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A vedação à "decisão-surpresa" no CPC/15: Análise doutrinária e prática

O estudo aborda o art. 10 do CPC/15 e sua função na garantia do contraditório, promovendo decisões judiciais mais justas, transparentes e previsíveis.

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Atualizado em 9 de setembro de 2025 14:45

O CPC/15 (lei 13.105/15), promulgado com o objetivo de modernizar o sistema processual brasileiro, introduziu uma série de inovações destinadas a fomentar a transparência, a previsibilidade e a segurança jurídica nas decisões judiciais. Dentre essas mudanças paradigmáticas, destaca-se a vedação expressa à "decisão-surpresa", prevista no art. 10 do CPC/15. Essa norma reflete uma preocupação contemporânea com a efetivação dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, consagrados no art. 5º, incisos LIV e LV, da CF/88.

Aqui analisaremos os fundamentos dessa vedação, suas implicações práticas no contexto do Direito Processual Civil brasileiro e as comparações com ordenamentos estrangeiros. A abordagem busca demonstrar como essa inovação legislativa não apenas corrige distorções do passado processual, mas também alinha o Brasil a padrões internacionais de justiça processual, a promover um modelo de processo cooperativo e participativo. A análise será estruturada em seções temáticas, com ênfase na doutrina e na jurisprudência relevante, visando uma compreensão abrangente e aprofundada do tema.

A vedação à "Decisão-Surpresa" no ordenamento processual brasileiro

O cerne da vedação à "decisão-surpresa" reside no art. 10 do CPC/15, que dispõe: "O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício".

Essa disposição legal representa um marco na evolução do processo civil brasileiro, ao explicitar a proibição de decisões judiciais que peguem as partes de surpresa, baseadas em argumentos ou fundamentos não previamente debatidos. Historicamente, antes da vigência do CPC/15, era comum que o juiz, ao decidir questões de ordem pública - cognoscíveis de ofício, nos termos do art. 337, § 5º, do CPC/1973 -, assim o fizesse sem dar oportunidade às partes o contraditório prévio. Tal prática, embora justificada pela necessidade de celeridade, com muita frequência comprometia a legitimidade das decisões, a gerar nulidades e recursos desnecessários.

O legislador de 2015, consciente dessa realidade, optou por uma mudança de paradigma: mesmo em matérias de ofício, o princípio do contraditório deve ser observado de forma plena, assegurando às partes o direito de influenciar a formação do convencimento judicial. Essa norma não é isolada; ela se insere em um contexto muito mais amplo de reformas processuais que visam à efetividade do processo. Por exemplo, o art. 489, § 1º, IV, do CPC/15, exige que o juiz enfrente todos os argumentos capazes de infirmar sua conclusão, reforçando a transparência. A "decisão-surpresa", ao violar o art. 10, configura um vício processual grave, passível de anulação, como já reconhecido pela jurisprudência do STJ.

Em julgado paradigmático, o AgInt no AREsp 1.743.765/SP, relator ministro Og Fernandes, 2ª turma, julgado em 16/11/21, DJe 13/12/22, o STJ firmou entendimento pela nulidade de decisão proferida sem observância do contraditório, destacando que a surpresa compromete o devido processo legal substancial. Na prática forense, essa vedação impacta diretamente a condução do processo. O magistrado, ao identificar uma questão relevante de ofício - como prescrição ou decadência -, deve intimar as partes para manifestação prévia, sob pena de nulidade. Essa exigência promove previsibilidade, tudo para permitir que possam as partes ajustarem suas estratégias processuais e evitem o "efeito surpresa", tanto criticado na doutrina anterior ao CPC/15.

O princípio do contraditório: Fundamento constitucional e expansão conceitual

O princípio do contraditório, elevado à categoria de garantia fundamental pela CF/88 (art. 5º, LV), constitui o pilar axiológico da vedação à "decisão-surpresa". Tradicionalmente, o contraditório era visto e entendido como o mero direito das partes de serem ouvidas e de responderem aos argumentos adversos. Entretanto, a doutrina contemporânea, influenciada pelo CPC/15, adota uma concepção mais ampla: o contraditório abrange o direito de participação ativa na formação do convencimento judicial, influenciando o conteúdo das decisões. Essa expansão conceitual é explicitada no art. 10 do CPC, que vem garantir às partes não apenas a reação a argumentos alheios, mas também a oportunidade de se manifestar sobre fundamentos suscitados pelo juiz.

