A revaloração jurídica de fatos incontroversos no processo civil brasileiro
Prática admitida nos tribunais superiores que consiste em atribuir novo enquadramento jurídico a fatos não contestados pelas partes.
quarta-feira, 3 de setembro de 2025
Atualizado em 2 de setembro de 2025 13:13
No âmbito do processo civil, muito se discute sobre os limites de atuação dos tribunais em instâncias superiores, especialmente quanto à análise de fatos e provas. Um tema recorrente nesse contexto é a revaloração jurídica de fatos incontroversos, conceito que permite ao Tribunal reapreciar o valor jurídico de determinados fatos já estabelecidos no processo, sem que isso implique reexaminar o conjunto fático-probatório. Trata-se de questão relevante porque, nos recursos excepcionais, como o recurso especial ao STJ, vigora a restrição de que não se pode rediscutir matéria de fato ou provas, cabendo apenas questões de direito. Assim, surge a indagação: de que forma um fato já incontroverso, isto é, não contestado pelas partes, pode ser apreciado de forma diversa em grau de recurso sem violar essa proibição?
Primeiramente, convém esclarecer o que se entende por fato incontroverso no processo civil. De acordo com o CPC de 2015, fatos afirmados por uma parte e não impugnados pela parte contrária, ou admitidos no processo como incontroversos, não dependem de prova. Em outras palavras, se uma alegação fática não é objetada pela outra parte, considera-se tal fato provado ou aceito, dispensando-se a produção de provas a seu respeito. Essa previsão legal, constante do art. 374, III, do CPC/15, consagra o princípio de que o incontestado no processo torna-se verdadeiro para fins jurídicos. Dessa forma, ao chegar às instâncias recursais, certos fatos já estão definitivamente estabelecidos no caso, pois nenhuma das partes os coloca em dúvida.
É nesse cenário que se insere a ideia de revaloração jurídica desses fatos incontroversos. Diferentemente do reexame de provas, vedado nos recursos para o STJ conforme a súmula 7 dessa Corte, a revaloração não busca rediscutir se um fato ocorreu ou não, tampouco reavaliar elementos de prova ou credibilidade de testemunhas. Ao contrário, parte-se do pressuposto de que o fato está assentado e reconhecido pelas instâncias ordinárias. O que se propõe é atribuir a ele uma nova qualificação ou consequência jurídica. Conforme entendimento consolidado do STJ, "a revaloração da prova consiste em atribuir o devido valor jurídico a fato incontroverso, fartamente reconhecido nas instâncias ordinárias". Em outras palavras, trata-se de reapreciar juridicamente um fato já certo, verificando se a conclusão de direito extraída dele na decisão recorrida está correta à luz da legislação e da jurisprudência.
Essa possibilidade de revalorar fatos incontroversos é reconhecida como lícita e possível em sede de recurso especial. O próprio STJ já afirmou, em reiterados julgados, que proceder à revaloração jurídica de fatos incontroversos descritos no acórdão recorrido não viola a súmula 7 do STJ, que veda o reexame de matéria fático-probatória. Afinal, quando se requalifica juridicamente um fato admitido, não se está colhendo novas provas ou questionando a existência do fato, mas apenas discutindo o enquadramento legal dado a ele. Assim, evita-se o óbice sumular porque a discussão permanece no campo do direito aplicado aos fatos comprovados e não no campo da disputa sobre o que efetivamente ocorreu. Essa distinção sutil permite ao STJ cumprir sua função de uniformizar a interpretação da lei federal, corrigindo eventuais erros de aplicação do direito sem usurpar a competência das instâncias ordinárias na apreciação das provas.
