difícil.

Na colocação, o dinheiro obtido de atividades ilícitas é introduzido no mercado formal por meio de aportes em empresas, contratos fictícios, empréstimos simulados ou receitas forjadas, frequentemente utilizando companhias criadas exclusivamente para esse propósito.

Na fase de ocultação ou dissimulação, os recursos percorrem uma teia de operações destinadas a apagar seus rastros, passando por holdings, offshores, contratos entre partes relacionadas, aquisições simuladas e movimentações internacionais, especialmente em paraísos fiscais.

Por sua vez, na integração os valores retornam ao mercado com aparência de legalidade, apresentados como lucros distribuídos, investimentos em imóveis, reorganizações societárias ou negócios comerciais aparentemente legítimos.

 Essa combinação entre as etapas da lavagem e o uso planejado de estruturas empresariais representa um dos maiores desafios para a fiscalização do administrador judicial e para a perícia contábil, que precisam decifrar cada operação para expor a verdadeira origem e finalidade dos recursos, de modo a se informar ao(à) Juiz(a) que preside o procedimento de recuperação judicial a real situação da empresa e a suspeita de fraudes contábeis.

Importante destacar, sobre o tema, a doutrina de Migliari Junior3, que expõe que "na composição dos crimes falenciais/recuperacionais, todas as condutas são punidas a título de dolo, incluído o dolo eventual, não se podendo falar, em hipótese alguma, em crime culposo, pela sua simples razão de não existir".

Esse entendimento reforça que, em falências e recuperações judiciais, não há espaço para alegações de erro ou negligência, exigindo do julgador e dos órgãos de persecução penal uma análise rigorosa do comportamento do agente e a devida responsabilização criminal por suas ações.

A prática nos tem ensinado que uma das atitudes mais comuns, em situações da espécie, é a inclusão de credores fictícios no quadro geral de credores, ou seja, incluindo-se empresas que não mantiveram qualquer vínculo comercial real com a recuperanda, mas que aparecem na contabilidade como titulares de créditos vultosos, muitas vezes em nome de terceiros ligados aos próprios sócios. Ao aprovar e homologar o plano de recuperação, a Justiça reconhece tais créditos como legítimos, possibilitando que o dinheiro retorne aos seus controladores por meio de um fluxo "legalizado".

Permite-se, assim, além do retorno do dinheiro, a manipulação dos quóruns de votação, prejudicando-se os reais credores detentores de créditos legítimos, maculando-se inteiramente o procedimento.

Há também a manipulação contábil deliberada, onde ativos são superavaliados ou subavaliados conforme a conveniência do plano de soerguimento, despesas inexistentes são lançadas como forma de equilibrar balanços, e operações simuladas são documentadas com aparência de regularidade. Tudo isso cria um cenário que, à primeira vista, pode parecer coerente e tecnicamente aceitável, mas que, à luz de uma análise mais minuciosa, revela estratégias de dissimulação dolosa do patrimônio.

Nesses casos, Migliari Junior4 aponta que "a lei falencial/recuperacional foi mais específica ainda, apontando como crime a falsificação de escrituração contábil, seja ela obrigatória ou não, isto é, sendo que atualmente, pela LRE, não se fala mais em "livros obrigatórios", como de Registro de Entradas e Saídas, do Registro de Inventário, de Registro de Funcionários etc., mas, sim, em "documentos de escrituração contábil obrigatório" (art. 178, LRE), que é muito mais abrangente que a disposição primitiva".

A atuação do administrador judicial na supervisão das atividades da recuperanda, e da perícia contábil, são indispensáveis nesses casos, e um laudo realizado por um profissional mais competente pode apontar diferenças entre a realidade patrimonial da empresa e aquilo que foi declarado nos seus documentos contábeis.

Elementos como movimentações bancárias incompatíveis com os lançamentos, ausência de lastro documental para determinados créditos ou, ainda, vínculos ocultos entre credores e administradores, são indicativos claros de fraude, e sem a perícia ou uma equipe de administradores judiciais qualificada, esses elementos raramente surgem com clareza.

Outro expediente recorrente é a fragmentação societária estratégica. Várias empresas são mantidas formalmente separadas, mas operam de modo coordenado para confundir a origem dos recursos. Uma fornece insumos, outra emite notas, uma terceira aparece como credora e uma quarta movimenta os valores, tendo essa pulverização o propósito de diluir a responsabilidade e criar um labirinto jurídico que protege os reais beneficiários das operações. Trata-se de uma blindagem patrimonial montada com precisão técnica, difícil de desmontar sem uma articulação institucional.

Nesse contexto, torna-se urgente a adoção de mecanismos concretos de enfrentamento, tais como, e.g., o condicionamento da homologação de determinados planos de recuperação à apresentação de laudos de auditoria externa independente, especialmente nos casos em que houver indicativo de vínculos entre a empresa devedora e seus credores, ou a criação de sistemas de cruzamento de dados, que integrem informações fiscais, bancárias e societárias, gerando alertas automáticos para casos de incoerência contábil, fortalecendo-se, assim, os núcleos de investigação interinstitucional, com participação do Poder Judiciário, Ministério Público, COAF, Receita Federal, órgãos de fiscalização contábil e administradores judiciais capacitados.

Preservar a integridade da recuperação judicial exige mais do que boa técnica processual: exige discernimento para identificar quando um pedido de recuperação está a serviço da reestruturação legítima da empresa e quando é apenas uma fachada para proteger patrimônio oriundo de fraude, corrupção ou sonegação. O combate à lavagem de dinheiro, nesse ambiente, passa pelo encontro entre direito penal econômico, direito empresarial e contabilidade forense - e requer, antes de tudo, o compromisso ético das instituições e dos profissionais envolvidos no processo.

Quando a contabilidade se torna aliada da dissimulação, e a justiça empresarial é manipulada para legitimar o injustificável, não estamos diante de uma simples falha técnica: estamos assistindo à erosão silenciosa da confiança no sistema. O combate à lavagem de dinheiro na recuperação judicial é, acima de tudo, um dever moral das instituições, e um chamado à integridade de cada profissional envolvido.

________

1 BITTAR, Walter Barbosa. SOARES, Rafael Junior. Comentários ao pacote anticrime: Lei 13.964/2019: artigo por artigo - incluindo a rejeição dos vetos. 1ª. ed.-São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021, p. 143/144

2 FONSECA, Pedro H.C. Lavagem de dinheiro: Aspectos dogmáticos. - Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021, p. 44

3 MIGLIARI JUNIOR, Arthur. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas. Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, coordenador - São Paulo : Thomson Reuters. Brasil, 2021, p. 984

4 MIGLIARI JUNIOR, Arthur. Op. cit. p. 991/992

Juarez Arnaldo Fernandes

VIP Juarez Arnaldo Fernandes

Especialista em Direito Constitucional e Tributário, Empresarial e Recuperação de Empresas, Penal e Econômico, Contábil e Financeiro. Contador. Perito Contábil Judicial. Adm. Judicial. Parecerista.

Adriano Henrique Baptista

Adriano Henrique Baptista

Graduado em Direito pela Universidade Norte do Paraná. Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná. Ex-assessor de juiz no TJPR. Advogado e administrador judicial.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca