A responsabilidade das plataformas digitais
Análise da responsabilidade das plataformas digitais frente à erotização infantil, destacando a decisão do STF e a proteção integral prevista no art. 227 da CF/88.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2025
Atualizado às 09:31
Resumo
O artigo examina a responsabilidade civil das plataformas digitais diante da notificação extrajudicial enviada pelo governo Federal à Meta em 2025, que exigiu medidas urgentes contra robôs responsáveis por promover erotização infantil no Instagram. A pesquisa analisa os fundamentos constitucionais e legais de proteção integral da criança e do adolescente, a evolução da jurisprudência do STJ e a decisão paradigmática do STF nos Temas 987 e 533, que declarou a inconstitucionalidade parcial do art. 19 do marco civil da internet. O trabalho demonstra que o princípio da prioridade absoluta (art. 227 da CF) exige das plataformas deveres reforçados de cuidado, afastando a alegação de neutralidade e impondo responsabilidade direta em casos de conteúdos gravíssimos. A conclusão aponta para a necessidade de mecanismos de compliance digital, políticas públicas integradas e uso da inteligência artificial voltado à prevenção, garantindo efetividade à proteção da infância no ambiente digital.
Introdução
A crescente centralidade das redes sociais na vida cotidiana tem trazido, ao mesmo tempo, benefícios comunicacionais e desafios jurídicos de grande complexidade. Entre estes, avulta a necessidade de proteção da infância contra novas formas de exploração, em especial aquelas que se manifestam por meio da erotização precoce promovida em ambientes digitais. O episódio recente da notificação extrajudicial enviada pelo governo Federal à empresa Meta, controladora do Instagram, no ano de 2025, requisitando a adoção de medidas urgentes contra robôs que simulavam perfis infantis com linguagem sexualizada, revela a gravidade do problema e a urgência de respostas jurídicas adequadas.
A questão não se limita ao âmbito administrativo. Trata-se de um problema que exige a interpretação conjugada de dispositivos constitucionais, como o art. 227 da Constituição da República, do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente e do marco civil da internet, à luz da jurisprudência recente do STF e do STJ. O eixo da análise consiste em verificar se a atuação estatal, por meio da notificação extrajudicial, encontra respaldo no ordenamento e em que medida as plataformas digitais podem ser responsabilizadas civilmente pela permanência de conteúdos gravíssimos em seus sistemas.
O STF, ao julgar conjuntamente os Temas 987 e 533 de repercussão geral, declarou a inconstitucionalidade parcial do art. 19 do marco civil, fixando a possibilidade de responsabilização direta das plataformas quando se tratar de ilícitos notórios e gravíssimos, como pornografia infantil e crimes contra vulneráveis. Com isso, o Tribunal reafirmou que a neutralidade alegada pelas empresas não se sustenta diante do dever constitucional de proteção integral, deslocando o centro do debate para a exigência de estruturas preventivas eficazes.
A doutrina contemporânea acompanha esse movimento. Anderson Schreiber observa que os algoritmos e modelos de negócio das plataformas não são neutros, mas determinam a circulação de conteúdos, o que lhes impõe deveres jurídicos reforçados. Grazielly dos Anjos Fontes Guimarães ressalta que a adultização da infância em redes sociais constitui afronta direta à dignidade da pessoa humana, ensejando responsabilidade direta das plataformas. Rodrigo Nejm, especialista em educação digital, destaca que explorar a infância como estratégia de engajamento é modelo de negócio inaceitável sob qualquer perspectiva ética.
Diante disso, este artigo busca analisar a responsabilidade civil das plataformas digitais à luz da Constituição, do ECA, do marco civil da internet e da jurisprudência atual, examinando a legitimidade da atuação estatal por meio de notificações extrajudiciais e os limites jurídicos do dever de cuidado das empresas. O objetivo é demonstrar que a prioridade absoluta conferida à criança e ao adolescente impõe um novo paradigma regulatório, em que a proteção integral deve prevalecer sobre a lógica econômica das big techs.
1. Fundamentos constitucionais e legais da proteção integral
1.1 O art. 227 da Constituição da República e a prioridade absoluta
O Constituinte de 1988, em sua inequívoca intenção de conferir máxima proteção à infância e à juventude, consagrou no art. 227 da Constituição da República a regra da prioridade absoluta, impondo à família, à sociedade e ao Estado o dever irrecusável de assegurar, com primazia em relação a quaisquer outros interesses, o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente. Trata-se de uma norma que, a rigor, não se exaure em simples proclamação programática, mas se reveste de densidade normativa suficiente para irradiar efeitos imediatos sobre as políticas públicas e sobre a atuação dos particulares que exploram atividades potencialmente nocivas a esse público.
