A tributação e fiscalização do transporte de contêineres vazios entre filiais antes e depois da reforma tributária
Transporte de contêineres vazios entre filiais não gera tributação, salvo se houver contrato autônomo e remuneração específica pelo serviço.
quarta-feira, 13 de agosto de 2025
Atualizado às 13:30
Múltiplas são as variáveis logísticas que repercutem diretamente sobre a tributação da operação transporte rodoviário de cargas. E aí reside um problema: não raro, contribuintes recolhem impostos em hipóteses nas quais sequer haveria o fato gerador da obrigação tributária, ou deixam de recolher quando legalmente obrigados para tanto.
Nessa oportunidade, concentraremos nossos esforços em definir uma operação específica: o deslocamento de contêineres vazios de uma filial para outra, localizadas em diferentes Estados ou municípios, após a efetiva entrega da carga ao destinatário final, poderia justificar a exigência de algum tributo pelo Fisco?
Iniciemos pela delimitação das premissas epistemológicas que informam e estruturam o presente estudo.
A capacidade contributiva como pressuposto de incidência tributária
É ínsita e indissociável da noção de tributação a existência de um fato que exteriorize uma grandeza econômica mensurável. Um exemplo esdrúxulo confirma essa acepção: seria absurdo tributar o fato de "ter uma mão", pois essa materialidade não evidencia um sinal de riqueza, mas tão somente uma característica inerente ao ser humano.
Todo tributo exige como antecedente lógico a ocorrência de um fato que revele capacidade contributiva do pagador, pois, do contrário, "a Constituição teria previsto apenas um critério material - ter patrimônio - e todos os tributos incidiriam independentemente dos fatos passíveis de tributação. Apenas a capacidade econômica da pessoa seria relevante".1
Por esse motivo, Paulo de Barros Carvalho ensina que o princípio da capacidade contributiva impõe ao legislador o dever de selecionar, como hipótese de incidência tributária, apenas fatos que exibam conteúdo econômico"2. Afinal, conforme pondera Maria Rita Ferragut, "a necessidade de arrecadação, por mais imperiosa que seja, não pode fazer com que a tributação, sob pena de confisco, recaia sobre riqueza inexistente"3.
Essa premissa é basilar para a presente análise, na medida em que orienta o esforço de perscrutar possíveis manifestações de riqueza suscetíveis de tributação nas operações de transporte rodoviário de cargas de contêineres vazios. Nos sequentes tópicos, passamos a examinar algumas dessas hipóteses.
O transporte de contêineres vazios entre estabelecimentos do mesmo contribuinte não enseja tributação
Hoje, as operações relativas à circulação de mercadorias são submetidas à incidência do ICMS - Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços, por força da competência tributária outorgada aos Estados-Membros e Distrito Federal no art. 155, inc. II, da Constituição da República. Com a entrada em vigor da reforma tributária (a partir de 2026!), tais operações passarão a ser alcançadas pelo IBS - Imposto sobre Bens e Serviços e pela CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços, tributos de natureza não cumulativa que terão tratamento uniforme em todo o território nacional, conforme proposto pelo novo modelo do IVA-Dual idealizado na Emenda Constitucional nº 132, de 2023.
A riqueza tributada por essa hipótese de incidência consiste no deslocamento da mercadoria no contexto de uma transação onerosa, com finalidade comercial, que implique transmissão da titularidade de uma pessoa para outra4. É o que se denota do vocábulo "operações", contido no antecedente da regra-matriz de incidência tanto do ICMS quanto do IVA-Dual. Ora, beiraria a esquizofrenia admitir uma operação econômica entre uma pessoa e ela própria, pois não é possível - ao menos não na ordem jurídica brasileira - transacionar consigo mesma.
Filiando-se a este entendimento, a jurisprudência do STF se consolidou no sentido de que o conceito de saída de mercadoria, para fins de incidência do ICMS, deve ser entendido como a circulação de mercadoria com transferência de propriedade, ou seja, a mercadoria deve deixar de integrar o patrimônio do contribuinte originário5. O mesmo entendimento é sufragado pelo STJ na súmula 166: "Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte".
