Reajustes em planos de saúde
Artigo analisa reajustes em planos de saúde, destacando limites legais, abusividade e proteção do consumidor à luz do CDC, Estatuto do Idoso e jurisprudência.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2025
Atualizado às 16:44
1. Introdução
O tema dos reajustes em planos privados de assistência à saúde tem se projetado, nos últimos anos, como um dos pontos mais controversos e sensíveis do direito do consumidor e do direito constitucional à saúde. Trata-se de matéria que não se limita ao campo estrito da autonomia contratual, mas que dialoga diretamente com a concretização de direitos fundamentais, em especial a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, CF/1988) e o direito social à saúde (arts. 6.º e 196, CF/1988).
O debate se intensifica diante da constatação de que, em muitos casos, os reajustes aplicados por operadoras de planos de saúde - sobretudo aqueles decorrentes da mudança de faixa etária - resultam em percentuais elevados, aptos a inviabilizar a continuidade da cobertura assistencial para idosos e pessoas em situação de maior vulnerabilidade. A consequência prática é o afastamento indireto desses consumidores do acesso à saúde suplementar, justamente no momento em que dela mais necessitam.
O legislador buscou enfrentar o problema por meio da edição da lei 9.656/1998, que regula os planos e seguros privados de assistência à saúde, e, posteriormente, com a promulgação do Estatuto do Idoso (lei 10.741/03), que vedou, em seu art. 15, § 3.º, a discriminação etária pela cobrança de valores diferenciados. A ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar, por sua vez, editou resoluções normativas que fixam critérios objetivos para os reajustes por faixa etária e para a limitação dos percentuais aplicáveis.
Não obstante, a experiência forense revela que tais instrumentos normativos não foram suficientes para coibir práticas abusivas. A questão tem chegado reiteradamente ao Poder Judiciário, que se viu compelido a estabelecer balizas mais rigorosas para a legalidade dos reajustes. O STJ, ao firmar as teses dos Temas 952 e 1.016, consolidou o entendimento de que a validade de tais reajustes depende da conjugação entre previsão contratual clara, observância das normas regulatórias e proporcionalidade atuarial.
A doutrina especializada igualmente enfatiza que o contrato de saúde suplementar não pode ser interpretado apenas sob a ótica privatista, mas deve ser concebido como um verdadeiro ponto de encontro de direitos fundamentais, exigindo do intérprete e do julgador uma postura hermenêutica que assegure a máxima proteção ao consumidor.
Neste artigo, busca-se examinar a moldura normativa, doutrinária e jurisprudencial dos reajustes em planos de saúde, evidenciando os critérios de legalidade e os elementos de abusividade, bem como as consequências jurídicas da declaração de nulidade dessas cláusulas, com destaque para a restituição dos valores pagos indevidamente. O estudo pretende, assim, contribuir para a consolidação de uma leitura constitucionalmente adequada das relações de consumo em saúde suplementar.
2. A disciplina jurídica dos reajustes em planos de saúde
2.1 A moldura normativa: Lei 9.656/1998, Estatuto do Idoso e resoluções da ANS
A compreensão jurídica dos reajustes em planos privados de assistência à saúde exige a reconstrução da moldura normativa que os disciplina, revelando uma tessitura complexa na qual se entrelaçam normas de direito civil, consumerista e constitucional. Desde a edição da lei 9.656, de 3 de junho de 1998, inaugurou-se no Brasil um microssistema regulatório destinado a disciplinar a atividade das operadoras de planos e seguros de saúde, impondo-lhes limites quanto à formação dos preços, às hipóteses de variação de contraprestações e à necessidade de autorização prévia pela ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar. A legislação estabeleceu, em seu art. 15, que a variação das mensalidades por motivo etário só se justificaria se previstas no contrato as respectivas faixas etárias e os percentuais aplicáveis, e desde que obedecidas as normas técnicas emanadas da ANS.
