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A lei Magnitsky no Brasil: Conflitos entre soberania nacional e extraterritorialidade de sanções internacionais

A aplicação da lei Magnitsky a um ministro do STF expõe um inédito impasse entre soberania nacional e sanções estrangeiras, gerando insegurança jurídica.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Atualizado em 26 de agosto de 2025 10:32

Há cerca de um mês, o Brasil e suas autoridades públicas estão enfrentando um fato inédito na história brasileira: a aplicação da lei Magnitsky contra um ministro da Suprema Corte brasileira. No campo jurídico, surgiram debates complexos sobre a controvérsia da exequibilidade de sanções oriundas de legislação estrangeira no território nacional. Visando contribuir para o debate, ainda que de forma singela, apresento aspectos importantes para a resolução desta questão.

Em sua primeira versão, criada em 2012, a lei Magnitsky foi desenvolvida pelo governo Norte-Americano como instrumento de diplomacia coercitiva contra agentes do governo Russo, em retaliação aos abusos e torturas praticadas contra o advogado russo Sergei Leonidovich Magnitsky, responsável por denunciar atos de corrupção praticados por agentes públicos russos1.

Posteriormente, com pressões internacionais e dos membros do Congresso Americano, os Estados Unidos aprovaram, em 2016, uma nova versão da lei Magnitsky, expandindo sua aplicação para quaisquer indivíduos e entidades estrangeiras responsáveis por abusos dos direitos humanos ou atos de corrupção no mundo2.

Dentre as sanções previstas na 3ª seção da lei Magnitsky, destacam-se: (i) proibição de acesso aos Estados Unidos; (ii) revogação de vistos; e (iii) bloqueio de bens e transações comerciais de propriedade do sancionado nos Estados Unidos ou, além disso, o bloqueio de transações comerciais de bens que estiverem sob a posse ou controle de um cidadão ou empresa americana.

Durante o período de 2017 a 2023, conforme dados oficiais do governo dos EUA, este instrumento de coação diplomática sancionou mais de 650 pessoas estrangeiras, acusadas pelo governo norte-americano de violarem os Direitos Humanos ou de praticarem atos expressivos de corrupção3.

No dia 30/7/254, conforme comunicado prestado por Marco Rubio, secretário de Estado dos Estados Unidos, o ministro Alexandre de Moraes foi sancionado pela lei Magnitsky por supostos abusos de direitos humanos, incluindo detenções arbitrárias envolvendo negações flagrantes de garantias de julgamento justo e violações da liberdade de expressão.

Dispensada uma análise dos atos e processos que originaram a sanção - por não constituir aspecto relevante ao tema deste artigo -, a controvérsia central refere-se à aplicabilidade das sanções da lei Magnitsky no território brasileiro.

Sobre este tema, é fundamental recordar conceitos basilares do Direito, como o princípio da territorialidade, segundo o qual, em razão da soberania nacional, a norma jurídica somente tem aplicação dentro do território delimitado pelas fronteiras do Estado.

Em contrassenso, há também o princípio da extraterritorialidade, que permite, em hipóteses excepcionais, a aplicação de lei estrangeira em território diverso, desde que respeitadas a soberania nacional e as convenções internacionais.

O Brasil adotou o sistema de territorialidade moderada, permitindo a eficácia de leis, atos e sentenças de outro país, desde que não haja ofensa à soberania nacional, à ordem pública e aos bons costumes, conforme o art. 17 da LINDB:

Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.

A soberania, tutelada constitucionalmente (art. 1º, I da CRFB/88), tem como função garantir a independência do Estado e afastar qualquer hipótese de submissão a ordens e determinações de Estados estrangeiros, visando ressaltar a autonomia, in casu, do Estado brasileiro.

Em meio aos calorosos debates jurídicos, o ministro Flávio Dino, no último dia 18, trouxe à tona os princípios da soberania e extraterritorialidade no julgamento da ADPF 1.178/DF, esclarecendo que decisões judiciais e atos administrativos estrangeiros somente podem ser executados no Brasil mediante homologação ou se houver previsão expressa em normas integrantes do Direito interno brasileiro, sendo que, do contrário, presume-se a ineficácia de tais leis, atos e sentenças emanados de país estrangeiro.