A prioridade absoluta, como se depreende do próprio texto constitucional, deve ser compreendida em sua dupla dimensão: de um lado, como dever de proteção integral contra qualquer forma de violência, exploração ou negligência; de outro, como critério hermenêutico de prevalência, de modo que, havendo conflito entre a liberdade de iniciativa e a salvaguarda da dignidade da criança, esta última há de sobrepor-se sem hesitação. É precisamente nesse contexto que se enquadra a problemática da atuação de plataformas digitais, como o Instagram, diante da circulação de conteúdos que promovem a erotização de menores, fenômeno que a recente notificação extrajudicial do governo Federal à Meta buscou coibir.
Não é demais recordar que o STF, em decisão paradigmática proferida em 26/6/25 (RE 1.037.396, Tema 987, e RE 1.057.258, Tema 533), firmou entendimento no sentido de que a omissão das plataformas digitais em remover conteúdos gravíssimos - dentre os quais se insere a pornografia infantil e toda forma de erotização de crianças e adolescentes - enseja sua responsabilização direta, independentemente de ordem judicial prévia. A ratio decidendi assenta-se, justamente, na exigência constitucional de prioridade absoluta, que não se compatibiliza com a inércia ou com o argumento de neutralidade empresarial.
A doutrina contemporânea tem reiterado que a consagração do art. 227 não se resume a uma cláusula retórica, mas projeta sobre os agentes econômicos deveres positivos de prevenção. Anderson Schreiber observa que "a plataforma não é neutra; algoritmos e modelos de negócio orientam a circulação de conteúdos, o que impõe deveres jurídicos reforçados de moderação e prevenção, especialmente diante de riscos sistêmicos como a erotização infantil". Tal lição deixa claro que a prioridade absoluta não é apenas um mandamento dirigido ao Estado, mas irradia efeitos horizontais, vinculando também os particulares.
A hermenêutica constitucional, nesse campo, deve ser guiada pela centralidade da dignidade humana do menor, razão pela qual o art. 227 da CF não pode ser interpretado de modo restritivo, sob pena de desfigurar sua função precípua de tutela integral.
1.2 O Estatuto da Criança e do Adolescente e a vedação à exploração sexual
A CF/88, ao instituir a doutrina da proteção integral, encontrou no Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990) o seu mais eloquente desenvolvimento normativo. Trata-se de diploma que, ao regulamentar o art. 227 da CF, erigiu a proteção da criança e do adolescente a patamar de direito fundamental, impondo obrigações jurídicas específicas ao Estado, à família e à sociedade.
Entre tais obrigações, avulta a vedação absoluta de qualquer forma de exploração sexual, que se revela não apenas em condutas de abuso direto, mas também em práticas de erotização precoce ou de adultização digital, cada vez mais comuns no ambiente das plataformas virtuais. A lei estatui, de modo peremptório, que a criança e o adolescente devem ser resguardados contra qualquer violação de sua dignidade sexual, e prevê, no art. 241-B, a criminalização da divulgação, inclusive em meios eletrônicos, de cenas de sexo ou pornografia envolvendo menores.
O ponto central que aqui se destaca é a incidência do dever jurídico de prevenção, que se impõe tanto ao Estado quanto a particulares que administram redes sociais. A jurisprudência recente do STJ já havia sinalizado nesse sentido ao assentar que, em hipóteses de violação manifesta e gravíssima, como ocorre com a erotização de crianças, não se pode exigir da vítima a judicialização prévia para compelir a remoção do conteúdo. Em precedente paradigmático, a Corte reconheceu que a divulgação não consentida de imagens íntimas pode ser objeto de remoção imediata mediante simples notificação, em aplicação do art. 21 do marco civil da internet, justamente porque tais situações afetam a dignidade da pessoa humana em grau máximo.
O reforço hermenêutico vem ainda do recente posicionamento do STF, que, no julgamento conjunto dos Temas 987 e 533, modulou a interpretação do art. 19 do marco civil para admitir a responsabilização direta das plataformas em casos de conteúdos gravíssimos, entre os quais se inclui a exploração sexual de menores. Tal entendimento coaduna-se com a sistemática protetiva do ECA, que repudia não só a prática efetiva do crime, mas também qualquer tolerância, omissão ou conivência que possa potencializar a circulação desses conteúdos.
