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Distorções hermenêuticas da miserabilidade no BPC LOAS

Distorções interpretativas sobre a aplicação dos critérios de vulnerabilidade socioeconômica na concessão do BPC-LOAS, com especial enfoque nas alterações promovidas pelo decreto 12.534/25.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Atualizado às 14:01

1. Introdução: Novos desafios à proteção social no contexto do decreto 12.534/25

A efetivação dos direitos fundamentais sociais no ordenamento jurídico brasileiro enfrenta desafios hermenêuticos que se intensificaram significativamente com a publicação do decreto 12.534, de 25 de junho de 2025, que promoveu alterações substanciais no regulamento do BPC - Benefício de Prestação Continuada. A nova normativa, ao revogar o inciso II do § 2º do art. 4º do decreto 6.214/07, passou a computar os valores recebidos a título de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, no cálculo da renda familiar per capita para fins de concessão do benefício assistencial.

Esta alteração normativa representa um retrocesso significativo na proteção social brasileira, criando barreiras adicionais ao acesso de famílias em situação de vulnerabilidade socioeconômica ao BPC. A mudança é particularmente preocupante quando analisada em conjunto com as distorções interpretativas já existentes na aplicação dos critérios de vulnerabilidade, que têm resultado na utilização inadequada de parâmetros subjetivos para restringir o acesso ao direito fundamental à assistência social.

O contexto atual exige uma análise crítica que considere tanto as distorções exegéticas tradicionais quanto os novos obstáculos criados pela alteração regulamentar. A proliferação de interpretações judiciais restritivas, já problemática antes da mudança normativa, tende a se agravar com a implementação de sistemas automatizados de análise que podem resultar em indeferimentos em massa de requerimentos de BPC, particularmente daqueles apresentados por famílias beneficiárias do Bolsa Família.

A problemática assume contornos ainda mais graves quando se considera que o sistema informatizado do INSS - Instituto Nacional do Seguro Social, através da integração entre o CNIS - Cadastro Nacional de Informações Sociais e o CadÚnico - Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, passou a identificar automaticamente os beneficiários do Bolsa Família, computando estes valores no cálculo da renda per capita e gerando indeferimentos automáticos sem a devida análise das particularidades de cada caso.

Esta automatização do processo decisório representa uma forma particularmente perversa de restrição ao acesso aos direitos sociais, pois elimina a possibilidade de análise individualizada das situações de vulnerabilidade, contrariando os princípios constitucionais da dignidade humana, do devido processo legal e da ampla defesa. A utilização de algoritmos para decisões que envolvem direitos fundamentais sociais exige cautela redobrada e mecanismos de controle que assegurem a adequada consideração das especificidades de cada situação.

O cerne da adversidade em estudo reside na inadequada compreensão de que a mera percepção de valores do Bolsa Família não descaracteriza, automaticamente, a situação de vulnerabilidade socioeconômica que justifica a concessão do BPC. O Bolsa Família, programa de transferência de renda condicionada destinado ao combate à pobreza extrema, possui valores relativamente baixos que, na maioria dos casos, são insuficientes para retirar as famílias da condição de hipossuficiência que justifica o acesso ao benefício assistencial.

A análise da evolução normativa revela uma contradição fundamental na política de proteção social brasileira. Enquanto o Bolsa Família foi concebido como instrumento de combate à pobreza e promoção da inclusão social, sua computação no cálculo da renda para fins de BPC pode resultar na exclusão das famílias mais vulneráveis do acesso a ambos os benefícios, criando uma situação de desproteção social que contraria os objetivos constitucionais de erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais.

A questão assume relevância particular quando se considera que muitas famílias beneficiárias do Bolsa Família possuem membros com deficiência ou idosos que necessitam de cuidados especiais, gerando gastos extraordinários que não são adequadamente considerados pelos critérios objetivos tradicionais. A computação automática dos valores do Bolsa Família, sem a devida consideração destes gastos especiais, pode resultar na exclusão de famílias que se encontram em efetiva situação de vulnerabilidade.

O contexto exige, portanto, uma resposta técnica e estratégica adequada por parte dos operadores do direito, particularmente dos advogados especializados em direito previdenciário e assistencial. A nova realidade normativa demanda o desenvolvimento de estratégias advocatícias específicas que considerem tanto as limitações impostas pela alteração regulamentar quanto as possibilidades de superação destas limitações através da adequada utilização dos critérios subjetivos de análise da vulnerabilidade.