Em consulta aos casos paradigmas que embasaram a edição do enunciado sumular 166 do STJ, verifica-se que, ainda que o contribuinte não esteja obrigado ao recolhimento do ICMS na operação específica, tal circunstância não o exime do dever de manter a escrituração fiscal e contábil do estabelecimento, de modo a viabilizar o exercício regular da atividade fiscalizatória pelo Fisco.6
Quanto ao IVA-Dual, andou bem o legislador ao incorporar à legislação pátria o entendimento já de há muito endossado pelos Tribunais Superiores, ao assim dispor no art. 6º, inciso II, da LC 214, de 2025:
Art. 6º O IBS e a CBS não incidem sobre: [.] II - transferência de bens entre estabelecimentos pertencentes ao mesmo contribuinte, observada a obrigatoriedade de emissão de documento fiscal eletrônico, nos termos do inciso II do § 2º do art. 60 desta LC;
Mesmo se tratando de uma hipótese de não incidência tributária - ou seja, um fato que não enseja tributação por inexistência de manifestação econômica - o legislador complementar deixou expressamente registrada a obrigação acessória do sujeito passivo de emitir documento fiscal eletrônico:
Art. 60. O sujeito passivo do IBS e da CBS, ao realizar operações com bens ou com serviços, inclusive exportações, e importações, deverá emitir documento fiscal eletrônico. [.] § 2º A obrigação de emissão de documentos fiscais eletrônicos aplica-se inclusive: II - à transferência de bens entre estabelecimentos pertencentes ao mesmo contribuinte [.].
Em comentário ao referido dispositivo legal, Hugo de Brito Machado Segundo7 esclarece que a "mesmo operações isentas ou imunes devem ser acompanhadas de documento fiscal, seja porque a inexistência da obrigação principal não dispensa o cumprimento das acessórias, como regra no Direito Tributário, seja porque o documento fiscal é necessário inclusive para que se afiram se os bens ou os serviços respectivos são efetivamente imunes, ou isentos".
Volvendo tais lições à hipótese sob análise, constata-se que a lógica subjacente ao dispositivo visa assegurar à Administração Tributária um controle mínimo quanto à veracidade da operação, de modo a garantir que o contribuinte está, de fato, apenas transferindo mercadorias entre estabelecimentos próprios - e não simulando uma circulação jurídica apta a atrair a incidência do tributo.
Dessa forma, ainda que não incida ICMS ou, futuramente, o IVA-Dual sobre a mera movimentação interna de bens dentro da mesma titularidade jurídica, permanece o dever de documentar a operação para fins de controle fiscal.
A tributação da prestação de serviços de transportes de contêineres vazios
O Poder Constituinte conferiu aos Estados e ao Distrito Federal a competência para instituírem o ICMS sobre as prestações de serviço de transporte intermunicipal ou interestadual (art. 155, inciso II, da Constituição da República). Com a promulgação da EC 132/23 e a edição da LC 214/25, essa materialidade - por se referir a uma operação que envolve a prestação de serviços - passará a ser alcançada pela incidência do IVA-Dual, nos moldes do art. 3º, inciso I, alínea "b", da nova legislação infraconstitucional.
A prestação de um serviço de transporte que tem relevância jurídico-tributária é aquela decorrente de um contrato de natureza mercantil, bilateral e onerosa, firmado entre duas ou mais partes, no qual o transportador se compromete a cumprir uma obrigação de fazer, qual seja, levar uma mercadoria do remetente até seu destinatário final.8
Registra-se que essa mesma lógica se aplica ao IVA-Dual, visto que a LC 214/25 também exige, como pressuposto de incidência, um ato mercantil de natureza onerosa, conforme deslinda Hugo de Brito Machado Segundo9:
É a operação que visa a fornecer, expressão que antecede os termos "bem" e "serviço", que delimita a incidência desse imposto a negócios, dos mais variados formatos, onerosos (em regra, sendo as exceções de duvidosa constitucionalidade e ainda assim a serem entendidas nos seus devidos termos), praticados com habitualidade, no âmbito de atividade econômica.
