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Global Magnitsky Act: Lei doméstica, efeitos transnacionais e o que isso revela sobre Direito e poder

O Global Magnitsky Act impõe sanções transnacionais, combinando direitos humanos e poder econômico, afetando instituições financeiras e políticas globais.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Atualizado em 1 de setembro de 2025 14:47

Quando a responsabilização falha onde deveria funcionar, o sistema volta a perguntar de que lado está o Direito. Em 2009, o advogado Sergei Magnitsky denunciou um esquema de fraude e morreu sob custódia estatal na Rússia. A resposta interna não veio; os mecanismos internacionais tampouco ofereceram remédio efetivo. Em 2012, o Congresso dos Estados Unidos aprovou um primeiro ato voltado ao caso russo; em 2016, diante da repetição desse padrão de impunidade, ampliou o alcance e positivou um regime geral: o Global Magnitsky Human Rights Accountability Act. A partir da jurisdição norte-americana, o ato autoriza sanções pessoais - congelamento de bens e restrições de visto - contra indivíduos e entidades estrangeiras por corrupção significativa ou graves violações de direitos humanos. A engrenagem prática é administrativa: Departamento de Estado e do Tesouro/OFAC operam as designações, e desde 2017 a Executive Order 13818 (editada sob o IEEPA) estrutura o dia a dia do regime e a inclusão na SDN List. Não se trata de norma internacional; seus efeitos atravessam fronteiras pelo peso do dólar, das redes de bancos correspondentes e da infraestrutura tecnológica regulada nos EUA.

Não se deve, entretanto, atribuir a eficácia transnacional da Global Magnitsky Act apenas ao poder gravitacional do dólar. Há que se considerar o papel do sistema SWIFT, verdadeira espinha dorsal da comunicação financeira internacional. Embora sediado na Bélgica, o SWIFT submete-se, na prática, a pressões regulatórias e políticas exercidas por Washington e Bruxelas, o que lhe confere a função de braço técnico das sanções. A experiência do bloqueio imposto ao Irã revelou que a exclusão dessa rede equivale a uma forma de pena de interdição econômica absoluta, impedindo o acesso aos fluxos de comércio global. Assim, ainda que o texto normativo da Magnitsky não o mencione expressamente, é sobre esse ecossistema que se projeta o seu alcance, pois instituições financeiras, receosas de retaliações, ajustam preventivamente sua conduta para não comprometer a permanência em tal rede vital.

O desenho jurídico é direto - e por isso eficaz. A designação acarreta bloqueio de ativos sob alcance americano, vedação de transações com "U.S. persons" e restrições de mobilidade. O alvo típico são estrangeiros - autoridades, dirigentes empresariais, organizações. Como grande parte das operações globais liquida em USD ou toca sistemas sob regras dos EUA, bancos e companhias de outros países ajustam condutas para preservar acesso ao sistema em dólar e ao mercado norte-americano; onde houver nexo com os EUA (liquidação em USD, participação de "U.S. person", facilitação de violação), a inobservância expõe a multas relevantes e, no plano comercial-regulatório, ao risco de perder correspondentes em dólar por decisão das contrapartes (de-risking). No front migratório, as restrições de visto também podem decorrer de base paralela (§7031(c) das leis de apropriações do Departamento de Estado).

Outro ponto de relevo reside nos limites do controle judicial sobre tais designações. Embora exista a possibilidade formal de recorrer às cortes norte-americanas, a experiência demonstra que o D.C. Circuit adota postura de elevada deferência ao Executivo, sobretudo quando se invocam razões de segurança nacional e política externa. O resultado é um espaço de revisão judicial rarefeito, no qual a contestação material das sanções raramente prospera. Nessa moldura, a via administrativa de delisting perante o OFAC converte-se, em verdade, na única esperança prática de reversão, o que evidencia a assimetria entre a magnitude dos efeitos e a escassez de garantias processuais efetivas.

