Responsabilidade tributária dos marketplaces: Por que uma lei complementar é indispensável?
O STF avaliará a constitucionalidade de lei do RJ que impõe às plataformas digitais responsabilidade tributária sem respaldo em lei complementar.
quinta-feira, 11 de setembro de 2025
Atualizado em 10 de setembro de 2025 14:40
A repartição dos deveres fiscais entre contribuintes e terceiros costuma parecer tema exclusivo da praxis tributária, mas envolve questão nuclear de constitucionalidade: somente lei formalmente complementar pode instituir responsabilidade a quem não realizou o fato gerador. Esse ponto ganhou destaque nas últimas semanas, após o STF reconhecer repercussão geral em recurso que questiona a constitucionalidade da lei estadual 8.795/20 (RJ), por atribuir responsabilidade tributária às plataformas de marketplace. Sem esse cuidado, o sistema perde coerência, viola o princípio da legalidade estrita (art. 150, I, CF) e afronta a reserva de lei complementar prevista no art. 146, III, "b", da Constituição.
O CTN, diploma editado sob a forma de lei complementar, consagra de maneira cristalina essa exigência. O art. 128 autoriza que terceiros sejam chamados a responder pelo crédito tributário, mas condiciona a atribuição à "lei" - aqui entendida como lei complementar, pois o CTN recebeu status complementar. Na mesma trilha, o art. 135 estabelece hipóteses de responsabilidade pessoal dos administradores quando agirem com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos. O dispositivo não só enumera situações específicas, como afasta qualquer dúvida sobre a natureza complementar da norma fundante.
Do ponto de vista dogmático, a reserva de lei complementar para disciplinar responsabilidade de terceiros cumpre dupla função. Primeiro, garante previsibilidade, pois sujeita a inovação a quórum legislativo qualificado. Segundo, preserva a separação de competências, evitando que a União, Estados ou municípios criem responsabilidades díspares que vulnerem a isonomia.
Entretanto, a dinâmica econômica recente tem provocado iniciativas normativas que tensionam esse arcabouço. É o caso da lei fluminense 8.795/20, que, ao regulamentar o ICMS incidente nas operações realizadas em marketplaces, atribuiu às plataformas digitais a condição de responsáveis solidárias pelo imposto não pago pelos vendedores. O texto obriga as intermediadoras a reter e recolher o tributo, além de responderem por eventuais diferenças.
À primeira vista, a medida se justifica pelo combate à evasão fiscal no comércio eletrônico. Todavia, o exame constitucional revela vício formal evidente. A lei estadual é ordinária, não complementar. Vale lembrar que a possibilidade de a legislação subnacional instituir responsabilidade tributária a terceiro inexiste sem lei complementar nacional que a autorize de modo expresso e uniforme. No plano federal, o CTN já traçou as hipóteses fechadas - arts. 134 e 135 - e nenhum desses dispositivos contempla as plataformas como responsáveis automáticas pelos débitos de terceiros.
Argumenta-se que o art. 124, I, do CTN permitiria a solidariedade entre as pessoas que tenham "interesse comum na situação que constitua o fato gerador". Contudo, o dispositivo não cria novas responsabilidades; limita-se a descrevê-las para quando outra norma complementar as houver instituído. A lei 8.795/20, sendo ordinária, não supre essa lacuna. Aliás, se fosse possível a cada Estado fixar lista própria de responsáveis solidários mediante lei ordinária, a exigência de lei complementar perderia sentido.
Há ainda relevância prática. A plataforma digital não realiza, nem colabora na realização do fato gerador; apenas intermedeia negócios jurídicos alheios. Transferir-lhe o risco tributário cria ônus desproporcional, compromete a neutralidade econômica e pode levar à restrição de mercado - justamente o oposto do desejado em cenário de economia digital.
Nesse contexto, a jurisprudência tem reforçado a reserva de lei complementar. O STF, quando instado a avaliar normas locais que ampliam hipóteses de responsabilidade, costuma declará-las inconstitucionais por ofensa ao art. 146, III, da CF. O STJ, por sua vez, reconhece reiteradamente que o rol do art. 135 do CTN é taxativo. Assim, qualquer pretensão de incluir novo sujeito passivo depende de alteração do próprio CTN ou de outra lei complementar.
Deve-se notar que o § 7º do art. 150 da CF autoriza a retenção antecipada de tributos, mas não afasta a reserva de lei complementar. Trata-se de norma de eficácia limitada, que requer veiculação adequada. Logo, só lei complementar poderia facultar aos Estados a criação de mecanismo de substituição tributária envolvendo terceiros que não participam do fato gerador.
À luz dessas premissas, conclui-se que a lei 8.795/20 excedeu a competência legislativa estadual. Não porque falte legitimidade ao esforço de combater a evasão nas vendas on-line, mas porque a forma jurídica adotada é inadequada. O caminho constitucional correto seria propor projeto de lei complementar nacional alterando o CTN, introduzindo regra que:
- Defina a plataforma digital como responsável, delimitando o nexo funcional com o fato gerador;
- Estabeleça salvaguardas contra dupla cobrança e critérios objetivos de retenção;
- Preserve a uniformidade do sistema, evitando sobrecarga regulatória.
Em síntese, a experiência fluminense demonstra que o debate sobre tributação da economia digital não se resume à eficiência arrecadatória. Exige fidelidade aos pilares constitucionais de legalidade e hierarquia normativa. Responsabilidade tributária de terceiros é exceção, só admitida quando delineada por lei formalmente complementar. Fora disso, toda tentativa estadual ou municipal incorre em inconstitucionalidade formal, arriscando provocar insegurança jurídica sem alcançar os fins pretendidos.
Somente com respeito ao devido processo legislativo - e mediante amplo diálogo federativo - será possível modernizar o sistema tributário sem derrubar a sólida arquitetura que o CTN, lei complementar por excelência, vem sustentando desde 1966.
João Colussi
Sócio do escritório Mattos Filho.