Como bem observa a doutrina, o contraditório moderno é "efetivo", assegurando a "comunicação dos atos processuais, a manifestação, a participação no desenvolvimento do processo, a influência no conteúdo das decisões e a consideração dos argumentos" (SANTOS, Welder Queiroz dos. A vedação à prolação de "decisão surpresa" na Alemanha. Revista de Processo, vol. 240/2015, p. 425-435). Já no âmbito do CPC/15, essa efetividade se manifesta em diversas hipóteses. Por exemplo, no caso de improcedência liminar do pedido (art. 332), o autor deve ser intimado para se manifestar sobre as matérias de ordem pública invocadas pelo juiz.

De igual forma, o art. 489, IV, impõe ao magistrado o dever de enfrentar argumentos deduzidos pelas partes que possam alterar sua convicção, sob pena de nulidade por falta e ausência de fundamentação. Essa interconexão reforça o modelo cooperativo do processo, onde juiz e partes dialogam para a construção de uma decisão legítima. A vedação à "decisão-surpresa" alinha-se perfeitamente a esse modelo, a evitar que o juiz atue como "terceiro oculto", impondo teses não antes conhecidas e debatidas. Como destaca LASPRO, Oreste Nestor de Souza (Da Expressa proibição à "decisão-surpresa" no Novo CPC. Revista do Advogado, n. 126, ano XXXV, maio/2015, p. 162-168), o legislador pretendeu garantir previsibilidade e segurança jurídica, permitindo que as partes demonstrem a aplicação (ou não) de princípios ao caso concreto.

Assim, o contraditório deixa de ser formal para se tornar substancial, contribuindo para a legitimação das decisões judiciais e o fortalecimento do Estado Democrático de Direito.

Comparação com o Direito Estrangeiro: Lições internacionais para o Brasil

A inovação do art. 10 do CPC/15 não surge de forma isolada: ela ecoa em diversos ordenamentos jurídicos estrangeiros, onde a proteção contra decisões inesperadas já é consolidada. Essa convergência demonstra o compromisso global com a justiça processual, servindo como parâmetro para a interpretação e aplicação da norma brasileira. No Direito Francês, v.g., o art. 16 do Code de Procédure Civile estabelece que o juiz deve observar o princípio da contradiction em todas as circunstâncias. Especificamente, ele não pode fundamentar sua decisão em meios de direito suscitados de ofício sem convidar as partes a apresentarem observações.

O texto original dispõe: "Le juge doit, en toutes circonstances, faire observer et observer lui-même le principe de la contradiction. Il ne peut retenir, dans sa décision, les moyens, les explications et les documents invoqués ou produits par les parties que si celles-ci ont été à même d'en débattre contradictoirement. Il ne peut fonder sa décision sur les moyens de droit qu'il a relevés d'office sans avoir au préalable invité les parties à présenter leurs observations." Em tradução livre, dá-se ênfase à necessidade de debate contraditório prévio, sob pena de invalidação da decisão.

A doutrina brasileira elogia essa disposição como modelo, pois ela equilibra a iniciativa judicial com a paridade de armas. Quanto ao sistema alemão, o § 139 da Zivilprozessordnung (ZPO) proíbe decisões que surpreendam os litigantes, visando reduzir recursos e promover satisfação processual.

O texto original, em seu § 139(2), afirma: "Auf einen Gesichtspunkt, den eine Partei erkennbar übersehen oder für unerheblich gehalten hat, darf das Gericht, soweit nicht nur eine Nebenforderung betroffen ist, seine Entscheidung nur stützen, wenn es darauf hingewiesen und Gelegenheit zur Äußerung dazu gegeben hat."

Em tradução: "o tribunal só pode basear sua decisão em aspecto ignorado pelas partes se o houver assinalado previamente, dando oportunidade de manifestação. Embora não preveja nulidade expressa, a jurisprudência alemã, amparada no art. 103, I, da Grundgesetz (direito ao devido processo), reconhece a anulação por violação ao contraditório."

Essa abordagem pragmática influenciou o CPC/15, que deu prioridade ao diálogo processual. Já no direito italiano, a reforma de 2009 (lei 69/09) introduziu no art. 101 do CPC a nulidade para decisões baseadas em fundamentos não debatidos.

O texto italiano assim dispõe: "Se ritiene di porre a fondamento della decisione una questione rilevata d'ufficio, il giudice riserva la decisione, assegnando alle parti, a pena di nullità, un termine, non inferiore a venti giorni e non superiore a quaranta giorni dalla comunicazione, per il deposito in cancelleria di memorie contenenti osservazioni sulla medesima questione."

