Transformação digital e o impacto da LGPD no marketing de relacionamento
Transformação digital no marketing potencializa valor e personalização, integrando dados e LGPD como diferencial competitivo.
terça-feira, 2 de setembro de 2025
Atualizado em 1 de setembro de 2025 14:59
Transformação: substantivo feminino relacionado à alteração de forma, e pode ser substituído por vocábulos como: mudança, metamorfose e mutação. No mundo corporativo, a "transformação digital" tornou-se um dos temas mais debatidos e, muitas vezes, mal compreendidos. Comumente confundida como a simples inserção de novas tecnologias nas rotinas corporativas, trata-se, na verdade, de um processo amplo de mudança estrutural, cultural e estratégica, que redefine modelos de negócio, reconfigura procedimentos internos e promove novas formas de interação com clientes, fornecedores, parceiros e com o mundo.
Mais do que converter práticas de um "mundo analógico" para o "digital", a "transformação digital" exige integração sistêmica de dados, inovação contínua e adaptação às novas expectativas do mercado. É um movimento transversal que impacta todos os segmentos da organização. Neste artigo, dar-se-á enfoque para os impactos da "transformação digital", especialmente à luz da LGPD, em uma área vital - para muitos, onde se localiza a alma - de qualquer negócio: o marketing.
Desde que superou a faceta "analógica" de ser uma singela "ferramenta de venda" voltada a mídias tradicionais (revistas, jornais, outdoors etc.), o marketing se tornou um conjunto sofisticado de estratégias integradas, cada vez mais essenciais à dinâmica empresarial. De acordo com a American Marketing Association, hoje, o marketing deve ser entendido como uma "uma atividade, um conjunto de instituições e processos para criar, comunicar, entregar e trocar ofertas que tenham valor para os/as consumidores/as, clientes, parceiros e sociedade em geral"1.
Deste conceito, dois elementos nucleares devem ser enaltecidos: primeiro, o objetivo atual do marketing de "agregar valor a um produto ou serviço"; segundo, o fato do alvo das ações do marketing estarem direcionadas a um sujeito bastante específico, os(as) consumidor(as)2. Em outras palavras, "foco no consumidor". Pelo primeiro elemento nuclear, os esforços do marketing ocupam-se daquilo que conhecemos como o "mix de marketing": produto/serviço, preço, promoção e praça. Pelo segundo elemento nuclear, que "agregar valor" significa conhecer cada um dos âmbitos do "mix de marketing", a partir das lentes do consumidor, que é o destinatário final das ações de marketing.
No marketing 4.0 e 5.0 (conceitos popularizados por Philip Kotler), essa criação de valor exige compreender profundamente o Customer Journey (jornada do cliente), desde o primeiro contato com a marca até a fidelização. Isso envolve mapear necessidades, comportamentos e expectativas, usando recursos como Big Data, CRM - Customer Relationship Management e IA - Inteligência Artificial.
Pelo contexto apresentado, é possível perceber que existe um insumo básico utilizado pelo marketing para a realização de suas atividades: a "informação". Ora, para conhecer alguém, no caso, o consumidor, é preciso ter acesso a "informações" sobre essa pessoa. A personalização do atendimento, característica das marcas premium, só é possível com informações estruturadas e relevantes sobre o cliente. Neste ponto, justamente, conecta-se a "transformação digital" ao "marketing".
Na era "analógica", o acesso a informações de clientes e prospects era restrita ao próprio banco de dados da empresa, ou, no máximo, a pesquisas de satisfação e de mercado realizadas. Agora, na "Era da Informação", em que cada interação, compra, clique e até geolocalização gera dados brutos que, quando organizados, se transformam em informação, conhecimento e vantagem competitiva.
A busca pela forma mais eficiente e menos onerosa de explorar esses importantes ativos, é o que tem levado muitas empresas a apostarem na "transformação digital" aliada ao "marketing", para "agregar valor" aos seus produtos e serviços, de forma personalizada, para atender as expectativas de seu público-alvo, e lograr melhor desempenho perante concorrentes.