Cumpre destacar que o descumprimento das designações da Global Magnitsky Act não se limita a repercussões negociais. O ordenamento jurídico norte-americano, por meio do IEEPA - International Emergency Economic Powers Act, prevê sanções administrativas e criminais contra instituições financeiras que, ainda que por negligência, facilitem transações vedadas. Multas bilionárias já foram aplicadas em casos análogos, atingindo bancos globais que violaram embargos a países sancionados. Para além da penalidade pecuniária, o risco maior é o de exclusão do mercado norte-americano, verdadeiro coração do sistema financeiro internacional. Tal cenário converte o risco jurídico em risco existencial: um banco que não possa acessar o sistema em dólar dificilmente poderá sobreviver.

O alcance da responsabilidade não se restringe a condutas deliberadas. O regime sancionatório admite a imputação por 'facilitation', conceito aberto que engloba qualquer ato que torne possível, ainda que indiretamente, a execução de operações com designados. Assim, a simples liquidação de uma operação em que haja trânsito por instituição norte-americana, ou a utilização de tecnologia hospedada em servidores nos Estados Unidos, pode ser suficiente para atrair a incidência da lei. Essa elasticidade hermenêutica amplia sobremaneira a exposição das instituições financeiras estrangeiras, que muitas vezes desconhecem os vínculos ocultos que tornam suas transações alcançáveis pelo braço extraterritorial do OFAC.

É preciso dizer com clareza o que está em disputa. O Magnitsky não exporta um conceito universal de direitos humanos; positiva, em lei interna, a interpretação jurídica e política dos Estados Unidos sobre "graves violações" e "corrupção significativa" e projeta essa leitura pelo seu poder econômico e tecnológico. O mesmo instrumento que protege direitos funciona, também, como alavanca de política externa/hegemonia jurídica. Direito e poder caminham juntos; reconhecer isso qualifica - não enfraquece - o debate.

O modelo não ficou confinado a Washington. Outros ordenamentos aprovaram regimes próprios - Canadá (2017), com o Justice for Victims of Corrupt Foreign Officials Act, e União Europeia (2020), com o regime global de sanções em direitos humanos (Decisão (PESC) 2020/1999 e Regulamento (UE) 2020/1998). O denominador comum é a sanção individualizada e nominativa - foco em pessoas físicas e jurídicas, não em países -, com consequências patrimoniais e de mobilidade que se tornam efetivas porque o mundo opera, em larga medida, sobre infraestrutura conectada aos EUA.

Há riscos reais: seletividade política na escolha de alvos, critérios opacos, compressão de garantias processuais. A legitimidade do regime depende de critérios públicos e verificáveis, devido processo administrativo com vias efetivas de contestação (incluindo pedidos de delisting ao OFAC e, quando cabível, revisão judicial sob a APA) e controle institucional independente. Sem isso, a sanção vira atalho para arbitrariedade; com isso, a mensagem é inequívoca: violações graves têm consequência concreta, com respeito à legalidade.

O debate que nos interessa no Brasil não é terceirizar parâmetros a jurisdiições estrangeiras, mas fortalecer os nossos. A Constituição consagra a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais (art. 4º, II). Discutir um regime análogo - com critérios objetivos, publicidade das decisões, possibilidade de defesa e revisão - é discutir coerência entre o que está escrito e o que entregamos. Em um ambiente em que finanças, tecnologia e compliance produzem alcance transnacional de fato, soberania também se exerce por regras claras, estáveis e previsíveis.

Dessa forma, os riscos jurídicos para instituições financeiras não se limitam à esfera do compliance regulatório, mas avançam para o campo da própria viabilidade institucional. As sanções Magnitsky transformam-se em vetor de reorganização da conduta bancária global, impondo às instituições estrangeiras a difícil escolha entre a fidelidade ao seu ordenamento doméstico e a adesão pragmática às normas norte-americanas. A margem para a neutralidade é cada vez mais estreita: na dúvida, os bancos optam pelo sobrecumprimento (overcompliance), abandonando clientes e operações legítimas, a fim de preservar acesso ao sistema financeiro internacional. O direito, aqui, se confunde com poder - e o risco jurídico adquire feições de risco sistêmico.

O Magnitsky Act ganhou alcance global não por ser "lei do mundo", mas porque uma parte relevante do mundo opera sob infraestrutura norte-americana. Reconhecer essa dupla natureza - humanitária e geopolítica - não nos dispensa de escolher parâmetros: apenas nos obriga a exigir critérios, garantias e responsabilidade institucional na aplicação de qualquer regime. Se há violação grave, que haja sanção - com regras claras, controle e compromisso com a legalidade - para que justiça e poder não se confundam.

