ECAD e a execução pública de obras geradas por inteligência artificial
TJ/SC decide que músicas criadas por IA podem estar sujeitas a direitos autorais do ECAD.
segunda-feira, 8 de setembro de 2025
Atualizado em 5 de setembro de 2025 14:39
A recente decisão do TJ/SC, no agravo de instrumento 5032376-37.2025.8.24.0000, traz luz para o debate sobre a aplicabilidade do sistema de arrecadação de direitos autorais às obras musicais geradas por IA - inteligência artificial. O caso envolve o parque temático Spitz Park Aventuras Ltda., que ingressou com ação declaratória de não infração para questionar cobranças do ECAD - Escritório Central de Arrecadação e Distribuição por sonorizar seu parque temático com músicas criadas exclusivamente por IA.
A empresa agravante sustentou que as músicas executadas em seu parque foram integralmente produzidas por ferramentas de IA, como a plataforma Suno, e, portanto, não deveriam estar sujeitas à cobrança do ECAD uma vez que não há contributo criativo humano sobre as obras, o que afasta a proteção por direitos autorais. Em seu pleito liminar, requereu tutela de urgência para que o ECAD se abstivesse de cobrar arrecadação por execução pública das obras criadas exclusivamente por IA.
Em contrapartida, a entidade arrecadadora defendeu a legalidade da cobrança e fundamentou sua defesa (i) no fato de os sistemas de IA se utilizarem de obras pré-existentes, protegidas por direitos autorais, para treinar seus modelos; (ii) na ausência de originalidade dos outputs musicais, por serem derivados de criações anteriores, argumento suportado por laudo pericial; (iii) na possibilidade de cobrança independentemente de prévia identificação da obra ou de filiação dos autores, conforme jurisprudência consolidada.
O TJ/SC, em voto do Des. João Marcos Buch, manteve a negativa de tutela provisória, entendendo que não havia probabilidade do direito alegado por Spitz Park Aventuras. O Tribunal destacou que a ausência de identificação do autor humano não elimina, por si só, a incidência de direitos autorais, sobretudo diante de indícios de que as músicas geradas poderiam derivar de obras protegidas.
Não obstante se tratar de decisão monocrática proferida em agravo de instrumento sobre pedido liminar para suspender cobrança do ECAD por execução pública de obra musical protegida por direitos autorais, vale destacar que a decisão antecipou alguns temas objeto do mérito da ação, como:
- Legitimidade do ECAD: reafirmação de que a cobrança independe da comprovação da autoria individual ou da filiação ao sistema;
- Risco de derivação indevida: laudo técnico apontou semelhança entre músicas geradas por IA e obras pré-existentes;
- Ausência de amparo legal para isenção: não haveria base normativa que autorize excluir automaticamente composições de IA do regime autoral;
- Necessidade de dilação probatória: a complexidade técnica e jurídica exige instrução probatória aprofundada.
Dentre os pontos acima, a questão da legitimidade do ECAD traz à tona dois outros temas subjacentes e não menos espinhosos relativos ao sistema de arrecadação coletiva. Primeiro, a falta de clareza quanto aos critérios adotados pelo ECAD para a posterior distribuição individualizada dos valores arrecadados, agravada pela consolidação jurisprudencial da arrecadação de forma global (baseada no que se convencionou chamar de blanket license) independentemente da identificação das execuções concretas obra a obra.
Ainda, a legitimidade do ECAD para arrecadar dependeria da configuração clara de que a sonorização do parque com obras geradas por IA equivalem à execução pública de obras, pré-existentes, das quais as primeiras seriam derivadas. Aqui, há um salto conceitual minimamente ousado: de um lado, a equiparação de uma obra por outra; de outro, a dificuldade de identificação plausível da(s) obra(s) supostamente originária(s), considerando, ademais, a probabilidade de a obra musical alegadamente "derivada" resultar do aprendizado da máquina baseado em obras de inúmeros autores do mesmo "estilo". Retorna-se, aqui, ao problema acima exposto quanto à adequada distribuição dos valores arrecadados aos autores "originários".
Como, então, partir desta sobreposição de pontes traçadas sobre abismos de causa/origem, construir o vínculo com obras autorais individuais e determinadas, para delas supor a execução pública?
Do ponto de vista do cenário normativo, a decisão traz desafios ao futuro da regulação da matéria de inteligência artificial em sua interface com o Direito Autoral, um dos tópicos abordados pelo PL 2.338/23, que busca instituir o marco legal da IA no Brasil.
O texto do PL não disciplina de forma direta a titularidade autoral de obras geradas por IA, mas aponta para a necessidade de transparência, responsabilidade e respeito aos direitos de terceiros nos processos de desenvolvimento e uso de sistemas de IA. Essa lacuna normativa reforça a incerteza enfrentada pelo Judiciário em casos como o presente que exigem o sopesamento entre a preservação aos direitos autorais e os riscos na criação de barreiras excessivas ao desenvolvimento tecnológico e à inserção do país no cenário das inovações já absorvidas pelo mercado e práticas socioeconômicas. Nesse contexto, a decisão do Tribunal antecipa-se ao debate legislativo e alinha-se a uma postura conservadora de tutela preventiva dos direitos autorais.
Há, certamente, um dilema econômico e um dilema jurídico nessa matéria que deve ser enfrentado pelo Congresso Nacional. Enquanto não houver maior clareza sobre a extensão do tratamento jurídico adequado às soluções tecnológicas que se descortinam cotidianamente por meio de inteligência artificial, levando em consideração a proporcionalidade e harmonização com o regime de proteção a direitos autorais, prevalecerá o risco de decisões judiciais que antecipam escolhas que cabem ao legislador.
Laetitia D'hanens
Sócia do escritório Gusmão & Labrunie - Propriedade Intelectual.
José Eduardo Pieri
Sócio em Gusmão & Labrunie Advogados. Legum Magister (LL.M) por John Marshall Law School of Chicago.



