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Planos de saúde e a cobertura obrigatória de tratamentos para autistas: Análise de um caso julgado na Paraíba

Sentença na Paraíba obriga plano a custear terapias para criança autista, reforçando a proteção integral e o caráter abusivo de restrições contratuais.

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Atualizado em 9 de setembro de 2025 10:44

O direito à saúde é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, erigido como garantia fundamental no art. 6º da Constituição Federal e reforçado pelo art. 196, que impõe ao Estado e à sociedade o dever de assegurar acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. Quando se trata de crianças e adolescentes, a proteção é ainda mais rigorosa, pois o art. 227 da Carta Magna atribui prioridade absoluta à garantia de seus direitos fundamentais.

Nesse cenário, ganha relevo a recente decisão proferida pela 2ª vara regional Cível de Mangabeira, na comarca de João Pessoa/PB, em ação movida contra uma operadora de plano de saúde que havia negado cobertura integral ao tratamento multidisciplinar de menor diagnosticada com TEA - Transtorno do Espectro Autista.

A demanda foi proposta com pedidos de obrigação de fazer, indenização por danos morais e materiais e tutela de urgência. A autora, representada por sua genitora, buscava a cobertura de terapias indispensáveis ao desenvolvimento da criança, como psicologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e psicopedagogia, com base no método ABA - Applied Behavior Analysis.

Em sua defesa, a operadora sustentou a existência de rede credenciada apta e alegou que eventual reembolso deveria observar limites previstos em tabela contratual. Pugnou ainda pela improcedência da ação, sob o argumento de que o rol da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar teria caráter taxativo.

O juízo, no entanto, afastou tais alegações. Fundamentou-se na jurisprudência consolidada do STJ, que tem considerado abusivas as cláusulas contratuais que restringem a cobertura de tratamentos prescritos por médicos habilitados, sobretudo em casos envolvendo crianças com transtornos do desenvolvimento. Citou-se que o rol da ANS é meramente exemplificativo, servindo como referência mínima, mas não podendo limitar o acesso a terapias essenciais.

Além da Constituição e do CDC, a decisão invocou a lei 12.764/12, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Tal norma assegura, entre outros direitos, a atenção integral às necessidades de saúde do autista, inclusive por meio de atendimento multiprofissional.

Nesse contexto, a sentença reconheceu a abusividade da negativa da operadora e julgou parcialmente procedente a ação, confirmando a tutela de urgência já deferida e condenando o plano a custear integralmente o tratamento multidisciplinar da criança, ressalvado apenas o apoio escolar, considerado de caráter educacional e não estritamente médico.

Quanto às despesas processuais, o magistrado determinou a repartição proporcional entre as partes, fixando honorários advocatícios em 15% do valor da causa, dividido igualmente, observada a gratuidade da parte autora. No dispositivo final, estabeleceu ainda o rito para cumprimento da sentença, com previsão de multa e honorários em caso de inadimplemento no prazo legal, bem como possibilidade de medidas coercitivas, como protesto da dívida e bloqueio via sistemas eletrônicos (BACENJUD e SERASAJUD).

A decisão está em sintonia com precedentes paradigmáticos do STJ, como no REsp 1.870.789/SP, em que se firmou que cláusulas que limitam o número de sessões para tratamento de autismo infantil são abusivas. Também dialoga com julgados do TJ/MG e TJ/SP, que vêm reconhecendo a ilicitude da exclusão de terapias recomendadas por especialistas, ainda que não previstas no rol da ANS.

Trata-se, portanto, de mais um exemplo de como o Poder Judiciário tem atuado para assegurar a efetividade dos direitos fundamentais, corrigindo práticas abusivas de planos de saúde que, sob o pretexto de regulação contratual, acabam por restringir direitos de pacientes em situação de especial vulnerabilidade.

Se, por um lado, a sentença resguarda a operadora ao excluir o custeio do apoio escolar, por outro reafirma o dever de cobertura integral dos tratamentos médicos indicados por profissional habilitado, garantindo à criança autista não apenas o direito à saúde, mas também à dignidade, ao desenvolvimento e à inclusão social.

A jurisprudência que se firma aponta para uma necessária harmonização entre o contrato e a função social que lhe é inerente, sendo dever das operadoras compatibilizar a sustentabilidade do sistema com a máxima efetividade dos direitos humanos e fundamentais.

Essa decisão representa mais do que a garantia de um tratamento de saúde individual. Ela reafirma que pessoas com Transtorno do Espectro Autista têm direito a uma atenção integral e digna, sem restrições abusivas impostas por contratos ou tabelas meramente formais. Atuamos com a convicção de que a Constituição e a legislação especial protegem essas famílias, e o Judiciário tem cumprido o seu papel de assegurar a efetividade desses direitos fundamentais.

Ricardo Fernandes

Ricardo Fernandes

Professor, Escritor, Pesquisador, Palestrante, Policial Miltiar da Reserva. É Advogado Especialista em Concurso Público, Direito da PCD, Direito Internacional. Direito Processual Civil, Administrativo

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