Na doutrina, Grazielly dos Anjos Fontes Guimarães ressalta, em estudo de fôlego, que "a instrumentalização da criança para fins comerciais nas redes sociais, sobretudo em contextos de erotização, ofende frontalmente o princípio da dignidade humana e enseja responsabilidade direta das plataformas". Com efeito, não basta a previsão normativa: a eficácia do ECA exige ação positiva, de caráter preventivo, para impedir a perpetuação da exploração no meio digital.
Assim, o Estatuto, em consonância com a CF, projeta uma obrigação normativa que vai além da repressão penal: cria um verdadeiro estatuto de responsabilidade social e empresarial, impondo aos provedores de aplicações digitais o dever de adotar mecanismos céleres e eficazes de bloqueio, remoção e filtragem de conteúdos que promovam a exploração sexual ou a erotização de crianças e adolescentes.
1.3 O marco civil da internet e a evolução jurisprudencial sobre o art. 19
O marco civil da internet (lei 12.965/14) surgiu como diploma normativo destinado a estruturar princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Entre suas disposições, o art. 19 assumiu papel central no debate jurídico, ao estabelecer, como regra geral, que os provedores de aplicações somente poderiam ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tornassem indisponível o material ilícito.
A ratio legis era clara: evitar que a responsabilidade civil das plataformas se transformasse em censura privada, retirando da esfera estatal o controle de legalidade e constitucionalidade de conteúdos. Contudo, a evolução jurisprudencial demonstrou que a aplicação literal desse dispositivo não se harmonizava com situações de extrema gravidade, em que o ilícito se revela notório e a demora na remoção do conteúdo pode significar violação irreparável de direitos fundamentais.
Inicialmente, o STJ, em casos de divulgação não consentida de imagens íntimas, reconheceu que o art. 21 do marco civil já excepcionava a regra geral, autorizando a remoção imediata por simples notificação da vítima, sem necessidade de ordem judicial prévia. Tal entendimento abriu caminho para o reconhecimento de que, diante de violações que atingem diretamente a dignidade humana, a lógica da prioridade absoluta deveria prevalecer sobre a literalidade restritiva do art. 19.
Esse movimento culminou no julgamento histórico do STF, em 26/6/25, quando, ao apreciar conjuntamente os RE 1.037.396 (Tema 987) e RE 1.057.258 (Tema 533), a Corte declarou a inconstitucionalidade parcial do art. 19, fixando tese segundo a qual, em casos de conteúdos gravíssimos - como pornografia infantil, crimes sexuais contra vulneráveis, incitação ao terrorismo ou discriminação de gênero -, a plataforma pode ser responsabilizada independentemente de prévia ordem judicial.
A decisão do STF não apenas modulou os efeitos do dispositivo, mas também introduziu uma verdadeira teoria da responsabilidade subjetiva qualificada das plataformas, assentando que não se trata de responsabilidade objetiva, mas sim de responsabilização decorrente da falha sistêmica ou omissão em adotar as melhores práticas de prevenção, detecção e remoção de conteúdos ilícitos. Assim, a neutralidade técnica alegada pelas empresas foi rejeitada, reconhecendo-se que algoritmos, modelos de negócios e políticas de engajamento exercem papel ativo na circulação de conteúdos.
A doutrina reforça essa compreensão. Anderson Schreiber observa que os provedores não podem se ocultar sob o manto da neutralidade, pois "a plataforma não é neutra; algoritmos e modelos de negócio orientam a circulação de conteúdos, o que impõe deveres jurídicos reforçados de moderação e prevenção". A perspectiva crítica complementa-se pela análise de Rodrigo Nejm, especialista em educação digital, que sustenta ser inadmissível a exploração da infância adultizada e sexualizada como modelo de negócio.
Com efeito, a evolução jurisprudencial brasileira acerca do art. 19 demonstra que a regra de responsabilidade condicionada à ordem judicial não pode ser aplicada cegamente a hipóteses de ilícitos notórios e gravíssimos. O princípio da proteção integral, em harmonia com o ECA e com o art. 227 da CF, exige das plataformas não apenas uma postura reativa, mas a adoção de mecanismos preventivos e eficazes de bloqueio e monitoramento, sob pena de se configurar violação sistêmica de dever jurídico.
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Paulo Vitor Faria da Encarnação
Mestre em Direito Processual. UFES. [email protected]. Advogado. OAB/ES 33.819. Santos Faria Sociedade de Advogados.