A novel disciplina não poderia, contudo, ignorar o marco constitucional de 1988, no qual se insere a saúde como direito social fundamental (art. 6.º da CF/1988) e como dever do Estado (art. 196 da CF/1988), impondo-se a todos os entes federativos e também à iniciativa privada o dever de assegurar o acesso digno e igualitário aos serviços de assistência. A Constituição, ao mesmo tempo em que legitima a atuação complementar da iniciativa privada no setor da saúde, fixa limites claros a essa atuação, de modo a impedir a mercantilização absoluta de um bem jurídico existencial.
A promulgação do Estatuto do Idoso (lei 10.741/03) introduziu parâmetro adicional de tutela, vedando expressamente, em seu art. 15, § 3.º, a discriminação de idosos nos planos de saúde "pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade". Este comando normativo, dotado de eficácia imediata e de caráter protetivo, impôs às operadoras uma barreira intransponível à adoção de reajustes desproporcionais ou impeditivos da permanência do idoso no contrato. A interpretação que o STJ veio a consolidar, especialmente no julgamento do REsp 1.568.244/RJ (Tema 952), é no sentido de que, embora seja admissível a variação de contraprestações por mudança de faixa etária, tal admissibilidade encontra limite infranqueável nos princípios da razoabilidade, da boa-fé objetiva e da especial proteção ao idoso.1
No plano infralegal, as resoluções da ANS assumem função normativa decisiva. A resolução CONSU 6/1998 fixou, para os contratos firmados após sua vigência, sete faixas etárias, impondo a limitação de que a última não poderia superar seis vezes o valor da primeira. Posteriormente, a RN 63/03 ampliou o número para dez faixas, estabelecendo como última aquela a partir dos 59 anos, em consonância com o Estatuto do Idoso, e determinando que a variação acumulada entre a sétima e a décima não poderia ultrapassar a variação acumulada entre a primeira e a sétima. Mais recentemente, a RN 563/22 reafirmou esses parâmetros, com o objetivo de garantir transparência e proporcionalidade.
Esse conjunto de normas revela um movimento de progressiva densificação da proteção jurídica contra reajustes abusivos, movimento que deve ser lido em chave constitucional: a livre iniciativa das operadoras não se exerce em campo absoluto, mas está submetida aos direitos fundamentais dos consumidores, em especial ao direito à saúde e à dignidade da pessoa humana. Como ensina Sérgio Cavalieri Filho, "reajustes por faixa etária após 2004 devem observar critérios de proporcionalidade e não discriminação, considerando o Estatuto do Idoso".2
A moldura normativa, portanto, delineia um duplo comando: de um lado, assegura a necessária sustentabilidade econômico-financeira das operadoras; de outro, veda práticas que inviabilizem a permanência do consumidor, sobretudo idoso, nos contratos de saúde suplementar. É nesse equilíbrio que se situa o debate sobre a legalidade e a abusividade dos reajustes.
2.2 A incidência do CDC e o caráter de ordem pública das normas protetivas
A disciplina dos reajustes em planos de saúde não pode ser compreendida sem a referência direta ao CDC, verdadeiro microssistema jurídico que confere concretude ao mandamento constitucional de tutela especial ao consumidor (art. 5.º, XXXII, e art. 170, V, da CF/1988). Desde a ADIn 2.591, o STF reconheceu a plena aplicabilidade do CDC às instituições financeiras e, por extensão, às relações contratuais de consumo em saúde suplementar, consagrando a ideia de que os contratos celebrados entre fornecedores e consumidores são permeados por normas de ordem pública, inderrogáveis pela vontade privada.