A questão que se coloca no presente estudo é a seguinte: há fato jurídico tributável no intervalo compreendido entre a entrega da mercadoria ao destinatário e o retorno do transportador ao ponto de origem, conduzindo o container vazio? A resposta a essa indagação exige o adequado recorte do aspecto temporal da hipótese de incidência tributária sobre serviços de transporte.
Com efeito, a legislação de regência do ICMS define como hipótese de incidência a prestação de serviço de transporte interestadual ou intermunicipal de pessoas, bens, mercadorias ou valores (art. 2º, inc. II, da LC 87/1996), sendo o momento do fato gerador fixado no início da prestação do serviço de transporte (art. 12, inc. V) ou do ato final do transporte iniciado no exterior (art. 12, inc. VI). Essas regras são reproduzidas pelo art. 10, §1º, inc. I e II, da LC 214, de 2025, que trata sobre o IVA-Dual.
Ora, após a entrega da mercadoria, haveria um segundo ou residual momento apto a gerar nova incidência tributária, correspondente ao retorno do container vazio?
Tratando-se de hipótese na qual o contribuinte realiza o transporte com meios próprios, vale dizer, com caminhão próprio e sem contratação de transportador autônomo ou empresa de logística, a resposta nos soa óbvia: não há, aqui, prestação onerosa de serviço que justifique a incidência do ICMS-transporte ou IVA-Dual, tratando-se de um típico caso em que o Fisco pretenderia impor a exação contra um "negócio jurídico consigo mesmo" - o que é inviável à luz do princípio da capacidade contributiva.
O cenário muda quando a prestação de transporte seja onerosa? Também nos parece que não. Nessa hipótese, consuma-se o fato gerador do ICMS-transporte (ou do IVA-Dual, quando implementado), no início da execução da prestação, a qual se encerra com a restituição do container no estabelecimento do contratante. Trata-se, portanto, de um único fato jurígeno, sendo inadmissível uma nova tributação sem que o ente arrecadador incorra em bis in idem.
Se o container é do contratante, por óbvio que o contrato de transporte compreende a obrigação de restituir este item após a entrega da carga. Não se trata de um "novo fato gerador", mas de providência inerente ao contrato originário.
O contra-argumento poderia consistir na utilização - com suporte no art. 109 do CTN - do conceito previsto na lei federal 11.442, de 2007, que dispõe sobre o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros. Nela, é previsto que, pelo contrato de transporte, o transportador fica responsável pelo período compreendido entre o momento do recebimento da carga e o de sua entrega ao destinatário (art. 9º, caput). Ou seja, o serviço de transporte se consumaria com a entrega da carga, e não com a devolução do container ao contratante.
Esse não nos parece refletir, no entanto, o melhor conceito de "transporte" adotado pelo texto constitucional. O momento do fato gerador do ICMS-transporte, como visto, está atrelado à prestação do serviço em sua integralidade, o que, no mundo dos fatos, pode incluir a restituição do container vazio. Ademais, admitir que a legislação infraconstitucional defina um conceito constitucional é subverter a estrutura escalonada do ordenamento jurídico brasileiro, no qual a Constituição ocupa a posição de mais alta hierarquia.
Sobre o tema, são as lições de Hugo de Brito Machado Segundo10:
[.] o legislador não é livre para brincar com as palavras, definindo-as como lhe aprouver, como se inexistissem limites ou constrições impostas pelo contexto em que empregada a palavra, e pelos usos anteriores que a ela se deram, em contextos iguais ou semelhantes. Do contrário, não só a supremacia constitucional e a própria ideia de hierarquia normativa tornar-se-iam concepções vazias de qualquer sentido, mas a própria comunicação humana seria impossível.
