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O direito ao esquecimento digital: Análise sob a perspectiva da LGPD brasileira e em diálogo com o RGPD europeu

O direito ao esquecimento digital protege dados pessoais, alinhando LGPD e RGPD, equilibrando privacidade, liberdade de expressão e interesse público.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Atualizado em 1 de setembro de 2025 14:46

O avanço exponencial da tecnologia da informação, aliado à centralidade dos dados pessoais nas dinâmicas sociais e econômicas, impôs um novo paradigma jurídico: a necessidade de garantir ao titular o controle sobre suas informações.

Nesse contexto, destaca-se o chamado "direito ao esquecimento digital", expressão que, embora não esteja literal e expressamente consagrada na legislação brasileira, pode ser compreendida à luz dos princípios e direitos estabelecidos na LGPD (lei 13.709/18).

Origem e conceito do direito ao esquecimento digital

A noção de "direito ao esquecimento" tem origem jurisprudencial europeia, notadamente no emblemático julgamento da CJUE - Corte de Justiça da União Europeia no caso Google Spain vs. AEPD e Mario Costeja González, de 2014.

Na ocasião, reconheceu-se o direito de o cidadão requerer a desindexação de links contendo informações pessoais desatualizadas, mesmo que lícitas e publicadas em fonte original.

A decisão foi posteriormente incorporada ao RGPD - Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia, especialmente em seu art. 17, que trata do "direito ao apagamento", estabelecendo hipóteses em que o titular pode exigir a exclusão de seus dados pessoais.

A LGPD e o direito à eliminação de dados

Embora a LGPD brasileira não utilize a terminologia "direito ao esquecimento", sua Seção II, do Capítulo III, trata especificamente dos direitos do titular dos dados pessoais, e traz previsão expressa do direito de eliminação, conforme o art. 18, VI:

"O titular dos dados pessoais tem direito a obter do controlador, em relação aos dados do titular por ele tratados, a qualquer momento e mediante requisição:

(.)

VI - a eliminação dos dados pessoais tratados com o consentimento do titular."

Demais disso, o art. 16 da LGPD também trata da possibilidade de exclusão, fixando prazos legais de retenção de dados e exceções legais para sua conservação.

Portanto, a legislação brasileira admite o direito ao apagamento de dados pessoais, o que, na prática, pode se aproximar daquilo que o ordenamento europeu qualifica como "direito ao esquecimento".

Liberdade de expressão, interesse público e limites

Tanto a LGPD quanto o RGPD impõem limitações à exclusão de dados, quando houver preponderância de outros direitos fundamentais.

A LGPD, no art. 7º, §4º, a seu turno, prevê o tratamento de dados com fundamento em interesse público, inclusive para liberdade de expressão, exercício jornalístico e cumprimento de obrigação legal.

De modo semelhante, o art. 17(3) do RGPD prevê que o direito ao apagamento não se aplica quando o tratamento for necessário para o exercício da liberdade de expressão e informação, ou cumprimento de obrigação legal.

Essa ponderação entre direitos fundamentais exige, nos termos do princípio da proporcionalidade, que se analise caso a caso o equilíbrio entre o direito à privacidade e a liberdade de expressão, considerando critérios como:

  • natureza pública ou privada da informação;
  • relevância atual;
  • papel público ou privado da pessoa envolvida;
  • interesse público presente.

Jurisprudência brasileira e tendências interpretativas

A jurisprudência nacional ainda oscila quanto ao reconhecimento formal do direito ao esquecimento em meio digital.

STF, no julgamento do Tema 786 (RE 1.010.606/RJ), decidiu que o direito ao esquecimento não é compatível com a Constituição Federal, especialmente quando se trata de fatos verídicos e lícitos, reconhecendo, porém, que excessos no exercício da liberdade de expressão podem ensejar responsabilização civil.

Contudo, essa decisão não se refere à proteção de dados pessoais no contexto da LGPD, mas sim à reprodução de fatos em mídias e documentários.

Portanto, há ainda campo aberto para a afirmação do direito à exclusão de dados com base nos direitos do titular, em especial:

  • eliminação por consentimento (art. 18, VI);
  • revogação do consentimento (art. 18, IX);
  • anonimização e bloqueio (art. 18, IV).

Desafios práticos: Internet, IA e blockchain

A aplicação efetiva do direito ao apagamento enfrenta entraves tecnológicos, tais como:

  • replicação instantânea de dados nas redes;
  • uso de inteligência artificial para reidentificação de dados anonimizados;
  • imutabilidade de registros em tecnologias como a blockchain.

Esses desafios exigem, para além da regulamentação, soluções técnicas como o uso de armazenamento off-chain, técnicas de desaprendizado em IA (machine unlearning) e mecanismos de controle granular de acesso.

Daí porque concluirmos que o direito ao esquecimento digital, mesmo sem previsão nominal na LGPD, existe como direito à eliminação de dados, e sua efetividade depende do compromisso institucional dos controladores, operadores e do próprio Judiciário em interpretar o texto normativo à luz da Constituição e da dignidade da pessoa humana.

Resumindo:

A comparação com o RGPD evidencia que, embora com diferenças estruturais, ambos os sistemas buscam assegurar ao titular o poder sobre suas informações pessoais.

O avanço técnico-jurídico do Brasil nesta matéria exige não apenas normas, mas uma cultura de proteção de dados que respeite, equilibre e promova os direitos fundamentais.

Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade

Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade

Migalheira desde abril/2020. Advogada, sócia fundadora do escritório Figueiredo Ferraz Advocacia. Graduação USP, Largo de São Francisco, em 1.981. Mestrado em Direito do Trabalho - USP. Conselheira da OAB/SP. Conselheira do IASP. Diretora da AATSP.

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