O art. 51 do CDC explicita o rol de cláusulas abusivas, entre as quais se insere qualquer estipulação que coloque o consumidor em desvantagem exagerada ou permita ao fornecedor a variação unilateral de preços. A doutrina tem realçado que tais cláusulas não são apenas anuláveis, mas nulas de pleno direito, expressão de nulidade absoluta, cuja apreciação se impõe inclusive ex officio pelo julgador. Nesse sentido, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery sustentam: "é imperativo que os reajustes aplicados em contratos de planos de saúde sejam sempre justificados e proporcionais, respeitando o equilíbrio contratual e a proteção do consumidor".3
A jurisprudência do STJ ecoa tal construção, ao decidir reiteradamente que a abusividade de reajustes pode ser reconhecida pelo Judiciário sempre que houver ausência de justificativa atuarial idônea, aplicação de índices não autorizados pela ANS ou desrespeito ao Estatuto do Idoso. Exemplo emblemático encontra-se no REsp 1.682.197/PR, em que se reafirmou que o reajuste por faixa etária deve observar os critérios da boa-fé, da razoabilidade e da proporcionalidade, sob pena de nulidade da cláusula contratual.4
O caráter de ordem pública do CDC manifesta-se também no dever de informação e na exigência de transparência, ambos princípios estruturantes das relações de consumo (arts. 6.º, III, e 46 do CDC). A ausência de clareza ou de critérios objetivos para o reajuste configura violação a tais deveres, reforçando a presunção de abusividade. Cláudia Lima Marques, ao desenvolver sua "nova teoria contratual", destaca que os contratos de consumo são "ponto de encontro de direitos fundamentais", razão pela qual a liberdade contratual do fornecedor se vê limitada pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.5
Assim, a incidência do CDC não é uma escolha hermenêutica, mas uma imposição normativa e constitucional. Qualquer tentativa de afastar sua aplicação, sob o argumento da liberdade de contratar ou da autonomia privada, revela-se ilegítima, pois colide com a proteção da parte mais vulnerável da relação contratual. Em consequência, a revisão judicial de cláusulas abusivas, ainda que em contratos coletivos, é expressão do próprio princípio da igualdade material e da vedação ao abuso de direito.
2.3 Jurisprudência do STJ e dos tribunais estaduais sobre a legalidade e abusividade dos reajustes
A jurisprudência brasileira, em especial a do STJ, consolidou parâmetros decisivos para a aferição da legalidade e da abusividade dos reajustes em planos de saúde, seja nos contratos individuais e familiares, seja nos coletivos. O marco fundamental está no julgamento do REsp 1.568.244/RJ (Tema 952), em que a 2ª Seção do STJ, sob a sistemática dos recursos repetitivos, fixou a tese de que o reajuste por mudança de faixa etária é válido desde que preenchidos três requisitos: (i) previsão contratual expressa, (ii) observância das normas expedidas pelos órgãos reguladores, e (iii) ausência de percentuais desarrazoados ou aleatórios, sem base atuarial idônea, que onerem excessivamente o consumidor ou discriminem o idoso6. Tal decisão passou a orientar não apenas os contratos individuais e familiares, mas também, de modo mediato, a interpretação dos reajustes em contratos coletivos.
Posteriormente, o Tema 1.016 do STJ, relativo à validade de cláusulas de reajuste em planos coletivos, reafirmou a exigência de demonstração de base atuarial consistente, impondo às operadoras o ônus de provar a necessidade dos índices aplicados, sob pena de reconhecimento da abusividade. A jurisprudência da Corte tem destacado que a transparência e a razoabilidade constituem pressupostos inafastáveis do equilíbrio contratual.
No âmbito dos tribunais estaduais, o panorama confirma a orientação do STJ, mas revela também a pluralidade de contextos em que a abusividade é constatada. O TJ/SP, por exemplo, tem reiteradamente afastado reajustes por faixa etária aplicados sem justificativa atuarial ou em percentuais superiores aos autorizados pela ANS, determinando a devolução dos valores pagos a maior. Em acórdão relatado pelo desembargador Mário Antônio de Oliveira, decidiu-se que reajustes desproporcionais aos 59 anos configuram prática abusiva e devem ser revisados judicialmente7.
O TJ/MG reconheceu a abusividade de reajuste de 124,84%, suspendendo sua cobrança por ausência de base atuarial, em consonância com o entendimento do STJ de que aumentos desarrazoados, sem comprovação técnica, violam a boa-fé objetiva e a função social do contrato8. O TJ/RS, por sua vez, anulou reajustes que contrariavam o Estatuto do Idoso, ressaltando que tais práticas implicam discriminação vedada pelo art. 15, § 3.º, da lei 10.741/039.