Empresas que aplicam estratégias omnichannel (integração de canais físicos e digitais) e usam modelos preditivos conseguem oferecer experiências personalizadas em tempo real, mas também assumem maior responsabilidade sobre a gestão ética e segura dos dados.
É justamente nesse ponto que a LGPD se torna elemento-chave: não como barreira, mas como instrumento normativo que disciplina o tratamento de dados pessoais, impondo regras claras e sanções relevantes. Isso muda profundamente como o marketing utiliza informações.
Sem imergir muito em aspectos conceituais, importante destacar, apenas, que, por "dado pessoal", deve-se entender qualquer informação relacionada a uma pessoa física que tenha o potencial de identificá-la. A potencialidade de identificação pode ser maior ou menor, mas não vai descaracterizar a natureza de dado "pessoal". Por exemplo, um nome completo de uma pessoa física é um dado pessoal com grande potencialidade de identificar alguém, por si só. Por outro lado, apenas o primeiro nome desta pessoa, muito embora continue a ser um dado pessoal, possui menor potencialidade de identificar essa pessoa. O risco relacionado a cada situação será maior ou menor, da mesma forma, pela potencialidade de exposição da pessoa titular do dado. Por outro lado, "tratamento" significa qualquer relacionamento que se tenha com o dado pessoal. O mero "manter em arquivo" é uma forma de tratar dados pessoais. Com isso, queremos enaltecer que, atualmente, qualquer tipo de relacionamento que se tenha com dados pessoais configura uma forma de "tratamento", atraindo, por via de consequência, a aplicabilidade da LGPD, inclusive as "sanções", nas hipóteses de tratamento ilícito de dados.
Um dos segmentos empresariais mais afetados pela nova legislação, como se pode perceber pela narrativa, até aqui, é o marketing, que tem na "informação" um dos principais insumos para a realização da sua atividade fim. Mais afetado, ainda, é o "marketing de relacionamento", cujo próprio conceito já denuncia estar no seu epicentro o tratamento ostensivo de dados pessoais: "Marketing de relacionamento é o conjunto de ações de uma empresa com vistas à criação e manutenção de um relacionamento positivo e duradouro com os/as clientes"3. O ânimo do "marketing de relacionamento" é fidelização. Cumpre tal mister por intermédio de duas estratégias principais: (i) manter a comunicação com os clientes por meio de diversos canais simultâneos (redes sociais, aplicativos de mensagens instantâneos, e-mail etc.) e (ii) oferecer suporte responsivo, transparente e com o propósito de manter a satisfação4.
Nas linhas remanescentes deste artigo, serão identificadas três práticas corriqueiras do "marketing de relacionamento" que geram impacto na proteção de dados pessoais, aumentando o risco operacional da empresa, seguido de comentários sobre como adequar referida prática ao quanto previsto na LGPD.
Situação 1: atualização cadastral
Manter o cadastro de clientes atualizado é mais do que uma prática operacional: é um elemento estratégico para a entrega de valor e a construção de relacionamentos sustentáveis. Em um ambiente competitivo, onde a personalização se tornou a moeda de troca da experiência do consumidor, um banco de dados atualizado garante comunicação eficaz, suporte ágil e respostas alinhadas ao perfil do cliente. No entanto, essa prática não pode se confundir com um apetite desmedido por informações.
O marketing de relacionamento, por natureza, busca revisar e enriquecer os cadastros em cada oportunidade de interação, seja numa ligação de suporte, no preenchimento de um formulário digital ou durante uma campanha de fidelização. A lógica é simples: bancos de dados incompletos geram ruído, desperdício de recursos e impacto negativo na conversão.
