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A recuperação judicial e a tributação do deságio - COSIT 74/25

A Receita Federal, ao tributar deságio em recuperação judicial como ganho patrimonial, viola a legalidade e ignora a função de preservação da empresa.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Atualizado às 08:41

As sociedades empresariais, ao passarem por determinada crise econômico-financeira, por vezes se valem do instituto da recuperação judicial, previsto na lei 11.101/05, como um meio legítimo para se obter o soerguimento da sua atividade.

É ainda mais comum que, no plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor, seja concedido um deságio sobre as dívidas da atividade empresarial. Apenas para exemplificar, se a dívida originária de determinado credor é de R$ 100.000,00 (cem mil reais), pode ser que a dívida a ser paga pelo devedor, seguindo-se o plano de recuperação judicial, se dê com um deságio de 50% que, em nosso exemplo, equivaleria a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).

Entretanto - e agora adentrando-nos no tema deste artigo de opinião -, a solução de consulta COSIT 74/251, publicada pela Receita Federal, surpreende por tratar o deságio concedido por credores (no nosso caso-exemplo, de R$ 50.000,00) como receita tributável para fins de IRPJ e CSLL.

A interpretação parte do pressuposto de que, quando o credor aceita por receber um valor inferior ao da sua dívida originária, o devedor estaria auferindo um "ganho patrimonial". O raciocínio, todavia, é contraditório: parte de um prejuízo real para se extrair dele uma obrigação tributária. A decisão não apenas ignora o contexto da concessão do deságio, como subverte a função da própria recuperação judicial, violando os fundamentos da justiça fiscal.

O princípio da legalidade tributária, previsto no art. 150, inciso I, da Constituição Federal, é absolutamente claro ao dispor que não se pode exigir tributo não previsto em lei.

Por sua vez, o CTN define, em seu art. 43, define o fato gerador do imposto de renda como a "aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica", complementando-se pelos incisos subsequentes que estabelece que a renda é o "produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos" ou, ainda, "acréscimos patrimoniais não compreendidos" na definição anterior.

Na acepção de Leandro Paulsen2A renda é o acréscimo patrimonial produto do capital ou do trabalho. Proventos são os acréscimos patrimoniais decorrentes de uma atividade que já cessou. "Acréscimo patrimonial", portanto, é o elemento comum e nuclear dos conceitos de renda e de proventos, ressaltado pelo próprio art. 43 do CTN na definição do fato gerador de tal imposto. E afirma, ademais, que "o legislador ordinário não pode extrapolar a amplitude de tais conceitos, sob pena de inconstitucionalidade".

O deságio, longe de ser uma espécie de acréscimo patrimonial, deve ser compreendido como uma renúncia parcial de crédito do credor, jamais podendo ser entendido, jurídica e contabilmente, como renda ou proventos de qualquer natureza, e o Fisco Federal, ao considerar o deságio como fato gerador do IRPJ e CSLL, extrapola seu papel de intérprete e cria obrigação sem respaldo legislativo, violando o princípio da legalidade tributária.

O plano de recuperação judicial, para que possa ser devidamente aprovado em assembleia de credores, depende do preenchimento de determinado quórum a depender da classe de cada crédito, nos termos do art. 45 da lei 11.101/05, utilizando-se o princípio majoritário.

Em outros termos, nem todos os credores que sofreram deságio em suas dívidas necessitam aprovar o plano de recuperação judicial, pois ainda há a possibilidade de o plano ser aprovado pelo Juízo sem que se chegue ao quórum necessário (cram down).

O problema surge, assim, quando se entende que o deságio é um ato voluntário de liberalidade - e não é. Trata-se, em verdade, de uma tentativa de preservar algum retorno, mesmo que parcial, diante de um cenário de inadimplência iminente, o que reforça, por meio do art. 47 da lei 11.101/05, que a finalidade do processo recuperacional é justamente a preservação da empresa e de sua função social.

Portanto, penalizar o devedor com a incidência de IRPF e CSLL sobre o deságio das dívidas de titularidade dos credores é contrariar a lógica da recuperação judicial.

Sob o ponto de vista tributário, também não há como sustentar a incidência do imposto, pois a tributação de valores que não ingressam no patrimônio do contribuinte afronta o artigo 43 do CTN, que exige disponibilidade de riqueza. Ainda mais grave é o fato de a Receita pretender tributar o deságio no momento da homologação do plano, ignorando que os pagamentos - se ocorrerem - serão parcelados e incertos, ferindo essa antecipação o regime de caixa, a razoabilidade e o equilíbrio da tributação sobre fatos efetivos, e não hipotéticos.

Conforme ensina Andrade Junior quanto ao deságio, entende-se que "se trata de desconto, de decréscimo de valor concedido a outrem e que não constitui acréscimo patrimonial e, quiçá, renda"3, estando na mesma toada o saudoso mestre Geraldo Ataliba4: "o conceito de receita refere-se a uma espécie de entrada. Entrada é todo o dinheiro que ingressa nos cofres de uma entidade. Nem toda entrada é receita. Receita é a entrada em que passa a pertencer à entidade. Assim, só se considera receita o ingresso de dinheiro que venha a integrar o patrimônio da entidade que a recebe", razão pela qual a pretensão fiscal não se sustenta nem sob a ótica jurídica, nem sob a perspectiva econômica.

Ainda, Minatel5 na mesma linha, elucida com precisão que"[...] nem todo ingresso tem natureza de receita, sendo imprescindível para qualificá-lo o caráter de definitividade da quantia ingressada, o que não acontece com valores só transitados pelo patrimônio da pessoa jurídica, pois são por ela recebidos sob condição [...] Há momentânea disponibilidade, é inegável, mas não com o definitivo animus rem sibi de titular, de dono, de proprietário, e sim com animus de devedor, de responsável, de obrigado", e Carvalho, ao acrescentar o conhecimento sobre o tema, define que "receita é o acréscimo patrimonial que adere definitivamente ao patrimônio da pessoa jurídica"6.