Mesmo em situações envolvendo contratos antigos não adaptados, a jurisprudência tem reconhecido que a abusividade deve ser examinada à luz da legislação consumerista e constitucional. Ainda que haja previsão contratual, não se admite aumento que funcione como cláusula de barreira, afastando o idoso da manutenção do vínculo por impossibilidade financeira. O TJ/RJ, em decisão paradigmática, declarou abusivo reajuste de aproximadamente 50%, impondo à operadora a devolução em dobro dos valores pagos e reconhecendo dano moral in re ipsa10.
Esse conjunto de precedentes demonstra a firme orientação dos tribunais no sentido de que a legalidade dos reajustes não se presume: deve ser demonstrada, caso a caso, por meio de justificativa técnica transparente e compatível com os parâmetros normativos e constitucionais. Em suma, o controle judicial sobre os reajustes se legitima como instrumento de concretização da dignidade do consumidor, especialmente idoso, e da efetividade do direito fundamental à saúde.
2.4 A dimensão constitucional da proteção: dignidade da pessoa humana e direito fundamental à saúde
A questão dos reajustes em planos de saúde não pode ser examinada apenas sob o prisma infralegal ou contratual. Trata-se, em verdade, de problema de envergadura constitucional, cuja solução demanda a invocação direta dos princípios estruturantes da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, CF/1988) e do direito fundamental à saúde (arts. 6.º e 196, CF/1988).
Com efeito, a saúde foi erigida a direito social fundamental, garantido a todos e dever do Estado, sendo possível a atuação da iniciativa privada apenas em caráter complementar. Daí porque a disciplina dos planos de saúde não pode ser reduzida a um mercado comum de consumo, mas deve ser lida como prestação que envolve o acesso a bem jurídico existencial e condição de realização da própria dignidade. Como afirma Cláudia Lima Marques, os contratos de consumo - e de forma ainda mais acentuada os contratos de saúde suplementar - constituem "ponto de encontro de direitos fundamentais", espaço no qual a autonomia privada encontra limites no valor maior da proteção da vida e da integridade do consumidor11.
A jurisprudência do STF reconhece, nesse sentido, que cláusulas contratuais que preveem aumentos desproporcionais a idosos violam diretamente a Constituição. No ARE 1.437.618 AgR, a 1ª turma, sob relatoria da ministra Cármen Lúcia, assentou que são abusivos os reajustes que resultam na expulsão indireta do consumidor idoso do plano, por afronta ao art. 15, § 3.º, do Estatuto do Idoso e ao princípio da dignidade da pessoa humana12. O STJ, por sua vez, tem reforçado que a proporcionalidade e a razoabilidade são critérios constitucionais de controle, não apenas contratuais, dos reajustes13.
A doutrina confirma essa leitura. Sérgio Cavalieri Filho observa que, ao fixar como última faixa etária os 59 anos, a RN 63/03 da ANS harmoniza-se com o Estatuto do Idoso, de modo a impedir qualquer cláusula que funcione como discriminação etária e que, na prática, negue o direito fundamental à saúde ao consumidor idoso14. Cláudia Lima Marques, por sua vez, sublinha que os contratos de saúde suplementar devem ser interpretados conforme a Constituição, impondo-se a máxima proteção ao consumidor, vulnerável por excelência, sob pena de esvaziar-se o comando do art. 5.º, XXXII, da CF/198815.
O controle judicial dos reajustes, portanto, não se limita a aferir legalidade contratual ou adequação atuarial: é um verdadeiro controle de constitucionalidade difuso, voltado a preservar a efetividade dos direitos fundamentais na esfera privada. Essa é a razão pela qual os tribunais têm reiteradamente declarado abusivos aumentos que, ainda que previstos contratualmente, violam a dignidade da pessoa humana por tornarem inviável a permanência do consumidor no contrato.