Sob a ótica da proteção de dados, essa prática dialoga diretamente com o princípio da qualidade do dado, previsto no art. 6º, inciso V, da LGPD, que assegura aos titulares "exatidão, clareza, relevância e atualização" de seus dados pessoais. Ou seja, atualizar constantemente não é apenas benéfico, é, em determinadas circunstâncias, um dever legal. Ao aproveitar cada ponto de contato para confirmar ou corrigir informações essenciais, a empresa melhora a performance do relacionamento e, simultaneamente, reduz o risco de decisões baseadas em dados imprecisos.
O risco surge quando a "atualização cadastral" degenera em coleta excessiva, prática que, ainda que travestida de boa intenção, colide com o princípio da necessidade (art. 6º, inciso III, LGPD), que exige "limitação do tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades". Aqui, menos é mais: dados excedentes, não utilizados de forma legítima e eficaz, deixam de ser ativos e passam a ser passivos regulatórios. Na prática, um campo extra num formulário que não será analisado, ou uma informação sensível irrelevante para o negócio, aumenta o risco sem gerar retorno.
Para ilustrar: solicitar a data de aniversário pode ser útil para campanhas personalizadas; exigir informações sobre renda familiar, quando irrelevante para a transação, é ultrapassar a linha do razoável. Esse excesso não apenas desafia a proporcionalidade, mas mina a confiança do consumidor, que, em um mundo hiperconectado, sabe atribuir valor à sua privacidade.
O novo paradigma exige que as empresas revisitem suas práticas: atualizar sim, mas com parcimônia. Isso implica criar protocolos internos claros, orientando colaboradores a validar apenas dados relevantes para a finalidade comunicada ao titular, documentando o racional de cada campo solicitado e garantindo que nada seja coletado "por hábito" ou "porque sempre foi assim". Em termos práticos, essa revisão reduz riscos, fortalece a conformidade e projeta uma imagem de responsabilidade - um ativo reputacional que, na economia da atenção, vale tanto quanto o próprio produto.
Situação 2: acesso amplo ao cadastro do cliente
No imaginário de muitos gestores de marketing, oferecer ao atendente "todas as informações possíveis" sobre o cliente parece uma decisão intuitiva: quanto mais dados na tela, maior a chance de um atendimento ágil, empático e personalizado. No entanto, no contexto regulatório atual, essa lógica precisa ser revista com lupa.
A LGPD, em seu art. 6º, inciso VII, consagra o princípio da segurança, exigindo "medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão". Traduzindo para a realidade corporativa: o acesso deve ser segmentado, proporcional e justificado - e não uma porta escancarada a todo o histórico do cliente.
O risco do acesso irrestrito não se limita a incidentes de segurança como vazamentos ou fraudes. Há também um componente de exposição desnecessária, que fere a privacidade do titular e aumenta a superfície de ataque da empresa. Imagine um colaborador temporário, cujo escopo de atuação se restringe a atualizar endereços para entrega, navegando livremente por histórico financeiro, preferências de consumo, entre outras informações delicadas. Esse cenário é mais comum do que se imagina, além de potencialmente desastroso.
A maturidade digital exige a adoção de políticas de controle de acesso baseadas em papéis e funções (RBAC - Role-Based Access Control), garantindo que cada colaborador visualize apenas o que é estritamente necessário para desempenhar sua função. Isso não reduz a capacidade de personalização; ao contrário, aumenta a confiança e a credibilidade da marca. Afinal, para recomendar um produto, não é preciso ter acesso ao histórico médico do cliente; para solucionar um problema logístico, não se deve abrir todo o extrato financeiro.
Em termos de vantagem competitiva, empresas que alinham eficiência operacional e minimização de risco colhem benefícios duplos: protegem a privacidade de seus clientes e se posicionam como players confiáveis em um mercado cada vez mais sensível ao tema. Em tempos de economia da confiança, proteger dados é proteger o próprio negócio.