De resto, no cenário global, não se pode esquecer que todas as nações prestam contas umas às outras, e que as relações internacionais implicam transparência, reciprocidade e interdição à arbitrariedade dos poderes públicos. Em alguma medida, embora não se tenha efetivamente uma concepção universal de direitos humanos e nem mesmo um conceito universal sobre corrupção, e conquanto não haja dúvida a respeito da hegemonia global dos Estados Unidos e da ascensão da China, inviável desconhecer a crescente importância de uma opinião pública internacional e de determinados padrões éticos de integridade que se exige em termos de observância de direitos humanos nas nações civilizadas contemporâneas.

Nesse contexto, diante da interdependência econômica, tecnológica e comercial entre os países, o conceito de soberania tornou-se cada vez mais complexo e exposto à política e à diplomacia internacional. É precisamente nesse novo ambiente que emergem e se fortalecem as legislações com efeitos transnacionais de potências soberanas.

Finalmente, cabe assinalar que as instituições financeiras brasileiras encontram-se em uma posição de vulnerabilidade estrutural diante do conflito entre a jurisdição nacional e a autoridade extraterritorial do OFAC - Office of Foreign Assets Control. No plano interno, a homologação de decisões estrangeiras pelo STJ é requisito constitucional indispensável para que sanções patrimoniais possam produzir efeitos sobre indivíduos e empresas localizados no Brasil. Todavia, no sistema jurídico norte-americano, o OFAC, órgão subordinado ao Departamento do Tesouro e, em última instância, ao Presidente dos Estados Unidos, não está juridicamente obrigado a reconhecer ou aguardar esse procedimento de homologação. A estrutura do OFAC confere a ele competência para administrar, fiscalizar e impor sanções financeiras de forma imediata, com base no Global Magnitsky Act, aplicando-as a todas as instituições que mantenham vínculos diretos ou indiretos com o sistema financeiro em dólar. Isso significa que, mesmo que os bancos brasileiros aleguem pendência de análise no STJ, o OFAC possui discricionariedade plena para aceitar ou rejeitar a justificativa, podendo considerar o argumento como demonstração de respeito ao devido processo legal interno - ou, ao contrário, como obstáculo inaceitável à eficácia extraterritorial da lei norte-americana.

A essa equação soma-se o espectro das chamadas sanções secundárias, pelas quais o Departamento do Tesouro ameaça ou restringe bancos e empresas estrangeiras que, direta ou indiretamente, facilitem transações em benefício de designados. Não se trata apenas de perda de correspondentes, mas da possibilidade concreta de exclusão de redes de pagamento em dólar e de isolamento do sistema financeiro internacional. Tal mecanismo funciona como instrumento indireto de política externa, projetando sobre terceiros países a necessidade de conformidade às diretrizes norte-americanas, sob pena de marginalização econômica. O impacto, para jurisdições como a brasileira, é a inserção compulsória em uma zona de tensão permanente entre a fidelidade à ordem constitucional interna e a submissão prática às regras de extraterritorialidade funcional impostas pelo OFAC.

A gravidade se acentua com a possibilidade de ações civis coletivas no foro norte-americano. Há precedentes em que vítimas de violações de direitos humanos buscaram responsabilizar bancos por suposta conivência em operações de financiamento indireto a regimes sancionados. Ainda que tais demandas enfrentem óbices probatórios, o simples custo reputacional e financeiro de litigar em cortes federais dos Estados Unidos constitui um elemento dissuasório de peso. A lógica é clara: o descumprimento ou a mera aparência de complacência com designados pode abrir flancos para litígios complexos, que se somam às já severas sanções administrativas.

Trata-se, portanto, de um espaço de tensão entre soberania constitucional brasileira e poder econômico-normativo dos Estados Unidos, no qual os bancos ficam expostos a riscos severos de sanções secundárias se o OFAC optar por não reconhecer a autoridade do Judiciário brasileiro.

Fábio Medina Osório

Fábio Medina Osório

Advogado sócio do Medina Osório Advogados. Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madri, Espanha. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ex-Ministro da Advocacia-Geral da União. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo Sancionador da OAB. Presidente do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado (IIEDE).

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