A inconstitucionalidade parcial do art. 19 do marco civil da internet
Análise da decisão do STF que flexibilizou o art. 19 do marco civil da internet, equilibrando liberdade de expressão e proteção de direitos fundamentais no ambiente digital brasileiro.
sábado, 13 de setembro de 2025
Atualizado em 12 de setembro de 2025 09:58
1. Introdução
A evolução tecnológica e a crescente centralidade das plataformas digitais na mediação das relações sociais, econômicas e políticas colocaram em evidência, nas últimas décadas, um conjunto de questões jurídicas complexas, sobretudo no que tange à responsabilidade civil por conteúdos gerados por terceiros. No Brasil, a lei 12.965/14, o denominado marco civil da internet, constituiu marco normativo inaugural na sistematização de princípios, garantias e deveres aplicáveis à rede mundial de computadores, tendo no seu art. 19 um dos dispositivos mais debatidos, ao condicionar a responsabilização do provedor de aplicações de internet ao descumprimento de ordem judicial específica de remoção.
Esse modelo, concebido sob a justificativa de proteger a liberdade de expressão contra riscos de censura privada, estabeleceu uma barreira procedimental robusta à exclusão de conteúdos, transferindo ao Poder Judiciário a prerrogativa exclusiva de determinar a retirada de material ilícito. Contudo, a experiência prática evidenciou tensões entre essa blindagem normativa e a efetividade da tutela de outros direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, a proteção da honra e da imagem, a integridade psíquica e física, e a preservação do processo democrático contra práticas de desinformação massiva.
O STF, no julgamento concluído em 26/6/25, ao declarar a inconstitucionalidade parcial do art. 19, promoveu relevante inflexão interpretativa ao admitir que, em hipóteses específicas, a responsabilidade civil das plataformas decorra da omissão em remover conteúdo manifestamente ilícito após notificação inequívoca, mesmo que ausente ordem judicial prévia. Essa decisão, inspirada em elementos do modelo de notice and take down, buscou reequilibrar a ponderação entre liberdade de expressão e proteção de outros bens jurídicos de igual hierarquia constitucional.
O presente estudo tem por objetivo examinar, à luz dos fundamentos constitucionais e dos elementos constantes da decisão do STF, as implicações dessa mudança de paradigma para o ordenamento jurídico brasileiro e para a atuação dos diversos atores envolvidos - plataformas, influenciadores, anunciantes e veículos de mídia -, bem como identificar os desafios de harmonização legislativa e regulatória e as perspectivas de adequação empresarial às novas balizas. Adotar-se-á abordagem que conjuga análise normativa, exame da evolução jurisprudencial e avaliação crítica dos impactos sociais e econômicos da medida, em consonância com o método e a linguagem próprios da doutrina constitucional.
2. A decisão do STF e a reconfiguração do art. 19 do marco civil da internet
2.1 Contexto normativo e evolução legislativa
A disciplina jurídica da responsabilidade civil das plataformas digitais, no ordenamento brasileiro, tem como marco fundamental o advento da lei 12.965, de 23/4/14, denominada MCI - Marco Civil da Internet, diploma que consolidou princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, estabelecendo, ademais, diretrizes para a atuação estatal no setor. Entre as inovações normativas então introduzidas, destacou-se o art. 19, cujo conteúdo estabeleceu que o provedor de aplicações de internet somente poderia ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomasse as providências para tornar indisponível o material apontado como ilícito.
Tal disposição foi concebida, à época, como mecanismo protetivo à liberdade de expressão, evitando que os provedores, temendo litígios, promovessem remoções preventivas e indiscriminadas - o chamado chilling effect. Na essência, consagrou-se um modelo de responsabilização subsidiária e condicionada, de nítido caráter judicialista, em contraste com sistemas estrangeiros que adotam a lógica de notice and take down, em que a comunicação extrajudicial suficiente e clara impõe ao provedor o dever de agir diligentemente sob pena de responsabilização.
O regime estabelecido pelo art. 19, contudo, não permaneceu imune a críticas doutrinárias e pressões sociais. Diversos setores, especialmente ligados à proteção de direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana, a proteção da infância e da adolescência, e a preservação da integridade do processo democrático, apontaram que o modelo excessivamente dependente de decisão judicial criava barreiras para a tutela célere de situações de dano irreparável ou de risco iminente.