Situação 3: contato sistemático e frequente com o cliente
O marketing de relacionamento sempre bebeu da fonte do contato contínuo. Campanhas sazonais, newsletters, ligações de pós-venda, mensagens promocionais - a lógica era manter o cliente "aquecido" e presente no funil. A LGPD, no entanto, trouxe uma nova camada de complexidade e desafios.
A distinção entre cliente e potencial cliente nunca foi tão importante. Para clientes ativos, o vínculo contratual já estabelece uma base legítima para comunicações relacionadas ao produto ou serviço contratado. Mas extrapolar esse vínculo para abordagens invasivas, sem relevância ou em excesso, pode ser interpretado como abuso e até gerar reclamações junto à ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados.
Já no caso de potenciais clientes, o cenário é mais delicado. A prospecção ativa exige base legal adequada. O uso de bases compradas, listas "herdadas" ou dados obtidos por enriquecimento sem transparência coloca a empresa em terreno arenoso, não apenas sob o ponto de vista jurídico, mas também reputacional. Hoje, um lead mal gerido não representa apenas uma oportunidade perdida: pode representar uma crise institucional
O princípio da necessidade, previsto no artigo 6º, inciso III, é novamente determinante: comunique-se apenas na medida em que houver pertinência com o contexto e a finalidade declarada. No lugar de cadências automáticas e massivas, invista em segmentação inteligente, com triggers baseados em comportamento e interesse real. Em termos práticos, isso significa menos "disparo" e mais "conversa".
Outro ponto crítico é a gestão das preferências do titular. Mecanismos simples de opt-out, preferências de canal e frequência configurável não são apenas boas práticas - são sinais claros de respeito à autonomia do consumidor. Empresas que adotam esse nível de transparência colhem taxas mais altas de engajamento e reduzem significativamente as taxas de descadastramento.
Em última análise, a evolução do marketing de relacionamento na era da LGPD exige uma mudança de mindset: do volume para o valor, da insistência para a relevância. A proteção de dados deixa de ser um custo de conformidade para se tornar um diferencial competitivo, capaz de transformar um simples contato em uma oportunidade de fidelização genuína.
O marketing de relacionamento é peça-chave na estratégia de negócios contemporânea, mas seu sucesso depende cada vez mais da gestão ética e legalmente segura dos dados. A LGPD não é um entrave, mas um marco regulatório que, quando bem aplicado, aumenta a confiança do consumidor e fortalece a reputação corporativa.
Empresas que conseguirem alinhar transformação digital, governança de dados e marketing inteligente terão vantagem competitiva clara, não apenas por estarem em conformidade legal, mas porque oferecerão experiências mais relevantes, seguras e personalizadas.
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1 AMERICAN MARKETING ASSOCIATION (AMA). Definition of Marketing. Disponível em: https://www.ama.org/the-definition-of-marketing-what-is-marketing/. 2017. Acesso em 03 Jun 2024.
2 TEIXEIRA, Elson. Estratégias de Marketing. Rio de Janeiro: FGV, 2023. p. 10.
3 TEIXEIRA, Elson. Estratégias de Marketing. Rio de Janeiro: FGV, 2023. p. 62.
4 TEIXEIRA, Elson. Estratégias de Marketing. Rio de Janeiro: FGV, 2023. p. 62.
Leonardo Braga Moura
Sócio de Silveiro Advogados, com mais de 20 anos de experiência como advogado, empreendedor e professor, nas áreas de Direito Empresarial, Proteção de Dados, Tecnologia e Inovação. Possui certificação de Data Protection Officer (DPO) na União Europeia (ECPC-B), pelo European Centre on Privacy and Cybersecurity da Maastricht University, Holanda.
Maurício Brum Esteves
Mestre em Direito Público pela UNISINOS e Membro e Ex-Presidente da Comissão Especial de Propriedade Intelectual da OAB/RS, é Data Protection Officer (DPO) e advogado da área de Direito Digital do escritório Silveiro Advogados.