Em suma, a dimensão constitucional da proteção ressignifica a própria lógica contratual: não se trata apenas de preservar o equilíbrio econômico-financeiro da operadora, mas, sobretudo, de assegurar que o contrato de saúde cumpra sua função social, garantindo ao consumidor acesso contínuo e digno a serviços essenciais à preservação da vida.
2.5 O controle judicial dos reajustes por faixa etária e a restituição de valores pagos indevidamente
O exame da legalidade dos reajustes por faixa etária em planos de saúde não se encerra na previsão contratual ou na autorização administrativa. Cabe ao Poder Judiciário o papel de fiscalizador último da proporcionalidade e da razoabilidade desses aumentos, sob pena de admitir-se, pela via privada, a exclusão de consumidores - especialmente idosos - do acesso à saúde suplementar.
O STJ, ao julgar o REsp 1.568.244/RJ (Tema 952), delineou parâmetros claros para o controle judicial: o reajuste é válido apenas quando (i) previsto expressamente em contrato, (ii) em conformidade com as normas expedidas pela ANS, e (iii) não configurando percentuais abusivos, aleatórios ou desprovidos de base atuarial idônea16. Tal entendimento consolidou-se como critério vinculante, impondo ao juiz de primeiro grau o dever de aferir a compatibilidade entre os índices aplicados e a realidade atuarial demonstrada pelas operadoras.
O desrespeito a esses parâmetros tem levado à declaração de nulidade das cláusulas abusivas e, em consequência, à restituição dos valores pagos indevidamente. A restituição, em regra, ocorre de forma simples, acrescida de correção monetária e juros legais, observada a prescrição trienal (art. 206, § 3.º, IV, CC). Todavia, em hipóteses de má-fé inequívoca da operadora, tem-se admitido a repetição em dobro, como decidiu o TJ/RJ ao reconhecer o caráter abusivo de reajuste de aproximadamente 50%, determinando a devolução em dobro dos valores pagos e fixando indenização por dano moral17.
O TJ/SP igualmente tem reiterado que reajustes acima dos índices autorizados pela ANS configuram prática abusiva, impondo às operadoras o dever de restituir os valores excedentes18. O TJ/DFT já reconheceu expressamente a devolução de quantias cobradas a maior em razão de reajustes sem base atuarial, reafirmando que a simples previsão contratual não basta para legitimar aumentos desarrazoados19. O TJ/MG, em precedente paradigmático, suspendeu reajuste de 124,84% e determinou a devolução das diferenças, destacando que a ausência de cálculos atuariais inviabiliza a legalidade da cobrança20.
Do ponto de vista doutrinário, a restituição dos valores pagos indevidamente é manifestação direta do princípio do equilíbrio contratual, que, no campo das relações de consumo, se desdobra em favor da vulnerabilidade do consumidor. Cláudia Lima Marques observa que o direito à repetição do indébito, ainda que limitado por prazos prescricionais, constitui instrumento de realização concreta da função social do contrato e da proteção constitucional do consumidor21.
Assim, a intervenção judicial, longe de representar violação à autonomia privada, realiza o próprio mandamento constitucional de tutela do consumidor, assegurando não apenas a continuidade do contrato em bases equitativas, mas também a restituição das quantias pagas indevidamente. Dessa forma, o Judiciário atua como instância garantidora da efetividade dos direitos fundamentais na esfera privada, impedindo que reajustes abusivos esvaziem o direito fundamental à saúde.
3. Considerações finais
A análise empreendida evidencia que os reajustes em planos de saúde se situam no ponto de encontro entre a autonomia contratual das operadoras e a tutela constitucional da dignidade da pessoa humana e do direito fundamental à saúde. A legislação infraconstitucional - notadamente a lei 9.656/1998, o Estatuto do Idoso e as resoluções da ANS - estabelece limites objetivos à variação das mensalidades, mas é a aplicação conjugada do CDC que confere plena efetividade a esses parâmetros, erigindo-os à condição de normas de ordem pública, inderrogáveis pela vontade privada.