Em tradução: o juiz, ao suscitar questão de ofício, fixa prazo para memoriais das partes, sob pena de nulidade. Essa reforma veio eliminar controvérsias sobre "decisões de terceira via", garantindo igualdade processual e influência concreta no julgamento.

Esses exemplos estrangeiros ilustram que a vedação à "decisão-surpresa" no Brasil não é uma inovação isolada, mas sim parte de uma tendência internacional rumo a processos mais transparentes e participativos. O CPC/15, ao adotar essa perspectiva, certamente vem reafirmar o compromisso com a segurança jurídica, alinhando o ordenamento pátrio às melhores práticas globais.

Repercussões práticas da vedação à "Decisão-Surpresa"

A implementação do art. 10 do CPC/15 gera repercussões práticas profundas no dia a dia do foro, demandando adaptações por juízes, advogados e partes. Entre as principais, destacam-se: Impacto no princípio Iura Novit Curia: Tradicionalmente, o juiz conhece o direito (iura novit curia), podendo aplicar normas não invocadas pelas partes. Com o art. 10, essa prerrogativa é condicionada à oitiva prévia sobre a qualificação jurídica dos fatos.

Assim, ao identificar uma norma aplicável de ofício, o magistrado deve intimar as partes, assegurando que a decisão não surpreenda. Essa reinterpretação concretiza o contraditório, evitando que a aplicação do direito seja arbitrária. Consequências da inobservância: A lei não prevê sanções expressas para violação do art. 10, gerando debates doutrinários. Alguns autores defendem a nulidade absoluta por cerceamento de defesa; outros, a ineficácia relativa. A jurisprudência, contudo, tende à nulidade, como assim expresso no julgado do STJ mencionado (AgInt no AREsp 1.743.765/SP).

Essa posição reforça a gravidade do vício, permitindo a anulação em qualquer grau de jurisdição. Ausência de pré-julgamento: A intimação prévia não compromete a imparcialidade do juiz; ao contrário, promove paridade de armas, permitindo que as partes argumentem pela aplicação ou não do fundamento. Isso respeita o art. 93, IX, da CF (fundamentação das decisões), equilibrando iniciativa judicial e direitos das partes.

Equilíbrio entre celeridade e justiça: Embora a exigência de debate prévio possa alongar o processo, a celeridade (art. 4º do CPC) não pode sacrificar garantias fundamentais. O art. 10 busca harmonizar eficiência com justiça substancial, reduzindo recursos por nulidades e fomentando a cooperação (art. 6º). Na prática, esses impactos se manifestam em incidentes processuais cotidianos, como contestações preliminares ou julgamentos antecipados. Advogados devem estar atentos para arguir nulidade em caso de surpresa, enquanto juízes precisam gerir o processo com proatividade, evitando vícios que comprometam a validade da sentença.

Conclusão

A vedação à "decisão-surpresa", cristalizada no art. 10 do CPC/15, representa sim um avanço significativo no direito processual brasileiro, reforçando o princípio do contraditório em sua dimensão efetiva e participativa. Ao proibir decisões baseadas em fundamentos não debatidos e sequer conhecidos, o legislador promove transparência, previsibilidade e segurança jurídica, alinhando o Brasil a modelos estrangeiros consolidados, como os francês, alemão e italiano. As repercussões práticas, embora desafiadoras, superam eventuais críticas, especialmente ao integrar-se à política de precedentes vinculantes (arts. 927 e ss.).

Em última análise, essa norma fortalece o devido processo legal, legitimando as decisões judiciais e garantindo a plena participação dos sujeitos processuais. Futuras interpretações jurisprudenciais e doutrinárias certamente consolidarão essa inovação, que contribuirá sem dúvida para que o sistema judiciário seja muito mais justo e muito mais eficiente.

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SANTOS, Welder Queiroz dos. A vedação à prolação de "decisão surpresa" na Alemanha.

Revista de Processo, vol. 240/2015, p. 425-435. LASPRO, Oreste Nestor de Souza.

Da Expressa proibição à "decisão-surpresa" no Novo CPC. Revista do Advogado, n. 126, ano XXXV, maio/2015, p. 162-168.

Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) Constituição Federal de 1988. 

Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade

Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade

Migalheira desde abril/2020. Advogada, sócia fundadora do escritório Figueiredo Ferraz Advocacia. Graduação USP, Largo de São Francisco, em 1.981. Mestrado em Direito do Trabalho - USP. Conselheira da OAB/SP. Conselheira do IASP. Diretora da AATSP.

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