Ainda, neste mesmo ato jurídico, o ministro Flávio Dino deixou claro que estão vedadas imposições, restrições de direitos ou instrumentos de coerção executados por pessoas jurídicas que tenham sua sede e administração no Brasil, decorrentes de determinações constantes em atos unilaterais estrangeiros.

Essa determinação judicial, sem sombra de dúvidas, cria um impasse com as sanções da lei Magnitsky, visto que, dentre seus desdobramentos, há ordens do governo Norte-Americano para que empresas americanas cessem, de forma imediata, vínculos com os sancionados, como é o caso das instituições financeiras.

A partir do julgamento da ADPF 1.178/DF e dos recentes desdobramentos da lei Magnitsky no Brasil, emergiram dois impasses jurídicos de alta complexidade que, certamente, serão objeto de longas discussões.

Primeiramente, questiona-se se as sanções da lei Magnitsky aplicadas ao ministro Alexandre de Moraes - e não ao STF - podem ser consideradas como atentado à soberania nacional, justificando a aplicação da exceção ao princípio da extraterritorialidade.

Cabe ressaltar que a soberania constitui instrumento de proteção do Estado e não pode ser utilizada como argumento de proteção individual, sendo que, no caso em discussão, o indivíduo é o alvo das sanções internacionais.

Este debate torna-se imprescindível e urgente, considerando a complexidade e a gama de circunstâncias que permeiam o cenário político-jurídico. De um lado, sustenta-se que as sanções não são aplicadas ao Estado brasileiro, afastando a defesa da soberania. De outro, argumenta-se que as sanções configuram ataque ao Poder Judiciário brasileiro no pleno exercício de sua judicatura e que, futuramente, tais atos estrangeiros podem ser estendidos a outras autoridades brasileiras.

Paralelamente, existe o impasse prático desta questão: o receio e a insegurança jurídica, especialmente das instituições financeiras. Por um lado, observa-se tendência do STF de impedir que instituições financeiras suspendam as operações do ministro Alexandre de Moraes. Por outro, as instituições financeiras enfrentam pressão do sistema financeiro global, sob a ameaça de que, caso não cumpram as sanções da lei Magnitsky, serão severamente penalizadas pelos Estados Unidos.

Este é o maior impasse existente que, ao meu ver, está longe de ser sanado com uma solução clara e concreta, tendo em vista que, no território dos Estados Unidos da América, a lei Magnitsky é plenamente válida e, se o governo americano entender que as instituições financeiras criaram impasses para o cumprimento das sanções, há a real possibilidade de punição dos bancos, de modo que o STF não detém jurisdição para impedir.

Em conclusão, o Brasil encontra-se diante de um impasse jurídico-institucional sem precedentes, caracterizado pela tensão entre a soberania nacional e pressões estrangeiras e do sistema financeiro. A aplicação da lei Magnitsky expõe as limitações do ordenamento jurídico pátrio para lidar com sanções extraterritoriais unilaterais, criando um cenário de profunda insegurança jurídica que transcende o âmbito puramente legal, de modo que a resolução definitiva dessa questão transcende os limites do Direito, exigindo articulação diplomática de alto nível e construção de consensos políticos.

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1 https://www.congress.gov/112/statute/STATUTE-126/STATUTE-126-Pg1496.pdf

2 https://www.congress.gov/114/bills/s284/BILLS-114s284rfh.pdf

3 https://www.state.gov/global-magnitsky-act/

4 https://www.state.gov/releases/office-of-the-spokesperson/2025/07/sanctioning-brazilian-supreme-court-justice-alexandre-de-moraes-for-serious-human-rights-abuse/

João Vitor Comiran

João Vitor Comiran

Advogado no Kohl & Maia Advogados.

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