A jurisprudência do STJ, especialmente por meio dos Temas 952 e 1.016, consolidou critérios claros para aferir a validade dos reajustes: previsão contratual, respeito às normas regulatórias e proporcionalidade atuarial. A jurisprudência dos tribunais estaduais confirma essa orientação, intervindo sempre que se constate abusividade, seja pela ausência de justificativa técnica, seja pela imposição de percentuais que, na prática, inviabilizem a permanência do consumidor - sobretudo o idoso - no contrato.
A dimensão constitucional da problemática torna inequívoco que os reajustes não podem ser concebidos como simples cláusulas econômicas de mercado. Ao contrário, envolvem diretamente a realização de direitos fundamentais, impondo-se ao Judiciário o dever de controlar sua legitimidade. Em casos de abusividade, a restituição de valores pagos indevidamente não apenas recompõe o equilíbrio contratual, mas reafirma a função social do contrato de assistência à saúde como instrumento de proteção da vida e da integridade do consumidor.
Em conclusão, a moldura normativa e jurisprudencial traça uma linha de proteção rigorosa ao consumidor, com especial ênfase ao idoso, consolidando a compreensão de que a saúde não pode ser mercantilizada a ponto de sacrificar a dignidade da pessoa humana. Os reajustes, embora necessários para a sustentabilidade do sistema, devem ser compatíveis com a boa-fé objetiva, a proporcionalidade e o equilíbrio contratual. Nesse equilíbrio reside a legitimidade da atuação privada em um setor de relevância pública, cuja finalidade última é assegurar o direito à saúde em bases justas e razoáveis.
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Referências
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1 STJ, REsp 1.568.244/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, julgado em 14 dez. 2016, DJe 19 dez. 2016.
2 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2023. p. 321.
3 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Defesa do Consumidor Comentado. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 355.
4 STJ, REsp 1.682.197/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10 dez. 2019, DJe 2 jan. 2020.
5 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024. p. 435.
6 STJ, REsp 1.568.244/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, julgado em 14 dez. 2016, DJe 19 dez. 2016.
7 TJSP, Apelação n.º 1001572-48.2018.8.26.0100, Rel. Des. Mário Antônio de Oliveira, j. 20 maio 2021, pub. 9 jun. 2021.
8 TJMG, Agravo de Instrumento, 14.ª Câmara Cível, Rel. Des. Cláudia Maia, j. 29 mar. 2021.
9 TJRS, Apelação Cível n.º 3456789-01.2023.8.21.0001, Rel. Des. José Aquino Flores de Camargo, j. 20 set. 2023, pub. 10 out. 2023.
10 TJRJ, Apelação Cível n.º 0059317-28.2017.8.19.0001, Rel. Des. Gilberto Clóvis Farias Matos, pub. 29 abr. 2022.
11 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024. p. 435.
12 STF, ARE 1.437.618 AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, 1.ª Turma, j. 25 set. 2023, DJe 26 set. 2023.
13 STJ, REsp 1.682.197/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4.ª Turma, j. 10 dez. 2019, DJe 2 jan. 2020.
14 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2023. p. 321.
15 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. cit., p. 435.
16 STJ, REsp 1.568.244/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, j. 14 dez. 2016, DJe 19 dez. 2016.
17 TJRJ, Apelação Cível n.º 0059317-28.2017.8.19.0001, Rel. Des. Gilberto Clóvis Farias Matos, pub. 29 abr. 2022.
18 TJSP, Apelação n.º 1010046-32.2022.8.26.0011, Rel. Des. Jair de Souza, 10.ª Câmara de Direito Privado, j. 2022.
19 TJDFT, Apelação n.º 0702815-86.2017.8.07.0001, Rel. Des. Dílson Gouveia, j. 15 ago. 2018, pub. 29 ago. 2018.
20 TJMG, Agravo de Instrumento, 14.ª Câmara Cível, Rel. Des. Cláudia Maia, j. 29 mar. 2021.
21 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2024. p. 435.
Paulo Vitor Faria da Encarnação
Mestre em Direito Processual. UFES. [email protected]. Advogado. OAB/ES 33.819. Santos Faria Sociedade de Advogados.