Assim, para que se configure nova hipótese de incidência tributária, é necessário que o retorno do container seja objeto de frete próprio. Na ausência de contraprestação autônoma, a obrigação de devolução do container não pode configurar fato gerador tributável. Caso o retorno seja objeto de contrato autônomo, então sim: haverá nova prestação, com novo fato gerador e incidência tributária específica.
Jurisprudência Administrativa
A Secretaria da Fazenda do Estado de Santa Catarina, na solução de consulta 83/01, já esclareceu que o transporte de contêiner vazio até o local de embarque configura mera etapa preparatória da prestação principal - o transporte da mercadoria - não sendo, por si só, fato gerador do ICMS. Segundo o entendimento, a transportadora é contratada para transportar a carga, não o contêiner em si, de modo que a movimentação prévia do contêiner vazio não caracteriza prestação de serviço tributável, salvo se houver contrato específico com esse objeto.
Situação diversa foi analisada na solução de consulta 17343/18, da SEFAZ/SP. Nesse caso, o contribuinte cobrava frete tanto pelo transporte da mercadoria quanto pelo retorno do contêiner vazio ao local indicado pelo tomador. Diante disso, a Administração entendeu que o transporte interestadual ou intermunicipal de contêiner vazio, quando realizado por encomenda de terceiro e mediante cobrança, configura efetiva prestação de serviço sujeita ao ICMS.
Conclusão
Pelo exposto, entendemos que apenas haverá fato gerador entre a entrega da mercadoria e o retorno do container vazio se este retorno for objeto de contratação e de remuneração, expressa ou implícita, como parte da prestação de transporte originalmente avençada. Do contrário, tem-se uma hipótese de não incidência tributária, que, no entanto, não escusa o sujeito passivo de cumprir com suas obrigações acessórias, em consonância com os regulamentos de ICMS de cada Estado e do Distrito Federal, bem como do vindouro Regulamento do IVA-Dual, até o momento não editado.
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1 FERRAGUT, Maria Rita. Responsabilidade tributária e o Código Civil de 2002. São Paulo: Noeses. p. 45-46.
2 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. 8ª ed. São Paulo: Noeses, 2021, p. 342.
3 FERRAGUT, Maria Rita. Presunções no Direito Tributário. 2 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 176.
4 Carrazza Roque Antonio. ICMS, 10ª ed., São Paulo: Malheiros, p. 36-37.
5 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula 573. Disponível em: https://l1nq.com/Ft6fL Acesso Em: 23 jul. 2025.
6 Ver: Resp nº 9.933-SP (91.00067660). Disponível em: https://l1nq.com/RcCR7
7 SEGUNDO, Hugo de Brito Machado. Lei Complementar 214/2025 comentada: IBS, CBS e IS. 1º Ed. São Paulo: Atlas Jurídico, 2025. p. 85.
8 MELO José Eduardo Soares de. PAULSEN, Leandro. Impostos Federais, Estaduais e Municipais. 13. ed. - Rio de Janeiro: Saraiva Jur., 2025, p. 279.
9 Op. cit, p. 5.
10 Op. cit, p. 5.
Adriel Mafra Limas
Advogado. Sócio do Instituto Catarinense de Planejamento Patrimonial e Sucessório (ICPPS). Pós-graduando em Direito Tributário (IBET).
Laudelino João da Veiga Netto
Advogado. Sócio do Instituto Catarinense de Planejamento Patrimonial e Sucessório (ICPPS). Sócio do JVLN Advogados Associados. Mestre em Ciência Jurídica (UNIVALI). Especialista em Direito Tributário (FGV). Especialista em Direito Imobiliário (CESUSC). Pós-graduando em Planejamento Patrimonial e Sucessório (FGV).
Lucas Corrêa Cugnier Machado
Advogado. Pós-graduado em Direito Tributário (PUC-Minas). Pós-graduando em Direito Processual Civil (Univali).