A importância da técnica adequada torna-se ainda mais evidente quando se considera que muitos profissionais têm orientado erroneamente seus clientes a solicitar o cancelamento do Bolsa Família como estratégia para viabilizar a concessão do BPC.

A estratégia adequada deve fundamentar-se na compreensão de que a alteração normativa, embora represente um obstáculo adicional, não elimina a possibilidade de concessão do BPC para famílias beneficiárias do Bolsa Família. A chave para a superação deste obstáculo reside na adequada demonstração dos gastos familiares extraordinários que, deduzidos da renda total, possam evidenciar a efetiva situação de vulnerabilidade socioeconômica.

O sistema informatizado do INSS, embora tenha implementado mecanismos de indeferimento automático, também disponibiliza campos específicos para a informação de despesas com medicamentos, fraldas, alimentação especial e outros gastos que podem ser deduzidos do cálculo da renda familiar. A utilização adequada destes campos, combinada com a apresentação de documentação comprobatória detalhada, constitui estratégia fundamental para a superação dos obstáculos criados pela nova normativa.

É neste contexto de crescente complexidade e restrição normativa que se torna imperativa uma reflexão aprofundada sobre os fundamentos hermenêuticos adequados para a aplicação dos critérios de vulnerabilidade socioeconômica, buscando-se estabelecer diretrizes que assegurem tanto a efetividade do direito fundamental à assistência social quanto a superação dos novos obstáculos criados pela alteração regulamentar.

2. Análise crítica do decreto 12.534/25: Retrocesso na proteção social e impactos na concessão do BP

A publicação do decreto 12.534, de 25 de junho de 2025, no Diário Oficial da União, marca um momento de inflexão negativa na trajetória da proteção social brasileira, introduzindo restrições significativas ao acesso ao Benefício de Prestação Continuada através da alteração do critério de cálculo da renda familiar per capita. A revogação do inciso II do § 2º do art. 4º do decreto 6.214/07 representa não apenas uma mudança técnica na regulamentação do benefício, mas uma alteração substancial na filosofia que orienta a política de assistência social no país.

O dispositivo revogado estabelecia claramente que, para fins de cálculo da renda mensal bruta familiar, não seriam computados "valores oriundos de programas sociais de transferência de renda". Esta exclusão fundamentava-se no reconhecimento de que os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, possuem natureza assistencial e valores relativamente baixos, sendo insuficientes para retirar as famílias da condição de vulnerabilidade que justifica o acesso ao BPC.

A alteração promovida pelo decreto 12.534/25 contraria princípios fundamentais da proteção social e pode resultar em consequências perversas para as famílias mais vulneráveis da sociedade brasileira. A computação dos valores do Bolsa Família no cálculo da renda familiar per capita cria uma situação paradoxal em que as famílias mais pobres, justamente aquelas que necessitam do auxílio governamental para sobreviver, são penalizadas no acesso a outros direitos sociais.

2.1 Fundamentos da crítica constitucional

A análise constitucional da alteração normativa revela sua incompatibilidade com diversos princípios e objetivos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. O art. 3º da Carta Magna estabelece como objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, e a redução das desigualdades sociais e regionais. A computação dos valores do Bolsa Família no cálculo da renda para fins de BPC contraria frontalmente estes objetivos, criando obstáculos adicionais para as famílias em situação de maior vulnerabilidade.

O princípio da dignidade humana, fundamento da República brasileira, exige que o Estado adote medidas efetivas para assegurar condições mínimas de existência digna a todos os cidadãos. A alteração normativa, ao restringir o acesso ao BPC para famílias beneficiárias do Bolsa Família, pode resultar na violação deste princípio fundamental, forçando famílias a escolher entre diferentes modalidades de proteção social que deveriam ser complementares, não excludentes.

O princípio da proibição do retrocesso social, reconhecido pela doutrina constitucional contemporânea, estabelece que os direitos sociais, uma vez conquistados, não podem ser suprimidos ou reduzidos sem justificativa constitucional adequada. A alteração promovida pelo decreto 12.534/25 representa claro retrocesso na proteção social, reduzindo o alcance do direito fundamental à assistência social sem apresentar justificativa constitucional suficiente.