Na prática, a revaloração jurídica de fatos incontroversos funciona como uma espécie de válvula de escape para viabilizar o exame de certos recursos que, à primeira vista, poderiam esbarrar na proibição de reexaminar provas. Frequentemente, recorrentes perante o STJ argumentam que seu pedido não demanda nova análise do acervo probatório, mas apenas uma revalorização jurídica de fatos já reconhecidos nas decisões inferiores. Esse expediente é usado para tentar demonstrar que a controvérsia é estritamente jurídica. Por exemplo, se o tribunal de origem reconheceu expressamente determinados fatos em sua decisão, sem que sobre eles haja divergência, a parte recorrente pode sustentar que, diante daquela situação fática incontroversa, a solução jurídica aplicada foi equivocada e merece correção. Nesses casos, o STJ pode analisar o recurso justamente por entender que está diante de uma questão de direito, a correta aplicação da norma aos fatos admitidos, e não de uma questão de fato.
É importante destacar, contudo, que não basta ao recorrente alegar genericamente que pretende apenas o reenquadramento jurídico dos fatos para que o STJ aceite conhecer do recurso. A Corte tem enfatizado a necessidade de rigor na delimitação do que seja fato incontroverso e do que seja efetivamente revaloração jurídica. Em decisão recente, sublinhou-se que, embora a jurisprudência admita a revaloração das premissas fáticas no recurso especial, isso exige uma demonstração clara e cuidadosa de sua pertinência. Cabe à parte evidenciar no recurso que os fatos tal como descritos no acórdão recorrido exigem uma solução jurídica diversa daquela adotada, sem que seja necessário contradizer ou complementar essas descrições fáticas. Ou seja, o ponto de partida deve ser exatamente a moldura fática fixada pelas instâncias anteriores. Oualquer tentativa de alterá- la, ampliá-la ou relativizá-la indicaria, na realidade, um reexame de fatos, o que não é permitido.
Nesse sentido, a jurisprudência do STJ também alerta que simplesmente rotular a questão como revaloração de fatos incontroversos não impede a aplicação da Súmula 7 se, na essência, o recurso depender de nova análise de provas ou de revolvimento do quadro fático. Se a decisão recorrida, por exemplo, firmou determinada conclusão com base na avaliação da suficiência ou insuficiência das provas, como ocorre em julgamentos sobre existência de dolo, culpa ou grau de comprovação de um ato, tentar reverter esse resultado demandaria reexaminar a valoração probatória feita, o que está vedado. Numa situação assim, o STJ não conhecerá do recurso, justificando que a pretensão esbarra no impedimento sumular. Foi o que se viu em julgados em que se pretendia reverter um veredicto absolutório alegando "revaloração" quando, na realidade, seria necessário questionar o juízo de insuficiência de provas feito pelo tribunal de origem, algo caracterizado como revolvimento do conjunto fático-probatório e, portanto, inadmissível. Esses precedentes evidenciam que a linha divisória pode ser tênue: de um lado, se os fatos relevantes já constam pacificamente do acórdão recorrido, o STJ pode reavaliar o direito aplicável a eles; de outro, se a pretensão recursal demandar incursão na seara probatória ou na confiabilidade dos fatos estabelecidos, não haverá espaço para a revaloração, mas apenas a incidência da súmula 7.
Em conclusão, a revaloração jurídica de fatos incontroversos configura um mecanismo importante no processo civil brasileiro para conciliar dois objetivos: respeitar as atribuições das instâncias ordinárias na fixação dos fatos e, ao mesmo tempo, permitir que os tribunais superiores corrijam eventuais erros de interpretação ou aplicação da lei. Trata-se de reconhecer que, uma vez delineada de forma incontroversa a situação fática, é possível discuti-la sob nova perspectiva jurídica sem que isso signifique reabrir a instrução probatória. A prática vem sendo aceita de forma pacífica no âmbito do STJ, estando respaldada em vasta jurisprudência. Não por acaso, temas de pesquisa e informativos do Tribunal frequentemente abordam esse assunto, dada sua relevância e recorrência nos recursos especiais. Em suma, ao lidar com fatos incontroversos, o ordenamento permite um novo olhar jurídico sobre eles, um reenquadramento à luz do direito, garantindo que a Justiça possa prevalecer sem transgredir as balizas do devido processo legal e das competências recursais estabelecidas.
Mário Goulart Maia
Sócio do Kohl & Maia Advogados.