A jurisprudência, por sua vez, começou a enfrentar casos-limite, nos quais a exigência formal de ordem judicial específica revelava-se incompatível com a gravidade da ofensa e a urgência da resposta, notadamente em situações envolvendo discurso de ódio, desinformação massiva e violações de direitos da personalidade. Essa tensão entre o texto legal e as demandas concretas do ambiente digital contemporâneo, marcado pela instantaneidade e pelo alcance exponencial das comunicações, acabou por alimentar o debate sobre a necessidade de revisão do modelo normativo.
Foi nesse cenário que o STF, no julgamento concluído em 26/6/25, procedeu à declaração de inconstitucionalidade parcial do art. 19 do MCI, reconhecendo que, em determinadas hipóteses, a responsabilização do provedor pode decorrer da omissão em remover conteúdo ilícito após notificação inequívoca, ainda que não precedida de ordem judicial. Com isso, operou-se relevante inflexão na trajetória legislativa e interpretativa do dispositivo, deslocando-se, ao menos em parte, o eixo de proteção do provedor para a tutela direta e imediata dos direitos fundamentais em conflito no espaço virtual.
2.2 A "blindagem" anterior e seu alcance jurisprudencial
O art. 19 do marco civil da internet, em sua redação original, foi concebido como cláusula de contenção da responsabilidade civil dos provedores de aplicações, estabelecendo verdadeira "blindagem" contra imputações diretas por conteúdos gerados por terceiros. Tal blindagem decorria da exigência de prévia ordem judicial específica para que se configurasse o dever de remoção e, por consequência, a responsabilização. Nessa configuração, a atuação do provedor permanecia, por assim dizer, em estado de neutralidade jurídica até a provocação jurisdicional, não sendo suficiente, para deflagrar sua obrigação de agir, qualquer comunicação extrajudicial, por mais precisa e documentada que fosse.
O fundamento declarado dessa solução normativa residia na preservação da liberdade de expressão como valor constitucional primário, bem como na intenção de evitar que provedores assumissem função de censores privados, submetendo a circulação de ideias e manifestações a filtros unilaterais, marcados pela insegurança jurídica e pelo risco de supressão indevida de conteúdos lícitos. A jurisprudência dos tribunais superiores, em especial do STJ, aderiu a essa leitura, consolidando, em diversos precedentes, a orientação segundo a qual somente o descumprimento de ordem judicial clara e específica poderia gerar responsabilidade indenizatória para a plataforma.
O alcance dessa blindagem jurisprudencial manifestava-se, pois, em três dimensões distintas: i) a exigência de ordem judicial nominando com precisão o conteúdo a ser removido, vedadas indicações genéricas; ii) a impossibilidade de responsabilização por omissão fundada apenas em notificações privadas ou informes administrativos, ainda que detalhados; e iii) a desconsideração, para fins de responsabilidade civil, de alegações de danos ocorridos no intervalo entre a ciência extrajudicial e a decisão judicial.
Esse entendimento, embora coerente com a literalidade do art. 19 e com a matriz liberal que o inspirou, revelava-se insuficiente diante da dinâmica dos danos digitais, nos quais a velocidade de disseminação e o potencial lesivo de certas publicações inviabilizam a espera por uma tutela jurisdicional definitiva. A consequência prática era a manutenção, no ambiente virtual, de conteúdos notoriamente ilícitos por lapsos de tempo suficientes para consolidar efeitos danosos de grande magnitude, especialmente em contextos de ofensa à honra, violação de direitos da criança e do adolescente, e propagação massiva de desinformação.
Assim, a "blindagem" conferida pelo modelo original, robustecida pela interpretação jurisprudencial predominante, acabou por gerar, na percepção social e doutrinária, uma assimetria: se, por um lado, reduzia o risco de supressão indevida da liberdade de expressão, por outro, comprometia a efetividade da tutela de outros direitos fundamentais igualmente protegidos pela Constituição, impondo ao lesado o ônus de suportar, até a ordem judicial, a continuidade da violação em ambiente de alta exposição pública. Essa tensão constituiu o pano de fundo sobre o qual o STF viria a intervir, redesenhando os contornos da responsabilidade civil dos provedores em seu julgamento de 2025.
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Paulo Vitor Faria da Encarnação
Mestre em Direito Processual. UFES. [email protected]. Advogado. OAB/ES 33.819. Santos Faria Sociedade de Advogados.