2.2 Impactos práticos da alteração normativa

A implementação da nova regra tem gerado impactos imediatos e significativos no processamento dos requerimentos de BPC. O sistema informatizado do INSS, através da integração entre o CNIS e o CadÚnico, passou a identificar automaticamente os beneficiários do Bolsa Família, computando estes valores no cálculo da renda per capita e gerando indeferimentos automáticos sem análise individualizada das circunstâncias específicas de cada caso.

Esta automatização representa uma forma particularmente problemática de restrição ao acesso aos direitos sociais, pois elimina a possibilidade de consideração das particularidades que podem justificar a concessão do benefício mesmo quando a renda formal supera o limite legal. A utilização de algoritmos para decisões que envolvem direitos fundamentais sociais exige mecanismos de controle e revisão que assegurem a adequada consideração das especificidades de cada situação.

Os dados preliminares indicam um aumento significativo nas taxas de indeferimento de requerimentos de BPC apresentados por famílias beneficiárias do Bolsa Família. Esta tendência é particularmente preocupante quando se considera que estas famílias, por definição, encontram-se em situação de vulnerabilidade socioeconômica, sendo justamente aquelas que mais necessitam da proteção estatal.

A alteração normativa cria uma lógica perversa que penaliza as famílias mais organizadas e conscientes de seus direitos sociais. Famílias que buscaram acesso ao Bolsa Família, demonstrando proatividade na busca por proteção social, são posteriormente penalizadas no acesso ao BPC. Esta lógica contraria os princípios da proteção social, que deve incentivar, não desencorajar, a busca por direitos sociais.

2.3 Necessidade de interpretação constitucional adequada

A superação dos obstáculos criados pela alteração normativa exige uma interpretação constitucional adequada que privilegie a máxima efetividade dos direitos fundamentais sociais. Os operadores do direito, particularmente magistrados e servidores públicos responsáveis pela análise dos requerimentos, devem considerar que a alteração infraconstitucional não pode contrariar os fundamentos constitucionais da proteção social.

A interpretação adequada deve reconhecer que a mera percepção de valores do Bolsa Família não descaracteriza, automaticamente, a situação de vulnerabilidade socioeconômica que justifica a concessão do BPC. A análise deve considerar a totalidade das circunstâncias familiares, incluindo gastos extraordinários, necessidades especiais e outras particularidades que possam evidenciar a efetiva situação de hipossuficiência.

A aplicação da alteração normativa deve ser temperada pela consideração dos princípios constitucionais da dignidade humana, da isonomia e da proteção social. Interpretações que resultem na exclusão automática de famílias vulneráveis do acesso ao BPC devem ser evitadas, privilegiando-se sempre a interpretação que melhor realize os objetivos constitucionais de proteção social e erradicação da pobreza.

2.4 Perspectivas de questionamento judicial

A alteração promovida pelo decreto 12.534/25 apresenta vulnerabilidades jurídicas que podem fundamentar questionamentos judiciais. A incompatibilidade com princípios constitucionais fundamentais, o caráter regressivo da medida e a ausência de justificativa constitucional adequada constituem fundamentos sólidos para eventual controle de constitucionalidade.

O questionamento judicial pode fundamentar-se na violação ao princípio da proibição do retrocesso social, na incompatibilidade com os objetivos fundamentais da República e na violação ao princípio da dignidade humana. A demonstração dos impactos práticos da alteração, particularmente o aumento nas taxas de indeferimento e a exclusão de famílias vulneráveis, pode fortalecer os argumentos em favor da declaração de inconstitucionalidade.

A mobilização da sociedade civil organizada, das entidades de classe e dos órgãos de defesa dos direitos sociais será fundamental para o questionamento adequado da alteração normativa. A construção de uma frente ampla de resistência ao retrocesso social pode contribuir para a reversão da medida e para a preservação dos direitos fundamentais sociais.

Leia o artigo na íntegra.

Alan da Costa Macedo

VIP Alan da Costa Macedo

Doutorando em D. Trab e Seguridade Social na USP. Mestre em Direito Público, Especialista em D. Constitucional, Previdenciario, Processual e Penal. Coordenador Científico do IPEDIS.

Fernanda Carvalho Campos e Macedo

VIP Fernanda Carvalho Campos e Macedo

Advogada fundadora do CC&M Advogados; Presidente do IPEDIS; Especialista em D. Público, do Trabalho e Previdenciário; Prof. em cursos de Pós Graduação.

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