19 anos da lei Maria da Penha: Entre a letra da lei e a brutalidade dos fatos
Lei Maria da Penha completa 19 anos, mas violência contra a mulher segue em alta. Mesmo robusta, a lei precisa de cultura, educação e justiça para surtir efeito.
quarta-feira, 27 de agosto de 2025
Atualizado em 26 de agosto de 2025 11:21
Neste mês de agosto, a lei Maria da Penha completa 19 anos, é marco civilizatório e a terceira melhor legislação do mundo no combate à violência de gênero, segundo a ONU. Um avanço inquestionável. Contudo, a realidade exposta pelos números e pelos fatos cotidianos nos força a questionar: por que, mesmo com uma lei tão robusta, a violência não cessa?
O último relatório "Visível e Invisível", divulgado em março de 2025 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é um soco: a violência contra a mulher atingiu seu maior patamar. Essa estatística alarmante ganha rosto e corpo em casos como o de Natal/RN, onde uma mulher foi agredida com 61 socos pelo namorado dentro de um elevador. Aqueles segundos de brutalidade, flagrados por uma câmera, não são um ato isolado. São o ápice de um ciclo que, invariavelmente, começa muito antes, com a violência psicológica.
A ofensa, a humilhação, o controle e a manipulação são o alicerce sobre o qual a violência física é construída. A mulher é levada a crer que "com jeito" pode mudar o agressor, que deve lutar para "salvar" a relação. Essa crença, uma verdadeira síndrome de mulher-maravilha, apenas adia o inevitável e alimenta a escalada da agressão. Quando a violência psicológica, já tipificada como crime, é tolerada, abre-se a porta para o feminicídio.
E quando a vítima ousa romper o ciclo, a violência sofre uma perversa metástase: ela deixa o ambiente doméstico para invadir o próprio sistema de justiça. É o que chamamos de violência processual. Mesmo após se livrar do parceiro, a mulher vê a agressão se perpetuar através dos filhos, com acusações infundadas de alienação parental e petições intermináveis nas varas de família. A ousadia de agressores parece não ter limites, como no caso recente em um júri em Pernambuco, onde um réu por feminicídio ameaçou a irmã da vítima de morte, tudo isso diante de juiz, jurados e promotor, convertendo o espaço de proteção em mais um instrumento de violência.
Esses episódios nos mostram que a lei sozinha não basta. Falar sobre violência doméstica é, em essência, falar sobre como nossa sociedade resolve conflitos. E não se resolve um problema tão profundo sem questionar a educação que recebemos. Precisamos abandonar a premissa de que uma família deve ser mantida a todo custo. Família é onde há felicidade, respeito e apoio. Qualquer coisa fora disso é um arranjo tóxico.
Próxima de completar duas décadas, a lei Maria da Penha é um instrumento potentíssimo. Mas ela não opera no vácuo. Enquanto não entendermos que a violência não escolhe classe, cor ou escolaridade e que o primeiro grito é o mais importante, continuaremos a enxugar gelo. A proteção efetiva das mulheres brasileiras depende de uma transformação cultural que sufoque a violência em sua origem: na mente, nas palavras e no silêncio que a permite crescer.
Caroline Ribeiro Souto Bessa
Sócia gestora da área do Contencioso Cível Estratégico de Martorelli Advogados.