Portanto, para Andrade Junior, Ataliba, Minatel e Carvalho, só há receita quando o ingresso financeiro representa um efetivo acréscimo de riqueza, que se incorpora, sem condição, ao patrimônio jurídico da entidade.

Esse também é o entendimento do STF, ao deixar assentado, no julgamento do RE 606.107/RS, que o conceito jurídico de receita - acolhido pela Constituição - não se confunde com a noção contábil, afirmando que: "receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições".7

Ainda que se alegue que o deságio configura acréscimo patrimonial para o devedor - e não para o credor - tal entendimento também se mostra insustentável. O deságio homologado em recuperação judicial não representa ingresso efetivo de ativos, mas tão somente uma redução contábil do passivo, dependente do cumprimento incerto e parcelado do plano aprovado. Não há disponibilidade econômica nem jurídica, como exige o art. 43 do CTN, tampouco liquidez que caracterize receita.

Neste horizonte é o entendimento de Andrade Junior8 ao destacar que:  mesmo após o transcurso do lapso temporal e com a redução do passivo pela aprovação do plano de recuperação judicial, não há que se falar em tributação pelo IRPJ e CSLL, eis que esvaziado o critério material da incidência tributária, uma vez que o deságio aprovado não possui condão de riqueza nova e positiva no patrimônio da recuperada".

A simples reclassificação contábil de um valor inadimplido como "perdoado" não transforma automaticamente uma perda em riqueza, e forçar essa interpretação desvirtua a própria lógica da recuperação judicial e impõe tributação sobre uma ficção.

A operação envolvendo o deságio é, na substância, uma perda parcial de crédito, formalizada sob supervisão judicial, e considerá-la receita apenas por constar de um plano homologado é dar mais valor à aparência do que à essência. Trata-se, na prática, de uma tentativa de impor uma realização tributária forçada, sem respaldo legal, e que ignora completamente a materialidade do fato gerador, comprometendo esse tipo de formalismo a justiça fiscal e distorcendo o conceito de renda.

Além disso, a tentativa de justificar a tributação com base na cláusula antielisiva do art. 116, parágrafo único, do CTN também merece atenção. Essa norma se destina a impedir planejamentos artificiais, o que não é o caso, sabendo que o deságio negociado em uma recuperação judicial é real, necessário e aprovado por juízo competente, enquadrá-lo como elisão se torna uma leitura forçada que desvirtua a finalidade da norma e introduz insegurança em negociações legítimas e transparentes.

Se a interpretação da Receita Federal for mantida, o impacto será profundamente negativo sobre o funcionamento da recuperação judicial, além do que, ao tributar aquilo que é na verdade uma renúncia - por vezes não opcional - do credor, o Fisco cria um obstáculo adicional à adesão de credores a planos de reestruturação.

Em vez de estimular soluções negociadas para empresas em crise, desincentiva a cooperação e agrava o ambiente de incerteza, sendo necessário a intervenção do Poder Judiciário para corrigir esse desvio interpretativo, reafirmando os limites constitucionais da tributação e restaurando a segurança jurídica - tal como assegurado no caput do art. 5º da Constituição Federal.

_______

1 O deságio (haircut) obtido pelo devedor no âmbito da recuperação judicial equivale a uma insubsistência ativa, cuja receita deve ser reconhecida, e oferecida à tributação, quando da homologação do plano de recuperação judicial. Esse é o instante em que se considera definitivamente constituída a situação jurídica que deu ensejo à renda auferida pelo devedor e, como tal, momento da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária.

PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. 13. Ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 436.

ANDRADE JUNIOR, Gilberto. A tributação pelo imposto de renda da pessoa jurídica optante pelo lucro real e do deságio na recuperação judicial. Revista de Direito Tributário Contemporâneo. vol. 27. ano 5. p. 147.São Paulo: Ed. RT, nov.-dez./2020.

ATALIBA. Geraldo. Estudos e Pareceres de direito tributário. In Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. I, p. 81

MINATEL, José Antonio. Conteúdo do conceito de receita e regime jurídico para sua apuração. São Paulo: MP Editora, 2005. p. 101.

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método - 8ª. ed. -São Paulo:Noeses, 2021, p. 844

7 STF, Pleno, Relatora Min. Rosa Weber, DJe nº 103, divulgado em 31/05/2013. (...) V - O conceito de receita, acolhido pelo art. 195, I, "b", da Constituição Federal, não se confunde com o conceito contábil. Entendimento, aliás, expresso nas Leis 10.637/02 (art. 1º) e Lei 10.833/03 (art. 1º), que determinam a incidência da contribuição ao PIS/PASEP e da COFINS não cumulativas sobre o total das receitas, "independentemente de sua denominação ou classificação contábil". (...) A contabilidade constitui ferramenta utilizada também para fins tributários, mas moldada nesta seara pelos princípios e regras próprios do Direito Tributário. Sob o específico prisma constitucional, receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições (...).

ANDRADE JUNIOR, Gilberto. Op. cit., p. 154

Juarez Arnaldo Fernandes

VIP Juarez Arnaldo Fernandes

Especialista em Direito Constitucional e Tributário, Empresarial e Recuperação de Empresas, Penal e Econômico, Contábil e Financeiro. Contador. Perito Contábil Judicial. Adm. Judicial. Parecerista.

Adriano Henrique Baptista

Adriano Henrique Baptista

Graduado em Direito pela Universidade Norte do Paraná. Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná. Ex-assessor de juiz no TJPR. Advogado e administrador judicial.

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